Entrou em vigor a Lei nº 13.869/2019 (nova Lei de Abuso de Autoridade) trazendo 02 (duas) novas figuras incriminadoras – objetos de exame do presente artigo – dentre tantas outras: a primeira é consistente em requisitar/instaurar procedimento investigatório de infração penal com a falta de qualquer indício, e a segunda, consistente em dar início à persecução penal sem justa causa fundamentada.
Vejamos inicialmente o art. 27, da Lei nº 13.869/2019 (nova Lei de Abuso de Autoridade) o qual incriminou a conduta de:
Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.
O delito em tablado é de natureza própria, logo, somente pode ser imputado ao agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território que tenha atribuição de requisitar ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa.
Para a configuração deste crime, o elemento subjetivo reclama dolo direto, acrescido do elemento subjetivo específico de “prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. Pensamos que o dolo eventual tem sua abrangência praticamente inexistente, tendo em vista as especificidades do dolo específico (art. 1º, §1º). Ademais, a punição da modalidade culposa é inviável já que carece de previsão legal.
Os núcleos verbais são requisitar instauração ou instaurar. Requisitar é exigir formalmente, demandar, requerer a instauração. Instaurar é dar início a (algo que não existia); introduzir, implantar, instalar.
Devemos entender por procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, como por exemplo, o inquérito policial (para apurar a prática de crimes), termo circunstanciado (para apurar contravenções penais e crimes que não ultrapassem a pena máxima de dois anos), ou processo administrativo disciplinar, respectivamente. Outrossim, quanto ao procedimento investigatório de infração penal, temos que ter em mente que o inquérito policial e o termo circunstanciado de ocorrência são procedimentos que permitem angariar elementos informativos, e até mesmo provas, para descortinar a autoria e materialidade delitiva (lembrando da função bidirecional preparatória e preservadora dos procedimentos policiais).
Nesta senda, no que se refere ao inquérito policial define-se na conjugação de atos perpetrados pela função executiva do Estado com o propósito de aquilatar a autoria e materialidade de uma infração penal.Guilherme de Souza Nucci define inquérito policialda seguinte forma:
“O inquérito policial é um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e sua autoria. Seu objetivo precípuo é a formação da convicção do representante do Ministério Público, mas também a colheita de provas urgentes, que podem desaparecer, após o cometimento do crime. Não podemos olvidar, ainda, que o inquérito serve à composição das indispensáveis provas pré-constituídas que servem de base à vítima, em determinados casos, para a propositura da ação penal privada.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 143).
Procedimento de Investigação Criminal (PIC)
Entra nesta discussão, o Procedimento de Investigação Criminal (PIC) levado à cabo pelo Ministério Público. Constitucionalmente falando, a tarefa de investigar cabe tão somente às Polícias Judiciárias. Todavia, o STF por meio da aplicação às avessas da Teoria dos Poderes Implícitos, acabou por entender que o Ministério Público poderia concentrar a tarefa de investigar.
Deste modo, calcado no entendimento do STF, o “PIC” procedimentalizado pelo Ministério Público, entre outros atos inerentes, ao procedimento de investigação poderia estar abrangido pela nova Lei de Abuso de Autoridade.
Causa excludente da ilicitude
O legislador ordinário inseriu uma causa excludente da ilicitude, em que não haverá crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada.
O Código de Processo Penal em diversos dispositivos trata das hipóteses em que haverá a justificativa para a apuração preliminar dos fatos, por exemplo, o §3º do art. 5º, CPP: “Qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba ação pública poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade policial, e esta, verificada a procedência das informações, mandará instaurar inquérito”.
Os autos de investigação preliminar (também recebe a terminologia de verificação de procedência das informações, procedimento preparatório de investigação, procedimento de preparação de inquérito policial dentre outras terminologias equivalentes) e tem a finalidade justamente de averiguar se há o lastro mínimo para iniciar a investigação. Com isto, a propósito, o funcionário público que atua em conformidade com o art. 27, parágrafo único, estaria resguardado pelo estrito cumprimento de um dever legal (art. 23, I, primeira parte, do CP).
