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Um caso envolvendo inépcia da denúncia por falta de prova pericial para comprovar conduta culposa da parte do agente

03/03/2020 às 16:20
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A Quinta Turma do STJ, reconhecendo a inépcia da denúncia, concedeu habeas corpus de ofício para trancar a ação penal contra motorista de caminhão acusado de homicídio e lesão corporal após acidente que resultou em morte.

Já se disse que não é inepta a denúncia que relata o fato delituoso satisfatoriamente e remete a descrição das lesões sofridas pela vítima para o laudo pericial, viabilizando assim a completa identificação e compreensão dos fatos imputados ao acusado e o exercício da ampla defesa.

Em sede de denúncia há a aplicação do principio in dubio pro societate.

Diante do artigo 395 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei 11.719/2008, aponto as causas para rejeição da denúncia:

1. Quando a denúncia for manifestadamente inepta;

2. Faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal;

3. Falta justa causa para o exercício da ação penal.

Anoto que a rejeição prevista no artigo 395, caput, corresponde aquilo que grande parcela da doutrina e da jurisprudência chamava de ¨não recebimento¨, com a finalidade de distinguir o ato de ¨rejeição¨, por razões de mérito (materiais) do indeferimento da inicial fundado em aspectos processuais (formais ou preliminares de mérito). Era o que se tinha da Súmula 60 do Tribunal Regional Federal da 4ª Região quando se dizia: ¨da decisão que não recebe ou que rejeita a denúncia cabe recurso em sentido estrito.¨

O antigo não-recebimento – agora rejeição – sempre foi insuscetível de gerar coisa julgada material. Assim, sanado o vício, era perfeitamente possível a repropositura da demanda, tantas vezes quantas necessárias fossem. É o quese via, por exemplo, com relação a pouca atenção dada à descrição da conduta dos acusados, como a falta de menção às características que compõem a narrativa dos fatos. Era o caso, outrossim, da descrição genérica na conduta dos acusados, nos crimes societários.

A antiga rejeição – hoje, absolvição sumária – faz hoje, como antes fazia, coisa julgada material, como se dá com o julgamento antecipado do mérito (artigo 330 do Código de Processo Civil), impedindo a rediscussão dos fatos após a preclusão da sentença ou o exaurimento das vias recursais. Era o caso da atipicidade de conduta, a existência de obstáculo à ilicitude ou à culpabilidade, a extinção da punibilidade – por morte, reparação do dano, pagamento de tributo, nos crimes tributários, onde a acusação não poderia reiterar em nova demanda o pedido de condenação.

A justa causa é a necessidade de lastro mínimo para o exercício da ação, onde se exigem indícios de autoria e de materialidade, que são coligidos, geralmente de inquérito policial aberto para tanto, ou ainda um outro procedimento aberto como, por exemplo, investigação ministerial. Indícios são certas circunstâncias que permitir chegar à verificação da existência de um fato. Indício é uma circunstância certa e que se realizou ao passo que na presunção considera como realizado um fato não provado, fundando-se, entretanto, na experiência. Por um raciocínio intelectual a partir de um fato conhecido e demonstrado (indício), chega-se, por presunção, à demonstração de outro fato.

Se o crime deixar vestígios é necessário que a petição inicial se faça acompanhar de laudo pericial. Não sendo possível a sua utilização a hipótese é de apresentação de prova testemunhal.

Sustentava Afrânio Silva Jardim (Direito Processual Penal, 1999, pág. 54) que, além das já conhecidas condições de ação, a quarta delas seria a justa causa. Para ele, o só ajuizamento da ação penal condenatória já seria suficiente para atingir o estado de dignidade do acusado, de modo a provocar graves repercussões na órbita de seu patrimônio moral, partilhado socialmente com a comunidade em que desenvolve as suas atividades. Por essa razão, a peça acusatória deve vir acompanhada de suporte mínimo de prova, sem as quais a acusação careceria de admissibilidade.

Diante disso passo a recente decisão emanada do Superior Tribunal de Justiça da lavra do ministro Marcelo Navarro Ribeiro Dantas.

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), reconhecendo a inépcia da denúncia, concedeu habeas corpus de ofício para trancar a ação penal contra um motorista de caminhão acusado de homicídio e lesão corporal após acidente que resultou na morte de uma pessoa.

Ao transitar nas imediações da serra de Monte Horebe (PB), o caminhão perdeu os freios e desceu a pista sem controle, até tombar em uma curva. As vítimas foram arremessadas para fora do veículo. Uma delas faleceu no local, a outra sofreu ferimentos graves.

