Nesta última véspera de natal, o país recebeu um novo conjunto de normas penais e processuais penais, materializado no texto da Lei 13.964/2019. A extensa normatização arquitetada pelo Congresso Nacional foi sancionada pelo Presidente da República, salvo no tocante a vinte e cinco vetos, e alterará inúmeros pontos do Código Penal, do Código de Processo Penal, da Lei de Execuções Penais e de diversos outros diplomas legais. Aguarda-se somente, para que irradie efeitos, o decurso do período de vacatio legis, de trinta dias.
Trata-se do produto final que derivou do chamado “Pacote Anticrime”, um projeto apresentado pelo Ministro da Justiça, Sérgio Moro, ao Congresso Nacional, em 19 de fevereiro de 2019, cujo propósito era o de atualizar a legislação criminal e o processo penal, sistematizando as mudanças em uma perspectiva mais rigorosa no enfrentamento à criminalidade, teoricamente em consonância com o anseio popular expressado nas últimas eleições presidenciais.
O texto originário continha a execução provisória da condenação criminal após a decisão de segunda instância, aumentos de pena, reduções de benefícios penais, criminalização do caixa dois referente a eleições, mudanças no sistema recursal, alterações na prescrição, ampliação da Justiça negociada, entre outras medidas.
Em março de 2019 a Presidência da Câmara dos Deputados instituiu uma Comissão de deputados para apreciar o referido “Pacote Anticrime”, a qual passou a trabalhar, paralelamente, com uma proposta alternativa, elaborada, no ano de 2018, por um grupo de juristas encabeçado por Alexandre de Moraes, Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Ao longo dos trabalhos, a Comissão realizou uma série de alterações ao projeto inicial, denominado PL 10.372/2018, e inseriu, em meados de setembro último, através de emenda, o chamado “juiz das garantias”, matéria que não se encontrava incluída no acervo em apreciação. Registre-se que esse tema integrava o Projeto de Lei 8.045/2010, destinado a estatuir um novo Código de Processo Penal, já aprovado pelo Senado Federal e que estava em apreciação por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados.
No dia 4 de dezembro de 2019, o projeto final apresentado pela Comissão passou por votação no Plenário e foi aprovado, vindo a ser votado no Senado Federal em 10 de dezembro, identificado como PL 6.341/2019. Houve aprovação nesta última casa, sem qualquer modificação do texto enviado pela Câmara.
Constata-se uma enorme distinção entre o texto do projeto inicial, enviado pelo Ministro da Justiça à Câmara dos Deputados, e aquele que chegou às mãos do Presidente da República para sanção ou veto. O espírito e a lógica do projeto inicial, de recrudescimento, desfiguraram-se, deixando de expressar uma clara ideia de endurecimento no sistema criminal. Pelo contrário, a inclusão de itens estranhos a ele, muitos deles contraditórios à própria congruência do projeto, resultaram na formatação de um produto final que, em diversas passagens, se opõe à própria finalidade anunciada, de impingir maior rigor no enfrentamento à criminalidade.
Edilson Mougenot Bonfim e Bruno Amorim Carpes, em texto recentemente publicado na Gazeta do Povo, destacaram a inserção, pelo Congresso Nacional, de ideias estranhas ao projeto, que em sua visão não apenas o desfiguraram e atentaram contra o seu propósito, mas que poderiam, através desse novo corpo legislativo, comprometer o tecido e a saúde do corpo social. Citaram, entre esses dispositivos, apontados como “armadilhas”, a introdução do “juiz das garantias”, alterações que dificultam a decretação das prisões preventivas e a troca da expressão “mínima” por “máxima” no que se refere às penas em abstrato dos crimes que passariam a admitir os acordos de não persecução penal.[1]
Entre as incontáveis inovações, muitas delas polêmicas, uma ganhou destaque imediato: a criação do “juiz das garantias”. Nos últimos dias tem sido esse o tema de debates acalorados na imprensa e nas mídias sociais. Discutem-se a sua lógica, eventuais avanços, possíveis retrocessos, dificuldades ou inviabilidade em sua implantação e até mesmo um desarranjo organizacional que acarretaria no sistema processual penal.
Nesse turbilhão de discussões, a exequibilidade da adoção do “juiz das garantias”, dadas a notável ausência de estrutura do Poder Judiciário e a falta de previsão orçamentária, passou a ser o ponto que centralizou as críticas ao mecanismo. Não é, no entanto, o cerne das críticas deste trabalho, porque a carência de meios materiais é passageira e teoricamente superável.