Assim, apesar de passar a impressão de que na apuração sumária e sindicância haveria de plano uma exclusão da tipicidade, é importante que nos casos de sindicância ou investigação preliminar sumária (verificação de procedência de informações ou apuração preliminar), estas estejam devidamente justificadas para não configurarem a infração penal, pois não deixam de ser procedimentos com escopo de apurar fatos na seara criminal e administrativa.
Nestas perspectivas, a regra da motivação deve pautar todos os atos administrativos, onde a Autoridade Policial estará resguardada e calçada até para se retirar o dolo numa eventualidade.
A problemática da expressão “indício”da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
A nova Lei de Abuso de Autoridade expressa na necessidade de “indício” no art. 27 da aludida lei.
Perquirindo o alcance da expressão “indícios”, o 239 do Código de Processo Penal, diz que: “considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. Logo, pela letra fria do Código de Processo Penal a expressão “indício” é uma definição em sentido estrito.
Sobre o indício, importante a preleção de Hélio Tornaghi:
"Enquanto que, relativamente à existência do crime, o Código exige prova (querendo significar prova cabal), no que se refere à autoria, ele se contenta com indícios, isto é, meros sinais. Se houver maiores provas, tanto melhor; mas a lei não as exige" (Curso de Processo Penal, 2/85, Saraiva, 1983).
Não diferente, o saudoso professor Julio Fabbrini Mirabete, sobre indícios, em seu comentário ao Código de Processo Penal, simplifica ainda mais dizendo que “indícios são a representação do fato a ser provado através da construção lógica, a qual revela um outro fato ou circunstância.” (Código de Processo Penal Interpretado, 11ª ed, Atlas, 2003, p. 803).
Como podemos visualizar, a expressão “indício” para a doutrina acaba ganhando uma interpretação e um alcance mais amplo, a fim de entendê-la como algo que provavelmente ocorreu no mundo, existindo a possibilidade de se estabelecer uma hipótese de liame.
Aliás, a função do procedimento investigatório é justamente a de amealhar elementos suficientes da autoria da infração, além da materialidade, onde permitirá o indiciamento ou de preservar a esfera do indivíduo (bidirecional) entre outros protagonistas.
De maneira clara, a mens legisda nova lei foi de vedar a investigação manifestamente descabida, e não de impedir a atividade persecutória da polícia judiciária através do inquérito policial.
Embasados nesta premissa, entendemos que se a Polícia Judiciária deflagra investigações sobre hipóteses que exteriorizam repercussão no meio policial e social, como a título exemplificativo, alguns suicídios ou mortes suspeitas, que ao final possam não culminar em eventos criminosos, isto não será capaz de fazer incidir a tipia em estudo.
Obviamente, nestas situações, a investigação não visa uma pessoa (“alguém”) determinada, mas o fato em si que pode se chegar a uma eventual autoria ou não, deixando claro que faltará o dolo com o fim específico de agir e até mesmo a elementar na vertente dos “indícios”, pois não se sabe para todos os efeitos, se foi ou não crime, e não se terá uma pessoa determinada como investigada, em regra.
Em arremate da análise deste dispositivo, entendemos que não se falará em infração penal de abuso de autoridade nesses casos, mesmo que diante da ausência de crime, em tese, se revelar ao final que o suicídio não teve instigação, incitação e auxílio ou que a “morte suspeita” inicial foi na verdade uma “morte natural” (“falta de qualquer indício da prática de crime”). Não faz sentido alijar do Estado-investigação, instrumento importante de persecução criminal, mormente se o país correr riscos de ser responsabilizado internacionalmente de pactos e acordos internacionais.
Extensão do significado da expressão “indício” da prática de crime, ao indício de ilícito funcional ou de infração administrativa
Entendemos que o significado da expressão “indício” da prática de crime, guardada as suas proporções devidas, também se estende ao indício de ilícito funcional ou de infração administrativa.
Padrão de conduta sugestionado à Autoridade Policial
Como padrão de conduta para se evitar que a Autoridade Policial incida neste dispositivo, recomenda-sea cautela de que na Portaria instauradora (tanto de inquérito como de outro procedimento policial; e processo administrativo disciplinar entre outros, se tiver atribuição para tanto), destine um espaço para demonstrar, de maneira clara e inequívoca, os indícios (em sentido amplo) que possui para a deflagração do procedimento ou as justificativas devidas.
