3 – A LEI DE TERRAS
A Lei de Terras (Lei 601), de acordo com Laura Beck Varela (2006, p.134), teve como objetivo “conferir um estatuto jurídico à propriedade privada, adequando-a às novas exigências econômicas, além de fomentar a colonização”.
Logo em seu art. 1º, a Lei de terras estatuía que o único modo de adquirir as terras devolutas seria pela compra, com exceção das terras situadas a até 10 léguas do limite com um país estrangeiro, podendo, estas, serem concedidas gratuitamente.
Dispositivo de enorme relevância encontrava-se no art. 3º, da referida lei, ao definir quais terras seriam consideradas devolutas, enquadrando-se nesse conceito “as que não se acharem applicadas a algum uso publico nacional, provincial, ou municipal”; “as que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura”; “as que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei”; e “as que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei”. Desta forma, fazia-se a diferenciação entre as terras públicas e as privadas.
José Luiz Cavalcante (2005, online), ao analisar o termo “terras devolutas”, afirma que, durante o período colonial, ele tinha o significado de “terra cujo concessionário não cumpria as condições impostas para sua utilização, o que ocasionava a sua devolução para quem a concedeu: a Coroa”. Com o passar dos anos, entretanto, o termo ganhou o significado de terra “vaga”. A Lei 601 utilizava este termo nos dois sentidos ao dispor que as terras não ocupadas ou cultivadas seriam consideradas devolutas.
Segundo Laura Beck Varela (2005, p.141-146), muitos juristas, como Teixeira de Freitas, criticaram o conceito disposto na lei por ser extremamente confuso. Além disso, continua a autora (2005, p.141-146), havia a dúvida se a nova lei, ao instituir que o único modo de aquisição de terras devolutas seria a compra, teria acabado com a possibilidade de aquisição de terra devolutas pelo mero apossamento. Juristas renomados, como Clóvis Beviláqua, defendiam a ainda existência da usucapião quadragenária de terras públicas, prevista na legislação civil da época, mesmo sob a égide da Lei de Terras.
Os arts. 4º e 5º da Lei de Terras traziam as possibilidades de revalidação e legitimação das antigas sesmarias e posses. Para as sesmarias (e outras concessões estatais), havia a necessidade de se acharem “cultivadas, ou com principios de cultura, e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionario, ou do quem os represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com que foram concedidas”.
Já quanto às posses, o art. 5º previa o seguinte:
Art. 5º Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou havidas do primeiro occupante, que se acharem cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual do respectivo posseiro, ou de quem o represente, guardadas as regras seguintes:
§ 1º Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação, comprehenderá, além do terreno aproveitado ou do necessario para pastagem dos animaes que tiver o posseiro, outrotanto mais de terreno devoluto que houver contiguo, comtanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de uma sesmaria para cultura ou criação, igual ás ultimas concedidas na mesma comarca ou na mais vizinha.
§ 2º As posses em circumstancias de serem legitimadas, que se acharem em sesmarias ou outras concessões do Governo, não incursas em commisso ou revalidadas por esta Lei, só darão direito á indemnização pelas bemfeitorias.
Exceptua-se desta regra o caso do verificar-se a favor da posse qualquer das seguintes hypotheses: 1ª, o ter sido declarada boa por sentença passada em julgado entre os sesmeiros ou concessionarios e os posseiros; 2ª, ter sido estabelecida antes da medição da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco annos; 3ª, ter sido estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por 10 annos.
§ 3º Dada a excepção do paragrapho antecedente, os posseiros gozarão do favor que lhes assegura o § 1°, competindo ao respectivo sesmeiro ou concessionario ficar com o terreno que sobrar da divisão feita entre os ditos posseiros, ou considerar-se tambem posseiro para entrar em rateio igual com elles.
§ 4º Os campos de uso commum dos moradores de uma ou mais freguezias, municipios ou comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a pratica actual, emquanto por Lei não se dispuzer o contrario.
Nota-se, desta forma, a presença, em ambos os tipos de validação, dos princípios da ocupação e do cultivo, contendo, porém, para o caso das posses, um limite espacial de uma sesmaria, podendo este limite ser excetuado nos casos do §2º do art.5º.