Alguns dos desdobramentos do “juiz das garantias” chegaram a ensejar a propositura, por parte da Associação dos Magistrados Brasileiros e da Associação dos Juízes Federais do Brasil, de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 6.298), distribuída, no Supremo Tribunal Federal, ao Ministro Luiz Fux, pendente de apreciação. As normas questionadas através dessa ação constitucional também não se referem ao ponto aqui destacado.
A despeito de menções elogiosas que o instituto tenha recebido, inclusive com a consideração de que seria um avanço civilizatório nas relações processuais entre o Estado-juiz e o réu[2] [3] [4] [5], supõe-se que da forma como está regulamentado no texto legal, a pretexto de salvaguardar interesses individuais dos investigados e acusados, acarretará em um prejuízo incomensurável para a persecução penal, a busca da efetividade no processo e a segurança da coletividade, atentando direta e intensamente contra princípios de ordem constitucional.
No formato adotado pela novel legislação, a persecução penal terá a participação obrigatória de dois magistrados: um deles, o “juiz das garantias”, exclusivo para supervisionar atos pré-processuais e apreciar pedidos cautelares, cuja jurisdição terá como marco final o eventual recebimento da denúncia ou queixa-crime; o outro, o “juiz de instrução e julgamento”, cujas incumbências serão as de receber o processo já iniciado e conduzi-lo, instruindo-o, inclusive decidindo questões pendentes, e de sentenciar.
Trata-se de uma importação deturpada e pouco fiel do “juizado de instrução”, um sistema processual discutido no Brasil há muitas décadas e largamente utilizado no direito continental europeu, que não se coaduna com o tradicional modelo processual brasileiro. Nele, grosso modo, um juiz instrutor, com iniciativa e proeminência, dirige a investigação e, sob o pálio do contraditório, colhe as provas que serão apreciadas, em uma segunda etapa, por outro juiz, que sentenciará. No Brasil, ao contrário, todo o arcabouço legal foi historicamente dirigido, principalmente nas últimas décadas e, mais especificamente a partir da Constituição de 1988 e de reformas no Código de Processo Penal, no sentido de retirar ou reduzir a iniciativa do juiz ao mínimo necessário, relegando o magistrado às figuras de controlador da legalidade e árbitro de questões levadas a ele na fase investigatória, e de espectador e árbitro de um processo desenvolvido em meio a um embate cujo horizonte é ditado pelas partes.
É nesse contexto de pouca ou moderada iniciativa do magistrado que se inserem o inquérito policial, a cargo das Polícias Judiciárias, e os procedimentos investigatórios criminais do Ministério Público. São as entidades estatais referidas as responsáveis pela iniciativa e condução do procedimento investigatório, remanescendo o juiz em uma atividade essencialmente reativa, seja para deferir pedidos apresentados ou negá-los, e, quando for o caso, salvaguardar os interesses do investigado, reconhecendo prescrição e outras questões de ordem pública e concedendo eventuais habeas corpus.
Apesar de características inquisitoriais originárias, que foram atenuadas em reformas legislativas contínuas e modulações dos tribunais, o sistema processual penal nacional é predominantemente acusatório e assegura uma efetiva separação de tarefas na persecução penal, de modo que há total cisão entre as figuras de investigador e juiz e, especificamente no processo, entre acusador e julgador.
Especialmente quanto ao procedimento investigatório, remanesce a inquisitoriedade, porque é conduzido unilateralmente pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público, no entanto, diante de inúmeras concessões constitucionais e legais, e de uma releitura pautada na constitucionalização da investigação, nele se fazem cada vez mais presentes mecanismos relacionados ao contraditório e à ampla defesa, tais como o direito ao silêncio, o direito de se fazer acompanhar por advogado, o direito de o defensor acessar elementos de prova já documentados, a prerrogativa conferida ao defensor de apresentar razões e quesitos, e o direito de requerer diligências.
Um notável e bem traçado equilíbrio de forças sustenta o sistema processual brasileiro, definindo claramente os papéis de cada participante: Polícia Judiciária e Ministério Público conduzem as investigações em seus procedimentos próprios, sob a supervisão judicial, e ao fazê-lo se revestem do interesse coletivo de acautelar a segurança pública; quando atua no processo, o Ministério Público acusa e mantém, ao mesmo tempo, a condição de fiscal da lei, tendo em vista que não representa a si mesmo e atua em substituição à vítima, que em sentido amplo é a própria sociedade; e o juiz, conforme já mencionado, se mantém, desde a fase de investigação, salvo em situações excepcionais e complementares, como uma figura inerte, de pouca iniciativa, que zela pela legalidade, aguarda provocações dos interessados e decide conforme os pleitos que lhe são dirigidos.