A motivação e exteriorização do ato nascedouro do procedimento que a nova Lei de Abuso traz, será de grande valia para se evitar a prática do crime em espécie.
Padrão de conduta sugestionado aos membros do Ministério Público
Como padrão de conduta para se evitar que os membros do Ministério Público incidam neste dispositivo, recomenda-se que no ofício requisitório (tanto de inquérito como de processo administrativo disciplinar entre outros, se tiver atribuição para tanto) haja a ressalva “desde que existentes indícios para tanto”, com objetivo de demonstrar, de maneira clara e inequívoca, que não há dolo do membro ministerial.
Também vislumbramos que antes mesmo do ofício requisitório supra, os membros do Ministério Público requisitem informações primeiramente à Autoridade Policial sobre a existência ou não de indícios para depois avaliarem a requisição ou não de instauração de procedimento policial através de uma “solicitação” – e não requisição.
Isso evita também, de certa forma ações açodadas e que podem trazer consequências negativas aos membros do Parquet.
Padrão de conduta sugestionado aos membros da Magistratura
Em padrão de conduta para se evitar que os membros da magistratura incidam neste dispositivo, recomenda-se que no ofício requisitório (tanto de inquérito como de processo administrativo disciplinar entre outros, se tiver atribuição para tanto) faça-se a ressalva “desde que existentes indícios para tanto”, com objetivo de demonstrar, de maneira clara e inequívoca, que não há dolo do membro da magistratura.
Também vislumbramos que antes mesmo do “ofício requisitório”, os membros da magistratura requisitem informações (em forma de solicitação) primeiramente a Autoridade Policial sobre a existência ou não de indícios para depois avaliarem a requisição ou não de instauração de procedimento policial através de uma “solicitação”.
Isso evita também, de certa forma ações açodadas e que podem trazer consequências negativas aos membros da magistratura.
Alertamos que não vamos ingressar na discussão se o magistrado ao invés de “requisitar” instauração de procedimento policial ou outro tipo de procedimento, deveria abrir vistas ao membro do Ministério Público para requerer o que entender devido, em prestígio à imparcialidade e ao sistema acusatório, impondo a distância do magistrado, que se reservaria a enfrentar a situação, apenas em possível julgamento, porquanto o nosso foco é outro, qual seja, de enfrentar as condutas sob o pálio da nova lei.
Algumas inquietações surgem inevitavelmente: uma mera oitiva apenas da vítima juntamente com o Boletim de Ocorrência pode dar azo aos “indícios”?
Entendemos a possibilidade de ao menos 02 (dois) entendimentos sobre o tema: um se posicionando pelo lastro mínimo a embasar a instauração do procedimento apenas e tão somente com a oitiva da vítima, e a outra se posicionando pela necessidade de mais elementos a darem o suporte mínimo. Pensamos ser defensável a posição de entender que apenas pela oitiva da vítima seria possível lastrear a instauração do procedimento, embora vamos mais longe ainda, para defendermos a possibilidade de apenas a ocorrência policial ser possível à instauração procedimental.
De qualquer forma, recomendamos, por cautela e prudência, a adoção de outros atos e diligências preliminares até que se consolide o entendimento sobre este ponto, registrando que para todos os efeitos, o tipo penal exige o elemento específico do dolo de abusar para configurar o delito em espécie.
E apenas e tão somente o Boletim de Ocorrência ou equivalente é suficiente para abranger a expressão indício?
Entendemos a possibilidade de existir ao menos 02 (duas) correntes de entendimentos sobre o assunto. Recomendamos a adoção de outros atos e diligências preliminares até que se consolide o entendimento sobre este ponto. Vale lembrar de qualquer forma, que se exige o elemento específico do dolo de abusar para configurar o delito em espécie.
Ora, por mais que a natureza jurídica de um Boletim de Ocorrência ou equivalente seja uma versão unilateral, não podemos olvidar que ele em regra será lavrado por um agente policial investido no cargo, cuja característica dos seus atos militam presunção de veracidade do ato da ocorrência (e não do conteúdo em si) até prova em contrário.
Porém, vamos mais longe: e se, principalmente o agente policial, amealhar as informações, ou se os fatos forem presenciados pelos próprios policiais, o conteúdo do ato e do próprio instrumento do ato gozará de presunção de veracidade ou legitimidade, o que daria lastro para entender pela existência de “indício” a retirar a elementar e até mesmo o dolo da conduta do agente que instaura ou requisita a instauração.