Para Laura Becker Varela (2005, p.154-157), a partir da edição da Lei de Terras, rompia-se com o princípio do cultivo como motivador e justificador da propriedade, pois as terras adquiridas a partir de compra e venda não poderiam mais ser requisitadas de volta pelo governo brasileiro caso não fossem cultivadas, a não ser em caso de desapropriação. Desta forma, aqueles princípios – cultivo e ocupação - seriam ainda importantes para a validação e legitimação das posses e sesmarias (e, em alguns casos, para aquisição da terra), demonstrando uma eficácia para atos passados, mas não teriam muita influência no direito de propriedade posterior à vigência da Lei de Terras.
Varela (2005, p.169), no entanto, ressalva que o princípio do cultivo ainda teve certo respaldo no Direito brasileiro, servindo de base para algumas normas, como no caso do Aviso Circular de 19 de julho de 1873 e do Aviso de 1862, que dispunham que as terras públicas não deveriam ser alienadas a pessoas ou empresas que não pudessem cultivá-las.
A Lei também demonstrava grande preocupação com a regularização e medição das terras, prevendo a perda do terreno não cultivado para os possuidores que não fizeram a medição no prazo assinalado pelo Governo (art.8º); a obrigatoriedade dos posseiros em tirar o título do terreno, sob pena de não o poderem alienar ou hipotecar (art.11); a criação de registros de terras possuídas nas freguesias (art. 13); e a autorização para criação da Repartição Geral das Terras Públicas, que “será encarregada de dirigir a medição, divisão, e descripção das terras devolutas, e sua conservação, de fiscalisar a venda e distribuição dellas, e de promover a colonisação nacional e estrangeira” (art.21).
No art. 14, havia a previsão do meio de alienação das terras devolutas. Os arts. 15 e 16, respectivamente, tratavam a respeito do direito de preferência dos posseiros que cultivem seus terrenos para aquisição de terras devolutas contíguas a eles, desde que demonstrassem a capacidade para cultiva-las; e sobre os ônus impostos aos adquirentes de terras devolutas, como o direito de passagem.
Quanto à questão da imigração para colonizar e trazer mão de obra para as lavouras, a Lei de Terras trazia três dispositivos muito importantes. O primeiro era o art.19, que previa a utilização do produto da venda das terras devolutas para a medição de terrenos e para a “importação de colonos livres”; outro dispositivo era o art.17, que dispunha sobre a possibilidade dos estrangeiros comprarem terras e requererem a naturalização “depois de dous annos de residencia pela fórma por que o foram os da colonia de S, Leopoldo”, ficando isentos do serviço militar, excetuando a guarda nacional presente em cada município. Por fim, havia o art. 18, autorizando o governo a trazer, às suas custas, colonos livres para serem “empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração publica”, ou para formações de colônias em locais convenientes. O governo deveria tomar, antecipadamente, medidas “para que taes colonos achem emprego logo que desembarcarem”.
Estes dispositivos demonstravam claramente que a intenção de usar o imigrante como mão de obra nas lavouras (substituindo os escravos) estava acima da intenção de os utilizar como meros colonos independentes, para povoamento. Os termos do art. 18 não poderiam ser mais esclarecedores dispor os imigrantes como “empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração Pública”.
Em linhas gerais, esses foram os principais dispositivos da Lei de Terras. Como ressalta Ricardo Marcelo Fonseca (2005, online), este instrumento normativo representou a mudança de uma concepção pré-moderna de propriedade para uma concepção moderna (como direito absoluto), pois, se antes da Lei de Terras era possível falar em sesmeiro, concessionário e posseiro, depois dela surge a figura do proprietário. Completava-se, desta forma, nas palavras de Emília Viotti da Costa (1998, p.172), a transição “de um período no qual a propriedade da terra significava essencialmente prestígio social, para um período no qual ela representa essencialmente poder econômico”.
Por fim, segundo Ruy Cirne Lima (1990, p.71), a Lei de Terras contou com os seguintes instrumentos para sua regulamentação, que visavam esclarecer seu conteúdo e sanar omissões, tratando de questões como medições de terras e responsabilidades administrativas, além de, muitas vezes, ampliar o prazo para regularização das Terras: Decreto n. 1318 de 30 de janeiro de 1854; Regulamento de 8 de maio de 1854, Portaria 385 de 19 de dezembro de 1855 e Decreto 6.129 de 23 de fevereiro de 1876.
4 – CONSEQUÊNCIAS DA LEI DE TERRAS
Como exposto anteriormente, a Lei de Terras tinha como objetivos principais trazer mão de obra livre para as lavouras brasileiras - imigrantes estes que também serviriam para colonizar o extenso, mas pouco povoado, Brasil do século XIX -; e fazer uma regularização fundiária no país, acabando, de vez, com a concepção de propriedade pré-moderna e trazendo a tona uma propriedade moderna.