Inexiste, portanto, uma harmonia intrínseca entre o desenho do processo penal pátrio e o sistema europeu no qual a mudança se inspira. Em consequência disso, também não há lógica em adotar partículas de um e de outro sistema, fundindo-os em um conjunto de retalhos inconciliáveis.
A preocupação em acomodar o “juiz das garantias” no sistema processual penal brasileiro remonta a uma propalada busca pela imparcialidade do magistrado.
Segundo a lógica inserida na nova lei, o juiz que tem contato com a investigação e os elementos informativos, que decide as medidas cautelares pré-processuais, a exemplo de prisões, buscas e interceptações, fica contaminado por ter tomado decisões interlocutórias ou conhecer elementos indiciários. A falta de isenção do juiz, nesse novo cenário, não se vincula a condutas ou circunstâncias específicas, demonstráveis concretamente caso a caso, sendo deduzida do simples fato de que ele supervisionou a investigação. Sustenta-se um insuperável vínculo psicológico entre o juiz que conhece os elementos informativos e aprecia pedidos cautelares, que o levaria a perder a equidistância necessária para o julgamento.
Luiz Flávio Gomes, na defesa do regime do “juiz das garantias”, afirma que o juiz que funciona no procedimento investigatório torna-se “um escudeiro da pretensa legitimidade da investigação criminal”, o que o leva a ser incapaz de enxergar as aberrações que nele tenham ocorrido.[6]
A prática jurídica desautoriza esse fatalismo enunciado, meramente especulativo. É comum, no universo dos procedimentos investigatórios, a existência de pedidos cautelares não atendidos pelo magistrado. Do mesmo modo, o seu eventual atendimento, em medida alguma significa adiantamento de posição relativa ao mérito. Cautelar e mérito não se confundem, assim como elementos informativos e provas não têm a mesma natureza e valor.
Os caminhos pelos quais um processo percorre são muito mais complexos do que esse reducionismo especulativo, o que se verifica nas corriqueiras situações em que indiciados, sujeitos submetidos a medidas cautelares e denunciados, ao final da instrução processual, recebem sentenças de absolvição. Como bem lembrado pelo juiz federal Viliam Bollmann, uma cautelar deferida em desfavor do investigado, por exemplo, pode resultar, como consequência, na incontestável revelação de sua inocência, e essa circunstância conduzirá invariavelmente à absolvição.[7]
Curiosamente essa retórica que alude à vinculação psicológica do juiz em relação a elementos informativos não suscita indagações quando o magistrado não defere uma cautelar pedida pela Polícia ou pelo Ministério Público, não recebe a denúncia ou profere a absolvição do réu.
Não se pode perder de vista, ainda, que nesse novo regime do “juiz das garantias”, medidas cautelares pleiteadas pelo Ministério Público, ou revogações e alterações pretendidas pela parte, poderão ser manejadas ao longo da instrução processual, e que nesse caso o “juiz de instrução e julgamento” será o competente para apreciá-las.[8]
Se o mesmo juiz, no processo, apreciará uma questão cautelar ou incidente e ainda assim proferirá a decisão de mérito, no que essa situação difere, na essência, daquela em que o juiz supervisiona a investigação, conduz o processo e decreta a decisão de mérito? Na verdade, não há diferença efetiva.
O que se constata é a adoção de uma visão ideológica progressista, praticamente hegemônica nos meios acadêmico e editorial, que se pretende a própria evolução técnico-jurídica, a qual elege o Estado como um vilão autoritário e eleva o réu a uma condição heroica de resistência ao autoritarismo estatal, cuja marcha pressiona o Estado – o garantidor dos interesses coletivos e individuais de toda a coletividade –, pouco a pouco, a suportar uma paridade fictícia, em uma disputa conjetural que na realidade é inexistente porque se estrutura a partir de conceitos que coexistem perfeitamente quando empregados moderadamente, e a recolher-se a uma atividade puramente formal, retraída, omissa, despreocupada com a revelação da verdade.[9]
Quando se busca retirar do juiz qualquer iniciativa sob a argumentação de preservação da imparcialidade, a pretensão revelada pende inexoravelmente apenas para um lado. Alega-se que o magistrado, ainda que de maneira supletiva, não pode incorrer em atos que seriam próprios do Estado investigador, pois isso feriria o equilíbrio do sistema acusatório. No entanto, os mesmos que se levantam para apontar a impropriedade de o magistrado buscar a verdade real através de iniciativa excepcional e aditiva, não estranham e, pelo contrário, aplaudem, quando o juiz atua de ofício para reconhecer circunstâncias que venham a beneficiar o investigado. É o caso do novo artigo 3º-B, IX, do Código de Processo Penal, segundo o qual caberá ao juiz das garantias “determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento”.