Neste prisma, pensamos ser defensável a posição de entender que apenas pela a ocorrência policial a depender do contexto, permitira a possível à instauração procedimental com lastro mínimo de indícios da prática de crime. O mesmo raciocínio se estenderia às hipotéticas práticas de ilícito funcional ou de infração administrativa.
Fatos manifestamente atípicos ou desprovidos de justa causa
Em fatos manifestamente atípicos ou desprovidos de justa causa, a recomendação é que haja um despacho fundamentado pelo Delegado de Polícia, com indicação das razões jurídicas e fáticas de seu convencimento, em que se o boletim de ocorrência não permitir à instauração de inquérito, será arquivado mediante despacho fundamentado.
A título de exemplo, em São Paulo, a Portaria DGP-18, de 25 de novembro de 1998, assevera no art. 2º e seguintes, que autoridade policial não instaurará inquérito quando os fatos levados à sua consideração não configurarem, manifestamente, qualquer ilícito penal. Igual procedimento o Delegado de Polícia adotará, em face de qualquer hipótese determinante de falta de justa causa para a deflagração da investigação criminal, devendo, em ato fundamentado, indicar as razões jurídicas e fáticas de seu convencimento. O boletim de ocorrência que, nesses mesmos termos, não viabilizar instauração de inquérito, será arquivado mediante despacho fundamentado doDelegado de Polícia e, em seguida, registrado em livro próprio.
Superada a discussão em torno do art. 27, cumpre agora nos debruçarmos sobre o art. 30 da nova Lei.
Por sua vez, o art. 30 da Lei nº 13.869/2019 (nova Lei de Abuso de Autoridade) incriminou a seguinte conduta:
Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
Para melhor compreensão de distinção entre o art. 27 e art. 30, ambos da mesma lei, vejamos o quadro abaixo:
Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa: Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafoúnico. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada. |
Art. 30. Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. |
Condutas: Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa. |
Condutas: Dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa. |
Elemento subjetivo específico: Dolo de abusar com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. |
Elemento subjetivo específico: Dolo de abusarcom a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. |
Objetos: Procedimento investigatório de infração penal ou administrativa |
Objetos: Persecução penal, civil ou administrativa |
Ausência que oportuniza a incidência do crime: Falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa. |
Ausência que oportuniza a incidência do crime: Sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente. |
O tipo penal em estudo lembra muito o art. 27 da Lei em comento, embora se distingam claramentenos tipos incriminadores e na pena, que é mais severa, consoante o quadro acima.
Consignamos que o sujeito ativo é a autoridade no conceito amplo do artigo 2º e o seu parágrafo único. Por se tratar de crime próprio deve ser ressaltado que, conforme regra do art. 30 do Código Penal, as circunstâncias de caráter pessoal, quando elementares do crime, se comunicam aos demais concorrentes. Assim, se um particular que, sabendo que atua em conjunto com o funcionário público, contribuir para o abuso de autoridade, ambos responderão pelo delito.
Em avanço, temos 02 (dois) núcleos do tipo, sendo o primeirodar início, onde deve ser entendido como por onde começa, inicia, origina. No que diz respeito ao verbo proceder já presume prosseguimento ou andamento de algo. Logo, a conduta incriminada é iniciar ou dar prosseguimento à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente.
A “ausência de justa causa” ou “contra quem se sabe inocente”, são filtros que o legislador entendeu por bem dotar de garantias os investigados para se evitar persecuções fadadas ao fracasso que geram custas ao erário público e podem refletir negativamente na vida das pessoas.
Não vamos ingressar no mérito da terminologia “justa causa” na seara processual penal, pois há uma divergência doutrinária[1] e jurisprudencial do que vem a ser “justa causa”. Todavia, podemos resumir que ela é uma das variáveis de definição que significa, a grosso modo, um lastro probatório mínimo e firme, indicativo da autoria e da materialidade da infração penal.
Conceito de persecução penal, civil e administrativa
Vamos levar em conta apenas a expressão “persecução penal” que nos interessa, por ora na análise. Esta expressão pode abranger a conjugação da investigação e do processo (ação penal).