O Tribunal de Justiça da Paraíba (TJPB) negou o pedido de trancamento da ação sob o argumento de que não havia constrangimento ilegal nem qualquer irregularidade no processo, o qual estava devidamente instruído.

No habeas corpus requerido ao STJ, a defesa alegou inépcia da denúncia e falta de justa causa para a ação penal. Sustentou que, para a acusação imputar os crimes ao motorista, precisaria ter sido feita perícia nos freios e em outras partes mecânicas do caminhão.

O julgamento se deu no HC 543.922.

O relator, ministro Ribeiro Dantas, afirmou que, a despeito das considerações do TJPB, o crime culposo exige a descrição da conduta com seu respectivo elemento caracterizador: imprudência, negligência ou imperícia.

Segundo o ministro, não é possível admitir que, da peça acusatória, constem apenas uma conduta lícita – no caso, dirigir veículo – e o resultado – morte ou lesão corporal –, sem a efetiva demonstração do nexo causal.

"O simples fato de o réu estar na direção do veículo automotor no momento do acidente, ou até mesmo a perda do freio, não autoriza a instauração de processo por crime de homicídio culposo ou lesão corporal culposa, se não restar narrada – frise-se – a inobservância do dever objetivo de cuidado e sua relação com a morte de uma das vítimas e a lesão corporal da outra", destacou.

Para o relator, não é possível aferir eventual responsabilidade penal a partir da narrativa, constante da denúncia, de que o veículo perdeu os freios e o motorista aumentou a velocidade, descendo a serra sem controle.

O ministro Ribeiro Dantas ressaltou que não foi realizada perícia no caminhão ou no local do acidente, o que não permite apurar a presença de culpa "por eventual imprudência, negligência ou imperícia do acusado".

De acordo com o ministro, o entendimento do STJ é de que o órgão acusatório, antes de imputar responsabilidade penal ao acusado, precisa indicar o dever jurídico de cuidado que teria sido violado pelo condutor do veículo (RHC 55.255).

Prevê o artigo 19 do Anteprojeto do Código Penal a excepcionalidade do crime culposo, ao prescrever que salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

Disse bem Aníbal Bruno(Direito Penal, parte geral, Tomo II, 1967, pág. 83) que o que é essencial na culpa é o momento consciente inicial, é a posição contrária ao dever que aí assume o agente. Constrói-se, pois, a culpa na vontade e sobre a previsibilidade. É o fato de o agente dever e poder prever o resultado e de não o ter feito, que estende até ele a sua responsabilidade.

Caracteriza-se a culpa por uma conduta contrária ao dever, que se exprime na imprudência, negligência ou imperícia do ato voluntário inicial e, por uma relação entre o agente o resultado, que consiste na falta de previsão do previsível.

Assim temos na decomposição do processo culposo: um ato inicial voluntário, praticado com imperícia, negligência ou imperícia; um resultado de dano ou de perigo definido na lei como crime; ausência de vontade e mesmo previsão desse resultado; possibilidade de prevê-lo.

É certo que esse dever de cuidado e atenção deve ser julgado de acordo com as circunstâncias do caso concreto. A falta do dever de diligência, de que provém o resultado punível pode ser expressa seja em imprudência, negligência ou imperícia.

Consiste a imprudência na prática de um ato perigoso, sem os cuidados que o caso requer. Dela se distancia a negligência, que é a falta de observância de deveres exigidos pelas circunstâncias. Numa há o fato da comissão e noutra o fato da omissão, em geral.

Há exemplo de imprudência quando o automobilista conduz o seu veículo a grande velocidade em rua frequentada ou quando alguém, no exercício de poder de polícia, sem conhecer quem pode estar por perto. Há exemplo de negligência, quando o automobilista dobra uma curva sem verificar se a estrada está desimpedida, sem soar a buzina do carro, quando necessário. Há imperícia quando o profissional da medicina empreende uma intervenção sem domínio da técnica exigida, sem os devidos conhecimentos. Negligente é o cirurgião que esquece uma pinça dentro do corpo do operado.

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Diga-se isso, em atenção à lição de Nelson Hungria(Comentários ao Código Penal, volume V/186) para quem ¨o médico não tem carta branca, mas não pode comprimir a sua atividade dentro de dogmas intratáveis. Não é ele infalível, e desde que agiu racionalmente, obediente aos preceitos fundamentais da ciência, ou ainda que desviando-se delas, mas por motivos plausíveis, não deve ser chamado à contas pela Justiça, se vem a ocorrer um acidente funesto.¨

O resultado é um elemento integrante do tipo culposo, pois não pode haver homicídio culposo sem o resultado morte como não há lesão corporal culposa sem violação da integridade corporal de alguém.