Não há, aqui, um questionamento a que o juiz possa atuar nesse sentido, pelo contrário, entende-se que é salutar e necessário que o faça, corrigindo o rumo em direção a um bem maior. É evidente que se trata de uma hipótese excepcional, mas também convém destacar que a solução é uma expressão da verdade real. E a verdade real, filosoficamente falando, não pode ter lado.
Essa opção pela filosofia política que identifica no investigado ou réu um herói da resistência ao Estado tem causado graves e insolúveis problemas operacionais no sistema processual, principalmente na perspectiva da segurança pública.
A falta de congruência e sistemática na solução vislumbrada através do “juiz das garantias” levou Edilson Mougenot Bonfim e Bruno Amorim Carpes a sugerirem, sarcasticamente, a criação do “tribunal das garantias”, visando a evitar que a análise de recursos advindos de fases anteriores contaminem os colegiados para as futuras decisões de mérito.[10]
Além de toda a controvérsia já apresentada, não há como deixar de reconhecer que a idealização desse novo sistema por parte do legislador tende a atribuir uma pecha de parcialidade sobre todas as decisões judiciais que antecederam ao novo regramento. Se a falta de isenção, abstratamente considerada, se afigura como um fato, ela sempre existiu, independentemente de lei, e não será um marco legal que a instituirá no mundo real. Logo, pela lógica moral incutida na discussão, provavelmente surgirão, nos tribunais, teses e mais teses no sentido da retroação para a desconstituição de atos pretéritos.
Imparcialidade, como qualidade atinente ao magistrado, faz parte do regime constitucional incidente à magistratura e, para garanti-la e preveni-la, a legislação prevê uma série de regramentos, como a distribuição de processos, hipóteses de suspeição e casos de impedimento, e a infringência pode levar a nulidades e a repetição de atos.
Essa figura do “juiz das garantias” reverte, em certa medida, um caminho adotado em 2008 em reforma ao Código de Processo Penal, segundo o qual o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença, pois o sentido do preceito em questão, denominado “princípio da identidade física do juiz”, é justamente assegurar que o magistrado familiarizado com o acervo probatório profira a decisão de mérito. Embora se refira diretamente ao princípio da oralidade, a racionalidade da identidade física durante a instrução é a mesma que, até a presente modificação legislativa, sempre permitiu a um juiz criminal atuar na fase pré-processual e na instrução subsequente: ter um conhecimento global e profundo das questões que serão decididas.
O bom manejo da jurisdição, que resultará na prestação jurisdicional respeitadora dos direitos fundamentais, adequada ao interesse público e que garanta a salvaguarda à segurança pública, depende do grau de informações de que disponha o magistrado para julgar.
A identidade física do juiz e o sistema processual acusatório até aqui adotados no Brasil, dirigem-se, sem dúvida, à busca da verdade real.
Destaca o artigo 155, caput, do Código de Processo Penal, que “o juiz formará a sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar a sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.
Em seguida, no artigo 156 e seus incisos, o legislador conferiu algum grau de inciativa ao magistrado, supletivo, a fim de assegurar, a seu critério, a preservação de determinado elemento relevante que possa servir para dirimir eventuais dúvidas remanescentes.
Ambos os dispositivos acima apontados, no plano do legislador ordinário, são os sedimentos que orientam a Justiça criminal no sentido de procurar, dentro de limites estritos, a verdadeira realidade dos fatos.
Lido nas entrelinhas, o artigo 155, caput, estabelece que o juiz criminal, ao sentenciar, embase a sua decisão – amparada no livre convencimento motivado – nas provas produzidas na instrução, colhidas à luz do contraditório, mas autoriza que utilize, acaso entenda necessário, de forma suplementar, elementos obtidos na investigação preliminar da Polícia Judiciária ou do Ministério Público.
Na perseguição à verdade real o magistrado terá ocasião para, através dos elementos informativos – previamente conhecidos e potencialmente contestáveis ao longo do processo –, preencher pequenas lacunas não alcançadas pela prova processualmente produzida, elucidando o entendimento sobre alguma circunstância muitas vezes relevante para a compreensão global dos fatos.
