I – O FATO
O site do jornal O Globo, em sua edição de 3 de fevereiro do corrente ano, informou que ao pautar o processo sobre tribunal do júri para a segunda semana depois do recesso, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, quis dar um recado para o Palácio do Planalto de que a Corte está alinhada com a política de segurança do governo, levando-se em conta que os crimes contra a vida são, tem tese, os mais graves.
No Supremo, a maioria considera claro o trecho da Constituição Federal que assegura “a soberania dos veredictos” do júri. Essa frase, na visão dos ministros, torna fundamental a prisão imediata dos condenados.
Em novembro, Toffoli, que votou contra as prisões imediatas de condenados em segunda instância, fez em plenário uma ressalva sobre o tribunal do júri. Para ele, deve haver prisão imediata em casos de crimes contra a vida. No voto, o ministro chamou a atenção para a epidemia de homicídios e a impunidade nesse tipo de crime. Outros ministros se manifestaram da mesma forma na ocasião, antecipando o tom do julgamento da próxima semana.
Sobre a matéria já dissemos.
II – O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
A instituição do Júri está sob a ameaça da prisão antecipada decorrente de uma variante da tese contestada nas ADC 43, 44 e 54 no STF.
Com efeito, há decisões no STF – por todos, veja-se a posição do ministro Dias Toffoli – no sentido de considerar a decisão do júri como instância equivalente ao esgotamento da prova e, assim, permitir a prisão do réu de imediato.
Sob nenhuma hipótese a soberania do Júri pode implicar cumprimento imediato da pena. Soberania, no máximo, pode significar aquilo que constou do voto recentíssimo do Min. Celso de Mello, quem decidiu, em sede do RHC 117.076/PR, que não cabe apelação ao Ministério Público, fundada em alegado conflito da deliberação absolutória com a prova dos autos. Soberania é nesse sentido. E não no sentido de que a decisão do Júri esgota a discussão probatória contra o réu. Ou eliminemos os recursos do júri a favor da defesa.
Desde 2009, o STF entendia que o condenado poderia continuar livre até que se esgotassem todos os recursos no Judiciário. Naquele ano, a Corte decidiu que a prisão só era definitiva após o chamado "trânsito em julgado" do processo, por respeito ao princípio da presunção de inocência.
Mas, o STF, em decisões recentes, já tem admitido que o mandado de prisão definitiva somente será objeto de execução com o trânsito em julgado de todos os recursos.
Com base na garantia constitucional de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, concedeu Habeas Corpus ao ex-vereador de Goiânia Amarildo Pereira, condenado em segunda instância a 7 anos de prisão por peculato — ele foi representado pelo advogado Carlos Leonardo Pereira Segurado.
“Como se sabe, a nossa Constituição não é uma mera folha de papel, que pode ser rasgada sempre que contrarie as forças políticas do momento”, criticou o ministro, ao afirmar que não há na Constituição qualquer menção à execução antecipada de pena. Na decisão, o ministro Lewandowski lembrou que foi enfático em seu voto contrário à prisão após sentença de segundo grau, quando o tema foi discutido no Plenário da corte — na ocasião, a maioria decidiu por permitir a prisão antecipada.
Segundo ele, trata-se do princípio da presunção de inocência da pessoa e que as garantias individuais devem ser respeitadas, “ainda que os anseios momentâneos, mesmo aqueles mais nobres, a exemplo do combate à corrupção, requeiram solução diversa, uma vez que, a única saída legítima para qualquer crise consiste, justamente, no incondicional respeito às normas constitucionais”.
Para evitar a prisão definitiva, após decisão de segunda instância, será caso do presidente da República ajuizar habeas corpus, primeiramente ao STJ, e, caso não obtenha sucesso, ao STF.
A providência foi concedida no HC 147.427 - GO.
Disse o ministro relator Ricardo Lewandowski:
"Se, por um lado, o princípio constitucional da presunção de inocência não resta malferido diante da previsão, em nosso ordenamento jurídico, das prisões cautelares, desde que observados os requisitos legais, por outro, não permite que o Estado trate como culpado aquele que não sofreu condenação penal transitada em julgado, sobretudo sem qualquer motivação idônea para restringir antecipadamente sua liberdade."
III – O PRINCIPIO DA SOBERANIA DO JÚRI
O pacote Anticrime do Ministro Moro considera que cabe prisão após o julgamento do Tribunal do Júri.
Em tese, da decisão do júri que condena, cabe recurso por nulidade e manifesta contrariedade à prova dos autos, razão pela qual o júri esgota a facticidade.
A decisão de jurado equivale a “trânsito em julgado”? Não. Não equivale.
Disse bem Lênio Streck (Júri: prisão e vedação de apelação para a acusação) que é inconstitucional tal posição que justifica a imediata execução da pena. Sob nenhuma hipótese a soberania do júri implica cumprimento imediato da pena. Júri é primeiro grau. Se a soberania do júri é direito fundamental (garantia), como pode se virar (ou ser usada) contra o réu? Não esqueçamos que cada tese tem uma antítese: se a decisão do júri “prende” de imediato, então não cabe recurso da absolvição. Simples assim. Salvo se existir nulidade. Mesmo assim, essa nulidade não pode prejudicar o acusado.
