O processo de execução fiscal e a desconsideração da personalidade jurídica

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08/01/2020 às 17:27
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5. Desconsideração da Personalidade Jurídica no Grupo Econômico e a Nova Regra Trazida pela Lei da Liberdade Econômica

A união de sociedades empresárias objetivando eventualmente uma lucratividade maior é bastante comum, o que é intitulado pela doutrina de grupos pluriempresariais. Nesse contexto Edilson Enedino das Chagas conclui sobre a existência de grupos de subordinação e grupos de coordenação:

Como ponto de partida, além da classificação doutrinária dos grupos pluriempresariais fem ‘de direito’ e ‘de fato’, que se infere, por exemplo, da Lei das S.A brasileira, destacando-se como principal elemento diferenciador a formalização do grupo, tem-se como relevante a classificação que polariza os grupos de subordinação dos grupos de coordenação. Nesse particular, subordinação haverá quando, no contexto da concentração empresarial, perceber-se que uma sociedade ultima por impor sua vontade em relação à outra. Isso se efetivará com o exercício do poder de controle, comumente alcançado com a preponderância da participação societária da controladora em relação à controlada (por exemplo, o disposto no art. 265 da LSA). Quanto a essa espécie de controle, de controle interno se trata, uma vez que decorrente da estrutura de formação dos ente societários. Além disso, a posição de controle tam´bem se poderá operacionalizar por meio de contratos, como o contrato de franquia, ingerência potencial, da franqueadora em relação à franqueada, aidna que não sejam sócias entre si, hipótese esta de controle externo. (2018, p. 364)

Como já dito anteriormente, a Lei nº 13.874/2019 que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica traz no parágrafo 4º do artigo 50, do Código Civil que a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

Com efeito, mesmo na presença dos chamados grupos de subordinação e grupos de coordenação, caso não estejam presentes os pressupostos do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, o juiz não está autorizado a aplicar a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito de empresa.

Entretanto, como o objeto deste estudo é abordar a aplicação ou não do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do processo executivo fiscal, e considerando que o Código Civil deve servir como norma subsidiária do Código Tributário Nacional, desde já fica consignado que o entendimento do autor deste trabalho, é que o referido parágrafo 4º do artigo 50, do Código Civil deve ter efeito sobre os pressupostos para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no processo de execução fiscal, no sentido de que a Fazenda Pública deve comprovar o interesse comum, tal como determina o inciso I, do artigo 124 do Código Tribunal Nacional, do alegado responsável solidário na ocorrência do fato gerador, tudo em razão de que não gera responsabilidade solidária só pelo fato de as empresas que participarem do mesmo grupo econômico.

Este ponto será melhor abordado mais abaixo, no momento que o autor deste trabalho trará o entendimento do Superior Tribunal de Justiça.


6. Alguns Princípios Constitucionais e Infraconstitucionais Aplicáveis ao Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica

Como será exposto mais adiante, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica tem como um de seus objetivos proporcionar à pessoa contra a qual se pretende ver incluída no pólo passivo de uma execução ou cumprimento de sentença, que possa exercer sua defesa antes de aplicar eventual desconsideração da personalidade jurídica (normal ou inversa).

Nesse sentido, importante trazer neste estudo que antes de se desconsiderar a personalidade jurídica para excutir bens de outra pessoa a ela ligada, deve-se fazer presentes alguns princípios constitucionais ou infraconstitucionais, os estão intimamente ligados ao tema em questão.

Antes, porém, importante lembrar que a palavra “princípio” denota ser a origem, a base de algo, que para a ciência jurídica pode ser considerado que um “mandamento”, no sentido de que os princípios devem estar presentes no processo sob pena de deixar este instrumento aplicador do direito material, anulável, nulo ou ineficaz conforme a situação.

Por obvio, exitem diversos princípios, mas para que este estudo não fiquem cansativo, propõe-se citar apenas alguns deles.

O primeiro que se pode mencionar é o princípio do devido processo legal trazido pelo inciso LIV, do artigo 5º da Constituição Federal que assim dispõe:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

O princípio do devido processo legal dada a sua importância é tido por parte da doutrina como o princípio englobador de todos os outros no processo, dada a importância e necessidade de se respeitar os atos processuais que se desencadeiam nos diversos tipos de procedimentos previstos nas legislações.

Comentário bastante esclarecedor é o de Olavo de Oliveira Neto ao mencionar a lição de Nelson Nery Junior:

Já se tornou clássica a lição de Nelson Nery Junior acerca do princípio do devido processo legal: ‘O princípio fundamental do processo civil que entendemos como a base sobre a qual todos os outros se sustentam, é o devido processo legal, expressão oriunda da inglesa due process of law. (...) Em nosso parecer, bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as consequências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e uma sentença justa. É, por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies’. Em outros termos, segundo o autor, trata-se de um princípio que englobaria todos os demais, sendo desnecessária a menção pela norma constitucional de outros princípios, bastando o devido processo legal, previsto no art. 5º, LIV, da Constituição da República, para que todos dele decorressem. (2015, p. 81/82).

Nesse sentido, ao prever o incidente de desconsideração da personalidade jurídica o CPC/2015 procurou antes de promover a constrição em patrimônio de terceiros ligados ao devedor de dívida pecuniária, oportunizar que fossem praticados atos processuais para verificar a viabilidade ou não de desconsiderar a personalidade jurídica.