Um dos seus principais efeitos, segundo James Holston (2013, p.185), foi transformar a terra em commodity, sujeitando-a ao mercado de uma forma legal (pois já há algum tempo havia venda de posse de terras, entre outros negócios relativos a este bem). No mesmo sentido, João Sette Whitaker Ferreira (2005, online) afirma que, antes da Lei de Terras, a riqueza dos grandes latifundiários era medida no número de escravos que eles tinham – estes eram até objeto de hipoteca. Após a Lei 601, houve uma mudança, passando o parâmetro de riqueza a ser determinado pela quantidade de terras que uma pessoa detinha. A terra, desta forma, passava a valer como capital, ganhando mais e mais valor com o decorrer dos anos.
Entretanto, como afirma Ruy Cirne Lima (1990, p.75), a Lei de Terras não surtiu o efeito desejado quanto aos seus dois principais focos.
Em relação à regularização fundiária, medição e demarcação de terras, continua Lima (1990, p.75-76), era intensa a desorganização administrativa, como ocorria na Repartição Geral de Terras, efetivamente criada pelo regulamento de 1854 e que consumia muitos recursos e apresentava poucos resultados efetivos, visto que havia poucos registros de demarcações de terras feitos durante o século XIX.
Segundo Marco Antônio Both da Silva (2015, online), “faltavam funcionários qualificados, agrimensores e técnicos, e o prédio onde funcionava o MACOP não atendia às necessidades dos trabalhos realizados”, demonstrando a completa falta de estrutura para a realização do trabalho de demarcação e registro.
Por outro lado, de acordo com James Holston (2013, p.186-187), muitos desses problemas deveram-se à resistência de sesmeiros e posseiros em legalizar as terras. Isso ocorria porque eles teriam de pagar as despesas com demarcação, registro, além do fato de que esta legalização impossibilitaria a incorporação, muitas vezes fraudulenta, de outras terras, o que era, via de regra, uma exigência fática da produção agrícola da época.
José Sacchetta Ramos Mendes (2009, online) afirma que a interpretação flexível dada a Lei de Terras ensejou um número imenso de fraudes, com vários posseiros usando documentos falsos para legitimar uma posse anterior não existente, adquirindo, assim, terrenos públicos de maneira ilícita. Carlos Alberto Bittar Filho (2000, p.180), corroborando com este entedimento, afirma que esses golpes “acabaram por dilapidar o patrimônio público, criando-se, às suas custas, imensos latifúndios particulares”.
James Holston (2013, p.188), inclusive, cita que o “grileiro” - pessoa que se apropria e vende, através de fraudes, terras que não são suas - surge em resposta à Lei de Terras, dispondo que este instrumento normativo gerou uma série de falsificações sem precedentes na história nacional. Segundo o Holston (188-190), os grileiros davam uma roupagem legalizada às terras invadidas, elaborando vários documentos referentes a supostas transações antecedentes relativas à terra. Para tanto, pagavam impostos sobre o terreno, faziam doações de parte da propriedade, vendiam parte dela, e, principalmente, registravam esses fatos nos livros da paróquia local, que, muitas vezes, era tida como um primeiro registro. Repetidamente esses grileiros eram grandes proprietários de terras ou agiam em conluio com eles, expulsando pequenos posseiros que, por isso, se sentiam desprotegidos pela Lei de Terras, a qual eram obrigados a cumprir.
Essas fraudes, muitas vezes, não eram sofisticadas, como exemplifica Cristiano Luís Christillino (2010, p.224) ao citar o caso de Thomaz Rodrigues Gonçalves, que declarou, em 1856, ser possuidor de terras na extensão de mais de 5.000 hectares, na estrada de Santa Cruz, posse essa iniciada, segundo declaração do próprio interessado, em 1855, ou seja, 5 anos após a vigência da Lei de Terras, não sendo, portanto, atingido pelo benefício do art.5º da Lei 601. Outro ponto denotador deste ardil esta na tamanho declarado da posse. Segundo Christillino (2010, p.224), “uma extensão agrícola dificilmente conseguiria ultrapassar os 300 hectares em oito anos de atividade”. Não havia, assim, possibilidade de explorar milhares de hectares em apenas um ano de posse, configurando “uma fraude clara, expressa no próprio registro paroquial”.