A condenação no júri popular, em primeiro grau, não justifica, de imediato, de forma antecipada, a prisão.
A prisão somente poderá se dar não por consequência da sentença condenatória, mas porque estão presentes os pressupostos de uma prisão preventiva cautelar e provisória, à luz do artigo 312 do CPP.
Em nome do princípio da presunção de inocência, a condenação pelo júri não é condição suficiente para a prisão definitiva. Esta somente poderá se dar com o trânsito em julgado da última decisão de mérito.
IV – A NECESSÁRIA PONDERAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS ENFOCADOS
Deve ser feita uma ponderação entre os dois princípios: o da soberania do júri e o da presunção de inocência.
Entre princípios não se pode falar em revogação, mas de preponderância de um em relação ao outro visto o caso em tela.
Realmente entre princípios, já dizia Dworkin, não se fala em revogação, mas de ponderação, de forma que através da concordância prática, deve haver a devida conciliação entre esses dois princípios magnos, em discórdia.
Para a doutrina, na linha de Dworkin, as regras são aplicáveis por completo ou não são, de modo absoluto aplicáveis. Trata-se de um tudo ou nada.
Já os princípios jurídicos atuam de um modo diverso: mesmo aqueles que não mais se assemelham às regras não se aplicam de forma automática e necessariamente quando as condições previstas como suficientes para sua aplicação se manifestam.
Ainda para Dworkin, os princípios possuem uma dimensão de peso ou de importância. Assim quando se intercruzam vários princípios quem há de resolver o conflito deve levar em conta o peso relativo a cada um deles.
Se duas regras entram em conflito uma delas não é válida.
Para Alexy o ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios está em que estes últimos são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e materiais existentes. São mandamentos de otimização, cuja principal característica está no fato de poderem ser cumpridos em diferentes graus e de a medida devida de seu cumprimento não depender exclusivamente de possibilidades materiais mas de possibilidades jurídicas.
As regras podem ser cumpridas ou não cumpridas
Para Alexy, se há colisão dos princípios tudo se passa de modo inteiramente distinto, pois se algo é vedado por um princípio, mas permitido por outro, um deles deverá recuar
Ora, o princípio da soberania do júri quer dizer que um tribunal não poderá derrubar as conclusões do júri a não ser que haja uma nulidade manifesta no julgamento feito pelos jurados. Nada mais que isso.
Outra não é a lição de Marques Porto (Júri – Procedimento e aspectos do julgamento(Questionários), 5ª edição, São Paulo, Saraiva, pág. 35. que diz que ¨o entendimento do conceito de soberania reaparece com seus efeitos após o julgamento pelo Tribunal do Júri, quando do exame de apelação, buscando a rescisão, pelo mérito, do decidido pelos jurados; ao Tribunal do Júri cabe proferir decisão então não manifestadamente contrária à prova, que encontre amparo em contingente menor de provas em conflito, e decisões, com tal amparo, que não prevaleceriam, em regra, quando, proferidas por juiz singular, são mantidas, porque excepcional a marginalização de decisões de jurados, circunstância a demonstrar que, no julgamento da apelação para avaliação do que foi decidido pelos jurados, o entendimento do conceito de soberania dá atenção aos seus limites, agora sem caráter ampliativo e indevido.¨
Trata-se de uma garantia constitucional a ser respeitada, mas que encontra limites na presunção de inocência e ainda na ampla defesa a ser dada ao acusado.
Por ampla defesa, dir-se-á, deve-se entender, como bem acentuou Celso Bastos(Comentários à Constituição do Brasil, 2º volume, São Paulo, Saraiva, 1989, pág. , pág. 266)o asseguramento que é feito ao réu de condições que lhe possibilitem trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade.
Da decisão do tribunal do júri, obedecido o princípio da soberania do Júri, cabe recurso apelação ao Tribunal de Justiça local ou ao Tribunal Regional Federal competente, por decisão que foi contra a prova nos autos. Esse recurso de apelação examina fatos. Dela cabe, aí, sim, o recurso especial para a guarda da lei federal e ainda recurso extraordinário, pela guarda da Constituição. Os dois últimos recursos dizem respeito a matéria de direito.
Prisão definitiva há somente após o trânsito em julgado. Se houver prisão da decisão condenatória no tribunal do júri, cabe apenas prisão provisória, pois, prisão preventiva.
Não se trata de uma revogação de um princípio outro. Repita-se que o que há é, sem dúvida, ponderação dele, o que se quer na vivência e concretude do texto constitucional.
Com o devido respeito, não se pode, em nome de um populismo penal, em nome de uma resposta à sociedade com relação a criminosa, permitir que essa proposta, que dá uma errônea configuração ao princípio da soberania do júri, vem a postergar a eficácia do princípio da presunção da inocência.