Podemos afirmar que, o preceito primário mira a deflagração da ação penal (processo em sentido amplo), em que a relação processual se completa com a citação.
Todavia, não podemos olvidar que a persecução penal pode abranger as 02(duas) fases, sendo uma em sede de investigação policial e a outra em sede de ação penal, em que a cautela para a instauração (dar início ou proceder) do inquérito policial deve ser levada em conta pela realidade do nosso modelo.
Como padrão de conduta da Autoridade Policial, para se aferir a justa causa é fundamental destinar um espaço na Portaria para exteriorizar de maneira justificada e motivadamente, a presença de justa causa no ato de instauração, calcado num indicativo mínimo de autoria e materialidade de infração penal.
Anotamos que devem ser evitadas ilustrações ou invocações baseadas em provas ilícitas, contraditórias, sem relevância no campo penal ou sem qualquer nexo entre o ato e o resultado.
Ademais, diante dessas novas exigências, as “verificações de procedência de informações dentre as outras terminologias” para propiciarem o levantamento de elementos idôneos de infração penal, propiciarão também o levantamento de justa causa mínima para o inquérito.
Conceito de pessoa inocente
Concernente ao conceito de pessoa “sabidamente inocente”, é de difícil aferição, eis que os órgãos acusador e de investigação, neste delito em estudo, deverão ter provas incontestáveis (ou elementos de informação) de que o responsável pela persecução tinha a plena convicção da inocência do perseguido, sob pena de faltar uma das elementares do delito e até mesmo de deixar de existir por ausência clara de dolo.
As mesmas observações anteriormente tecidas quanto às inquietações e fatos manifestamente atípicos ou desprovidos de justa causa se estendem para o art. 30, da nova Lei de Abuso de Autoridade, mas na faceta agora da “justa causa”, e, lembrando das divergências e variações da definição de “justa causa” na seara processual penal.
Das considerações finais
Em conclusão, procuramos exteriorizar a diferença entre instaurar procedimento investigatório de infração penal com a falta de qualquer indício, e dar início à persecução penal sem justa causa fundamentada, lembrando que o intérprete e o operador do Direito deverão se cercar de cautelas até que se consolidem posições seguras sobre os temas que dão margem para discussões em Direito Penal – o que, lamentavelmente, é preocupante e tem se tornado uma constante em nossas produções legiferantes.
Referências bibliográficas
COSTA, Aldo de Campos. A TODA PROVA: A justa causa para o exercício da Ação Penal. Publicado em 29 de novembro de 2013. Disponível em:<<https://www.conjur.com.br/2013-nov-29/toda-prova-justa-causa-exercicio-acao-penal>>. Acesso em 25 de janeiro de 2020.
LESSA, Marcelo de Lima.Padrões Sugeridos de Conduta Policial Diante da Nova Lei de Abuso de Autoridade. Publicado no site Jusnavigandi. Disponível em:<<https://jus.com.br/artigos/77119/padroes-sugeridos-de-conduta-policial-diante-da-nova-lei-de-abuso-de-autoridade>>. Acesso em 25 de janeiro de 2020.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2003.
TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1983.
Notas
[1] A propósito, Aldo de Campos Costa, leciona acerca da justa causa que:
“[...] A doutrina diverge quanto à natureza jurídica do que se compreende por justa causa no processo penal, vale dizer, “o fato ou o conjunto de fatos que justificam determinada situação jurídica, ora para excluir uma responsabilidade, ora para dar-lhe certo efeito jurídico”[1]. Em um primeiro grupo estão os que a identificam: a) como uma condição autônoma da ação[2]; b) como uma síntese das condições da Ação Penal[3]; c) como uma das condições da ação (interesse de agir)[4]; ou, ainda, d) como mais de uma condição da ação (interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido)[5]. Em um segundo grupo estão os que a classificam como uma condição de procedibilidade[6], alheia ao injusto culpável e alusiva à admissibilidade da prossecução penal em relação a determinados comportamentos[7].
A jurisprudência densifica o conceito de justa causa quando procede a um exame da acusação, já formalizada, sob dois pontos de vista distintos: um formal, a partir da existência de elementos típicos (tipicidade objetiva e tipicidade subjetiva) e outro material, com base na presença de elementos indiciários (autoria e materialidade)[8]” (COSTA, 2013, p. 1).