Corroborando com este fato, Marco Antônio Both da Silva (2015, online) afirma que, apesar de um ou outro dispositivo legal tentar preservar os direitos de posseiros de baixa renda, pouco foi feito para proteger essa camada mais vulnerável da população. Além disso, continua Silva (2015, online), a própria influência dos latifundiários garantia que a aplicação da Lei de Terras, e as fraudes cometidas em seu nome, os beneficiassem, pois o processo de legitimação e validação partiria do interessado, e essa “tarefa era cumprida administrativamente por um Juiz Comissário nomeado pelo presidente da província, ambos mantendo relações próximas, para não dizer promíscuas, com as elites regionais das comarcas onde atuavam”.
Márcia Motta (1998, p.164), inclusive, cita relatório do Ministério da Agricultura, de 1870, expondo que a Lei de Terras deveria ser revista, pois ela não havia impedido, mas estimulado, a invasão de terras públicas, que acabavam por possuídas ilegalmente.
Desta forma, poucas posses foram legitimadas e poucas sesmarias revalidadas - muitas delas através de fraudes - durante as décadas seguintes à vigência da Lei de Terras. Segundo José Luís Cavalcante (2005, online), o governo brasileiro “abandonou a inspeção de terras públicas em 1878, depois de ter realizado pouquíssimo para impor a lei”.
Além disso, ao estabelecer um preço considerável para aquisição de terras devolutas, a Lei de Terras acabou por excluir toda uma massa populacional do acesso ao bem imobiliário, pois poucos podiam pagar o preço exigido pelo governo brasileiro, beneficiando, mais uma vez, as elites que tinham interesse na criação da Lei 601 e dispunham de renda e influência suficiente para adquirir terras.
Quanto à questão da vinda de imigrantes estrangeiros para trabalharem como mão de obra nas lavouras e colonizarem o país, também houve fracasso. José Luís Cavalcante (2005, online) e Emília Viotti da Costa (1998, p.14) afirmam que não houve uma substituição intensa do trabalho escravo pelo dos imigrantes assalariados, mas, sim, um aumento do tráfico interno, onde os escravos das regiões de lavoura decadente, como o norte-nordeste, eram adquiridos pelos grandes agricultores do sudeste-sul.
A dificuldade de acesso a terra, devido ao seu preço elevado, também afetou os imigrantes, pois, em sua maioria pobres, não conseguiam arcar com os valores requeridos. Este, segundo José Sacchetta Ramos Mendes (2009, p.), foi um dos principais fatores de desestímulo à vinda de estrangeiros para trabalharem nas lavouras, visto que outros países, como os EUA, garantiam o acesso a terra por doação, atraindo um maior fluxo de imigração.
Além disso, as imensas fraudes na aquisição de terras devolutas e o baixo índice de demarcação destas fez com que o Governo brasileiro pouco arrecadasse com suas vendas, não tendo, desta forma, muita verba para financiar a vinda de imigrantes europeus para a lavoura brasileira. Imigração esta que só viria a crescer no final do século XIX e início do século XX.
De acordo com Caio Prado Júnior (1981, p.195-197), outro fator de desestímulo para a imigração europeia eram os maus tratos sofridos pelos imigrantes por parte dos grandes latifundiários, que não estavam acostumados à mão de obra livre e acabavam por tratar os colonos de forma similar aos escravos. Inclusive, em 1859, foi promulgado na Prússia o Rescrito de Heydt, que proibia a imigração de nacionais daquele país para o Brasil, em decorrência do tratamento dado aos imigrantes nas lavouras nacionais.
Como contraponto, Marco Antônio Both da Silva (2015, online), afirma que, mesmo concordando que a Lei de Terras teve pouca efetividade, pouco realizando durante seu longo período de vigência, o fato de ela ter servido de base para legislações posteriores, e seus efeitos e realizações terem sido “suportes importantes sobre os quais, em termos da estruturação da realidade fundiária brasileira”, não há motivos para dizer que este instrumento normativo foi uma “letra morta”, ou que ele “não pegou”.
Talvez essa influência nas legislações posteriores sirva de justificativa para o cenário fundiário atual do país, onde a concentração prevalece, como demonstra pesquisa do ano de 2016, realizada apenas com imóveis particulares registrados pelo Incra (online), onde 4.720.094 imóveis com até 2 módulos fiscais de extensão detinham uma área de 101.089.744, 9 hectares, enquanto os 23.450 imóveis maiores de 50 módulos fiscais detinha uma área de 118.176.997, 58 hectares.