Cumpre distinguir provas e elementos de informação. As primeiras são materializações que demonstrem um fato, constituindo-se no transcurso da atividade do contraditório, ao passo que estes últimos, de caráter indiciário, seriam, nas palavras de Mougenot, “começos de prova”, ou seja, dados informativos que apontam uma probabilidade, mas não permitem, isoladamente, formar um juízo de certeza, carecendo de confirmação posterior.[11]
Sendo os elementos informativos dados precários – não constituídos no regime do contraditório –, a lei não lhes atribuiu, isoladamente, valor de prova, entretanto, permitiu que incidissem como reforço indiciário às provas existentes, complementando-as. Não devem, portanto, ser desprezados, podendo se agregar à prova judicial e servir como mais um dado na formação da convicção do juiz.[12]
Há grande relevância no acesso do juiz à integralidade do acervo da persecução penal. É comum que elementos informativos, como depoimentos em seara policial e relatórios policiais, apresentem dados que não sejam repetidos ou repetíveis em juízo. Uma testemunha ou investigado, em juízo, em meio a uma estratégia defensória, podem negar ricas e detalhadas informações apresentadas no procedimento investigatório. O juiz, porém, diante do conhecimento integral da persecução, ponderará acerca do valor dos elementos informativos, eventualmente os considerando como válidos para preencher algum hiato. Embora hodiernamente exista certo fetiche por provas técnicas e perícias, testemunhos mantêm e sempre terão o seu valor como elementos fundamentais e, por vezes, serão os únicos dados indicativos da autoria de um crime e de suas circunstâncias.
O fato é que a reforma operada pela Lei 13.964/2019, ao estabelecer o regramento do “juiz das garantias”, lamentavelmente fulminou a legítima e necessária busca da verdade real, estabelecendo a verdade formal como o único horizonte atingível.
Inovando o Código de Processo Penal, o artigo 3º-C, §3º, destacou que a investigação policial ou ministerial servirá apenas para instruir a denúncia, e que o seu acervo, salvo quanto aos elementos irrepetíveis por natureza, as medidas de obtenção de provas e as provas antecipadas em regime judicial, será depositado no cartório judicial, para simples consulta às partes, sem, contudo, poder ser juntado ao processo vindouro.[13] [14]
Essa aparenta ser a questão mais grave e prejudicial contida na Lei 13.964/2019 e, mais especificamente, na regulamentação do “juiz das garantias”: o juiz que conduzirá o processo e sentenciará será terminantemente proibido de acessar os autos do inquérito e, por consequência, de se utilizar dele eventualmente para preencher lacunas de maneira suplementar, harmonizando, a partir dos elementos de informação, a sua compreensão sobre as provas existentes. Sob o argumento de conferir ao réu a garantia de um juiz imparcial, a novel legislação afetará a utilidade do sistema processual penal, abandonando a sociedade em uma longa marcha com destino à impunidade.
Há outra razão aparentemente levada em conta para esse lamentável descarte prematuro dos elementos informativos, notadamente aqueles produzidos no inquérito policial, e ela aparenta decorrer de uma visão meramente utilitarista da investigação policial, segundo a qual a apuração policial se caracteriza como um mero apêndice da acusação, dotada de uma natureza exclusivamente instrumental.[15]
Não se questiona que a Polícia Judiciária, de acordo com o formato que a Constituição e as leis conferiram à persecução penal, deva necessariamente percorrer os caminhos apontados pelo Ministério Público, o titular da futura ação penal. Entretanto, igualmente atuando no interesse da coletividade e na busca da verdade real, também lhe é factível explorar caminhos outros, diversos dos imaginados pelo parquet, dentro de um senso de discricionariedade inato à condução do procedimento.
Na atualidade, muito embora se aceite a função preparatória do inquérito como sendo a primordial, também se enxerga a existência de uma função preservadora, que consiste em afastar a tradicional característica unidirecional da investigação, voltada para a acusação, e cujo propósito consiste em evitar imputações indevidas e atuar como filtragem do sistema penal.[16] [17] [18]
A investigação policial não se presta somente a subsidiar a acusação, podendo pesquisar as hipóteses possíveis que permitam elucidar os fatos e a colher os dados que o demonstrem.[19]
No que concerne à qualidade dos elementos colhidos em sede policial, cumpre destacar que no atual panorama se tende a uma constitucionalização da investigação, na qual incidem diversos mecanismos relacionados ao contraditório e à ampla defesa, e que a Polícia Judiciária, quando investiga, está sujeita a forte fiscalização, operada pelo juiz (na audiência de custódia e regularmente nas concessões de prazos), pelo Ministério Público em seu controle externo (inclusive através de periódicas vistorias) e pela própria Corregedoria.