Outros dois princípios que também devem se fazer presente ao se tratar de desconsideração da personalidade jurídica são o do contraditório e da ampla, previstos no inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal, o qual prevê que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Além de tais princípios estarem na própria Constituição Federal, o CPC/2015 também os trouxe em seu artigo 7º, dispondo o seguinte:

Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.

O princípio do contraditório traz a ideia de existir no processo a dialética entre as partes para que o juiz seja auxiliado na formação de sua convicção quando do proferimento da decisão judicial.

Corolário do contraditório é o dever de o juiz, de regra geral, evitar a chamda “decisão surpresa” prevista no artigo 10 do CPC/2015 que dispõe:

Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero expõem a razão do princípio do contraditório em cotejo com a proibição de o juiz proferir decisão surpresa:

Portanto, é na teoria da interpretação que reside o elemento que justifica os novos contornos do direito ao contraditório no processo civil. Essa nova ideia de contraditório, como facilmente se percebe, acaba alterando a maneira como o juiz e as partes se comportam diante da ordem jurídica. Nessa nova visão, é absolutamente indispensável tenham as partes a possibilidade de pronunciar-se sobre tudo o que pode servir de ponto de apoio para a decisão da causa, inclusive quanto àquelas questões que o juiz pode apreciar de ofício (art. 10). Exigir-se que o pronunciamento jurisdicional tenha apoio tão somente em elementos sobre os quais as partes tenham tido a oportunidade de manifestarem-se significa evitar a decisão-surpresa no processo. Nesse sentido, têm as partes de se pronunciar, previamente à tomada de decisão também no que atine à eventual visão jurídica do órgão jurisdicional diversa daquela aportada por essas ao processo. Isso quer dizer que o brocardo Iura Novit Curia só autoriza a variação da visão jurídica dos fatos alegados no processo acaso as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar previamente à tomada de decisão (art.10). Fora daí há evidente violação à colaboração e ao diálogo no processo, com afronta inequívoca ao dever judicial de consulta e ao contraditório. (2015, p. 502/503)

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Com isso, antes de o juiz determinar o ataque ao patrimônio do terceiro ligado ao devedor em eventual processo de execução ou na fase do cumprimento de sentença, deve aquele previamente permitir o contraditório por meio da instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para evitar decisão surpresa.

Já o princípio da ampla defesa traz a ideia de que é dado o direito de as partes reagirem no processo umas contras as outras ou então contra decisões do juiz, sendo permitida a utilização da defesa propriamente dita como a contestação, ou então a utilização de outros expedientes como os recursos por exemplo.

Nesse sentido vem a lição de Olavo de Oliveira Neto:

Realmente, o Princípio da Ampla defesa não está limitado à formulação de defesa por parte do réu, mas abrange tanto a sua possibilidade de reação quanto à possibilidade de reação do próprio autor, quando é o réu quem pratica o ato processual. Inúmeros são os exemplos contidos no Código, como a regra do art. 437, § 1º, que determina que sempre que uma parte juntar documento  aos autos o juiz deverá ouvir a parte contrária, no prazo de cinco dias. Destarte, pois, o princípio poderia ser denominado como ‘princípio da ampla possibilidade de reação das partes’, referindo-se com isso à possibilidade de reação de qualquer uma delas (embora também alcance os terceiros legitimados intervenientes no feito), com a finalidade de efetivar o contraditório no bojo do processo. Tal faculdade, porém, não pode ser considerada como a possibilidade de atuação ilimitada. Ensina João Batista Lopes, com a sua já costumeira precisão, que ‘É corrente a identificação de ampla defesa com defesa ilimitada, mas esta concepção implicaria outorgar-lhe caráter absoluto o que entraria  em conflito aberto com a própria ideia de unidade, que só se alcança por meio de uma operação relacional (LUHMANN, Niklas. Sociedad y sistema: laambición de la teoria. Trad. Santiago Lopez e Dorothe Shmitz. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1990. p 89). Quando se fala em ampla defesa, não se pretende, pois, cogitar de defesa ilimitada ou indiscriminada, mas sim de defesa completa ou abrangente. A utilização do adjetivo ampla revela o propósito de evitar o cerceamento, mas de modo algum pode dispensar a adequação e a pertinência, requisitos indispensáveis para o exercício do direito de defesa. Por exemplo, se se cuidar de pleito petitório, não poderá o réu valer-se de defesa de caráter possessório, salvo excepcionalmente, de modo que o juiz deverá indeferir eventual requerimento de prova para esse fim’. (2015, p. 88/89).

Para o presente trabalho, pode-se afirmar que a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica também faz parte da aplicação do princípio da ampla defesa, uma vez que se trata de uma reação do terceiro no momento em que se pretende colocá-lo ao lado do devedor para ser responsabilizado com seus bens.

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Sobre o autor
JOSE WILSON BOIAGO JUNIOR

Advogado de Empresas. Professor Universitário. Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba. Autor de artigos jurídicos. Autor e coautor de Livros jurídicos. Aula Individual de Processo Civil e Dir. Civil / Discussão de Casos. Whatsapp: (15) 99791-1976 Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1046181932802135 LinkedIn: http://linkedin.com/in/josé-wilson-boiago-júnior-104674b8 Instagram: @professor_boiago

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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