Há ainda uma culpa sem previsão, que a doutrina chama de culpa inconsciente. Tal é diversa da culpa consciente quando o agente prevê o resultado, mas espera, sinceramente, que este não ocorrerá. Ainda difere do dolo eventual porque neste o agente prevê o resultado e não se importa se venha a ocorrer. O dolo eventual se junta ao dolo direto, ou ainda determinado, quando o agente prevê um resultado, dirigindo a sua conduta na busca de realizá-lo. Repito: no dolo eventual, que tem espaço de fronteira e proximidade com a culpa consciente, a intenção do agente se dirige a um resultado, aceitando, porém, outro também previsto e consequente possível de sua conduta (O artigo 19, II, do Anteprojeto prevê que o tipo é culposo, quando o agente, em razão da inobservância de deveres de cuidado exigíveis nas circunstâncias, realizou o fato típico)

Assim, configura-se a culpa criminalmente punível na violação de deveres de diligências realmente reprovável de dano ou de perigo.

Mas, para tal caracterização, seria necessária a prova pericial para que se veja se o agente agiu com culpa em uma das seguintes formas: imprudência, negligência ou imperícia.

Como aduziu o respeitável acórdão aqui citado, o simples fato de o réu estar na direção do veículo automotor no momento do acidente, ou até mesmo a perda do freio, não autoriza a instauração de processo criminal por crime de homicídio culposo ou lesão corporal culposa se não restar narrada, frise-se, a inobservância do dever objetivo de cuidado e sua relação com a morte de uma das vítimas e a lesão corporal da outra.

Nesse sentido: "HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. INÉPCIA DA INICIAL CONFIGURADA. DENÚNCIA QUE NÃO ATENDE AOS REQUISITOS LEGAIS. MANIFESTA ILEGALIDADE CONFIGURADA. 1. O trancamento da ação penal no âmbito de habeas corpus é medida excepcional, somente cabível quando demonstrada a absoluta ausência de provas da materialidade do crime e de indícios de autoria, a atipicidade da conduta ou a existência de causa extintiva da punibilidade. 2. É ilegítima a persecução criminal quando, comparando-se o tipo penal apontado na denúncia com a conduta atribuída ao denunciado, verifica-se ausente o preenchimento dos requisitos do artigo 41 do Código de Processo Penal, necessário ao exercício do contraditório e da ampla defesa. 3. O simples fato de o paciente estar na direção de veículo automotor no momento do acidente não autoriza a instauração de processo criminal pelo delito de homicídio culposo, porquanto o órgão ministerial não narrou a inobservância do dever objetivo de cuidado e a sua relação com a morte da vítima, de forma bastante para a deflagração da ação penal. 4. A imputação, da forma como foi feita, representa a imposição de indevido ônus do processo ao paciente, ante a ausência da descrição de todos os elementos necessários à responsabilização penal decorrente da morte do operário. 5. Ordem não conhecida. Habeas corpus concedido, de ofício, para declarar a inépcia denúncia e anular, ab initio, o Processo n. 0015699-60.2014.815.2002, da 7ª Vara Criminal da Comarca da Capital/PB, sem prejuízo de que seja oferecida nova denúncia em desfavor do paciente, com estrita observância dos ditames previstos no art. 41 do Código de Processo Penal." (HC 305.194/PB, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 01/12/2014, grifou-se).

 No caso, a denúncia encontra-se amparada na narrativa de que "o veículo perdeu os freios e o denunciado aumentou a velocidade descendo a serra sem controle" (e-STJ, fl. 21), o que não se revela suficiente para a aferição de eventual responsabilidade penal no evento narrado, devendo ser ressaltado que não foi realizada qualquer perícia nos freios ou na parte mecânica do caminhão ou sequer no local do acidente, não havendo lastro probatório mínimo para se apurar, justamente, o elemento normativo tipo, ou seja, a culpa por eventual imprudência, negligência ou imperícia do acusado.

Como o evidenciado, pretende o órgão acusatório imputar a responsabilidade penal à recorrente pelo infortúnio narrado acima, sem definir qual o dever jurídico de cuidado foi por ela violado na condução do veículo automotor, com base em elementos de informação demasiadamente contraditórios e sem qualquer análise técnica.

Daí por que entendeu-se que era caso de trancamento da ação penal, no sentido de realizar-se uma prova pericial a fim de se avaliar se houve o delito reportado na forma culposa. 

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um caso envolvendo inépcia da denúncia por falta de prova pericial para comprovar conduta culposa da parte do agente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6089, 3 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/79687. Acesso em: 2 nov. 2024.

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