A experiência mostra que é comum a coexistência de divergências entre declarações emitidas na fase investigatória e em juízo, até mesmo quando em sede policial a testemunha, o suspeito ou o investigado já se façam acompanhar por defensor. Considerada a alteração legislativa que proíbe o “juiz de instrução e julgamento” de ter acesso aos elementos da investigação, na hipótese de negarem, em juízo, o teor de declarações ou confissões anteriores, ou desaparecerem ou falecerem repentinamente, o processo se prestará irremediavelmente à consagração da impunidade.
Crimes de corrupção, homicídio e tráfico de drogas, por exemplo, em muitas ocasiões são praticados no contexto de poderosas organizações criminosas e, em não raras vezes, a única prova de autoria é a testemunhal. É muito difícil supor que pressões decorrentes de estratégias defensórias operadas criminosamente poderiam inviabilizar a naturalidade dos testemunhos em juízo? E se a testemunha sumir ou morrer repentinamente? Uma eventual queima de arquivos, nesses casos, também teria o condão de inviabilizar, sem conserto, a prova para a condenação.
Além disso, sabe-se que no Brasil, diante das condições estruturais da Justiça e da própria mecânica processual, a coleta judicial de provas orais demora entre meses e anos. Mesmo as investigações, seja pela complexidade dos fatos ou por ausência de estrutura material do órgão investigador, podem se arrastar por anos a fio. Essas circunstâncias, por si só, caracterizam um poderoso obstáculo à descoberta da verdade. Que sentido existe, então, em dispensar um elemento quando ele é produzido no momento mais oportuno, próximo ao fato, em ocasião na qual ainda não incidiram a ação do tempo e a deletéria influência de terceiros? Testemunho é informação voltada ao passado, e a preservação da memória é a chave de sua utilidade.
O depoimento da fase investigatória, dada a sua proximidade em relação ao evento apurado, provavelmente conterá maior riqueza de detalhes e vivacidade do que aquele produzido meses ou anos depois, durante a instrução processual. Por isso tudo não se concebe que venha a ser simplesmente ignorado e que a ele não se possa atribuir sequer algum valor supletivo.
No campo da psicologia do testemunho, pesquisas apontam o decurso do tempo como um relevante fator de deterioração da memória. Sugerem que testemunhos são, essencialmente, informações irrepetíveis, na medida em que um depoimento jamais será rigorosamente igual ao outro. Indicam que a incidência temporal, também denominada “intervalo de retenção da memória”, poderá levar o sujeito ao esquecimento, à perda da nitidez e da riqueza de detalhes e à contaminação da memória. Destacam, ainda, que na percepção dos atores envolvidos na estrutura da Justiça Criminal, o testemunho é o elemento mais importante no contexto do quadro probatório.[20]
Quem milita no campo penal certamente já se deparou com a prática, por parte da Polícia Judiciária, de apresentação de autos investigatórios complementares, relacionados ao inquérito já encerrado, encaminhados à Justiça posteriormente ao início do processo judicial – situação relativamente comum em casos de maior complexidade –, a fim de inserir na instrução novos elementos informativos sobre o fato, até então desconhecidos, que tenham chegado a conhecimento e que não sejam necessariamente indicativos de novos crimes, mas um reforço daquilo que já se apurou. Essa providência encontra amparo no artigo 13, I, do Código de Processo Penal, segundo o qual incumbirá à autoridade policial “fornecer às autoridades judiciárias as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos”.[21]
A medida revela grande utilidade para conferir ao magistrado, através de novos dados informativos, maior amplitude de visão, para que este tenha a possibilidade de compreender a efetiva dinâmica delituosa e deles se utilizar supletivamente, em atenção à necessária busca pela verdade real.
Diante da mudança legislativa operada pela Lei 13.964/2019, esse será outro ponto da prática policial que será fulminado, porque nos termos da nova disciplina, apenas ao “juiz das garantias” é permitido o contato com elementos de informação oriundos da atividade investigatória. Pela natureza do conteúdo, o “juiz da instrução e julgamento” estará proibido de conhecê-lo, ao mesmo tempo em que o “juiz das garantias” terá exaurido a sua jurisdição.
Consideradas todas essas mencionadas situações possíveis e até prováveis de impunidade, como pode a lei admitir que haja o puro e simples descarte do acervo investigatório, e que o julgador não tenha a viabilidade de utiliza-lo, de forma suplementar, para melhor compreender um contexto, se desejar e entender relevante?
Essa situação esdrúxula de tornar o juiz um condutor cego, proibido de ter conhecimento da totalidade da persecução penal, torna-o uma marionete em um teatro fadado a levar o processo penal à inviabilidade concreta. A condição do “juiz de instrução e julgamento” se assemelha a de um médico cirurgião que precisa se basear, para realizar uma operação, apenas em uma foto de momento, sem ter acesso ao histórico e ao prontuário médico do paciente a ser operado.
Sustenta-se que ao ter contato com os elementos de informação o juiz perde a parcialidade para julgar o mérito, porque tende a se vincular psicologicamente com a acusação. Insistindo na analogia com a área médica resta claro que não há relação causal entre uma e outra coisa: munido de informações pretéritas do paciente e não apenas de uma imagem de momento, o cirurgião poderá dimensionar adequadamente a intervenção, deixando inclusive de realiza-la se essa for a medida que entenda prudente diante da globalidade dos dados disponíveis.
A limitação legalmente imposta a que o “juiz de instrução e julgamento” possa se utilizar, de maneira supletiva, dos elementos de informação, levanta dúvidas sobre a constitucionalidade da regra, porque cria uma disfunção sistemática insuperável na qualidade da prestação jurisdicional e afeta irremediavelmente, por conseguinte, a própria segurança da coletividade.
Fausto de Sanctis destaca o caráter constitucional da busca da verdade real, como um primado a ser buscado pelo juiz criminal, em razão da proteção social ínsita à tutela penal dos bens jurídicos. Segundo ele, a redução das funções judiciais e a dependência de que a prova emane exclusivamente da parte, afeta o conhecimento integral dos fatos por parte do magistrado e, como consequência, a eficácia do processo, tornando secundária a busca da verdade.[22] Sugere, portanto, uma inconstitucionalidade no afastamento do regime da verdade real.
É próprio da matéria penal que se busque, com profundidade, a realidade dos fatos, e tamanha é a profundidade desse axioma, que a própria confissão do réu, nos termos do artigo 197 do Código de Processo Penal, tem valor relativo, podendo ceder diante da conjuntura.[23]
Na qualidade de representante da vontade popular expressada através do voto, o Congresso Nacional é o detentor da prerrogativa de editar as leis que irão regular a coletividade a que representa. Indaga-se se estaria sujeito a alguma baliza nessa atividade legislativa ou se poderia, dentro de seus limites de competência, alterar as regras sociais sem qualquer balizamento.
Ao produzir as leis deve fazê-lo em compatibilidade com as exigências materialmente constitucionais. É, portanto, a Constituição, o limite ao qual o Congresso se sujeita.
Se de um lado existem direitos do investigado ou do réu a se tutelar, de outro remanescem interesses igualmente legítimos, das vítimas, de terem os seus algozes identificados, processados e condenados, e da própria sociedade, no sentido de que os seus integrantes individualmente considerados, nos termos do artigo 5º, caput, da Constituição Federal, recebam proteção satisfatória à vida, à liberdade, à propriedade, à honra e à segurança, e que estejam inseridos em uma sociedade organizada de forma que se possa preservar a sua existência com dignidade.
Interesses constitucionais, em seus estritos termos originários, a princípio não se incompatibilizam. Porém, a depender da regulamentação que venham a receber, na busca por um necessário equilíbrio para a preservação dos pretensos extremos, passa a ser imperiosa a incidência de dois princípios meta-jurídicos, que penetrarão no sistema constitucional como um todo e servirão como filtros interpretativos: o princípio da dignidade da pessoa humana, também consagrado como um dos fundamentos do Estado Brasileiro (art. 1º, III, da Constituição Federal), e o princípio da proporcionalidade.
Considerando-se que a finalidade do regime democrático é prover ao homem uma existência livre e digna, na qual tenha voz, um espaço livre do arbítrio e a proteção aos seus interesses jurídicos, dela emerge a dignidade da pessoa humana como um valor hermenêutico supremo e pré-estatal, que se impõe a todo o ordenamento jurídico.
Conceitualmente esse postulado é compreendido, em apertada síntese, como o conjunto de interesses e obrigações que confere, ao indivíduo, salvaguarda diante de atos desumanos e degradantes, e que lhe permita, ainda, ter para si as condições existenciais minimamente adequadas a uma vida sadia.
Vê-se, de pronto, que a dignidade da pessoa humana não se destina somente a proteger o indivíduo em face do poder punitivo estatal e de seus eventuais abusos. Também tem por escopo assegurar que o Estado não deixe o seu cidadão à mercê da própria sorte e da arbitrariedade de terceiros. Exige, assim, que o Estado disponibilize, aos membros da coletividade, meios teoricamente capazes de evitar a indignidade decorrente da afronta aos bens jurídicos que lhe são afetos e da própria insegurança pública dela eventualmente decorrente.
Quanto ao princípio da proporcionalidade, no que tange ao campo criminal, consagrou-se uma concepção “negativa”, estritamente liberal, segundo a qual o Estado está impedido de exagerar nas restrições aos direitos fundamentais a pretexto de combater infrações penais. Tal panorama, estabelecido em base monodirecional, não responde aos desafios da complexa sociedade moderna, tendo em vista que atende apenas a uma parcela da necessária moderação. Identificou-se então, entre os compromissos dos Estados democráticos, a necessidade de atender a outra face da proporcionalidade, identificada como “positiva” e conceituada como a “proibição da proteção deficiente”.
A junção das duas faces da proporcionalidade confere a esse método interpretativo e preceito meta-jurídico o sentido que lhe é mais coerente: de um lado o Estado não atuará indevida e excessivamente contra as liberdades do indivíduo, e de outro, não descuidará dos instrumentos necessários para proteger a segurança e assegurar os interesses dos membros da coletividade em face de agressões promovidas por terceiros.
Diante do mandamento constitucional, disposto no artigo 5º, caput, que obriga o Estado a tutelar os bens jurídicos fundamentais referentes aos membros da coletividade, não pode o legislador simplesmente deixar de observar a estrita moderação na linha divisória entre a proteção de investigados ou réus e a garantia dos interesses dos demais integrantes dessa mesma sociedade.
Segundo Mougenot, viola o princípio da proporcionalidade, nessa perspectiva da “proibição da proteção deficiente”, a atuação do Poder Legislativo que por intermédio de modificações processuais ou penais crie embaraços que inviabilizem a punição aos criminosos, porque nesse caso se retiraria da sociedade e dos indivíduos que a compõem, os mecanismos necessários à tutela de seus interesses individuais e coletivos. Cita o autor, como exemplos hipotéticos, uma lei que instituísse recursos que impedissem os processos de chegar ao seu final e uma lei que excluísse do sistema jurídico as hipóteses de prisão preventiva.[24]
Em relação ao regramento do “juiz das garantias” que proíbe o “juiz de instrução e julgamento” de acessar e utilizar, de forma supletiva, os elementos informativos do procedimento investigatório, já se destacou que afastará do horizonte da persecução penal a busca da verdade real, a única verdade compatível com o primado da segurança pública e a defesa social, além disso, criará uma disfuncionalidade sistemática insuperável, com repercussão na qualidade da prestação jurisdicional e na escalada da impunidade, e consequências irremediáveis para a segurança da coletividade.
Não se nega que o Estado possa estabelecer limites à busca da verdade real utilizando-se de critérios baseados na dignidade da pessoa humana e na proporcionalidade. E ele o faz, por exemplo, quando veda, para a incriminação, o emprego das provas materialmente ilícitas, das obtidas através de meio ilegais ou daquelas que delas derivem. Porém, ao impedir o contato do “juiz de instrução e julgamento” com os elementos de informação e aniquilar o seu possível uso supletivo, o legislador criou um bloqueio intransigente na busca da verdade real.
Assim, a discussão não paira sobre a viabilidade de um dispositivo legal embargar algum conteúdo material específico ou a certos meios de obtê-lo[25], porque esse embargo é, de fato, viável à luz de princípios constitucionais, e sim sobre a possibilidade de a nova lei impedir a existência do próprio trajeto destinado à busca da efetiva verdade.
Na prática, o Estado, optando pela primazia da defesa do réu, se limitará, de forma impositiva, a buscar soluções processuais meramente formais, aniquilando, no processo penal, a própria possibilidade de atender, com a mínima presteza, aos desígnios que fundamentam a tutela constitucional da defesa dos bens jurídicos penais (vida, patrimônio, honra, liberdade e segurança), empurrando a sociedade para um beco sem saída, no qual restará, aos seus membros, apenas aguardar a violação de seus direitos e o crescimento da insegurança.
Considerando que o Presidente da República não exerceu o necessário veto sobre polêmico dispositivo e suas minudências, o qual era ansiosamente esperado por considerável parcela da sociedade civil, e que o complexo problema criado pelo Congresso Nacional, que se projeta contra a segurança pública agora é concreto, dependendo, para começar a gerar efeitos, apenas de um curto período de vacatio legis, resta depositar as expectativas em que o Poder Judiciário, nas ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas contra o instituto, tenha bom senso e afaste a aplicação da lei ou minore os seus efeitos negativos, preservando a higidez do sistema processual e impedindo uma grave e prenunciada atribulação na segurança pública.