Em meio à crise gerada pelo vírus covid-19, o denominado coronavírus, além do caos eminente que poderá se instalar em razão da insuficiência do Estado na prestação de saúde ao cidadão, mormente considerando a falta de estrutura para receber os potenciais infectados, surgirão vários atos e fatos relevantes juridicamente, e que, por sua natureza, irão atrair a atuação jurisdicional.
Ao que parece, a solidariedade, a responsabilidade, o bom senso e o sentimento de patriotismo são deixados de lado em situações como essa, e o que mais vai sendo aguçado no cidadão brasileiro é o instinto. Sim, o instinto de sobrevivência, de “proteção aos meus”, um caos, um retrocesso evidente.
Pois bem, o conceito de família que a Constituição Federal de 1988 trouxe no final dos anos 80 modificou um traço característico da família até então conceituada nas cartas políticas anteriores. E isso porque o art. 226 da CF/88 estabeleceu que a família é reconhecida como “base fundamental da sociedade, e tem proteção especial do Estado”.
Assim, a família contemporânea foi concebida a partir de um desenho marcado pela constitucionalização, prestigiando a proteção da família, destacando-se valores como a dignidade da pessoa humana, a igualdade familiar, e a prevalência da tutela dos interesses da criança e do adolescente. Esse é o novo panorama constitucional ao qual a família brasileira foi jungida.
Na Constituição de 1967, promulgada durante o regime militar, a família ainda não era tratada sob essa perspectiva de dignidade humana. A propósito, esse era o texto constitucional:
Art. 167 – A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos.
A diferença para o texto atual, embora sutil, é gritante:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (BRASI, 2019, p. 1, g.n)
Esclareça-se, antes de tudo, que não estamos tecendo críticas ao regime militar, mas, tão somente, fazendo comparação pertinente entre os sobreditos textos constitucionais, em interpretação eminentemente histórica.
A verdade é que o constituinte originário, com a inserção da expressão “base da sociedade” no texto da CF/88, trouxe ao conceito de família grande peso axiológico, fazendo com que o legislador ordinário a regulamentasse de maneira condizente com os valores mencionados acima.
Assim, foi bem o legislador ao tratar dos alimentos nos artigos 1.694 e seguintes da Lei nº 10.406/2002, eis que, considerando o mencionado valor axiológico do conceito de família, estabeleceu que a sua fixação depende de comprovação das necessidades do alimentando e das possibilidades da pessoa obrigada, o alimentante (DIAS, 2019) .
Vale ressaltar que o trabalhador autônomo é todo aquele que exerce sua atividade profissional sem vínculo empregatício, por conta própria e com assunção de seus próprios riscos. Assim, a sua prestação de serviço se dá de forma eventual e não habitual.
Com a atual decretação de quarentena imposta pelo Estado, milhares de trabalhadores veem-se obrigados a recolher-se, o que para os trabalhadores autônomos tem gerado uma preocupação ainda maior ante a impossibilidade de saírem para buscar clientes para os seus negócios.
Os alimentos devem sempre permitir que o alimentando viva de modo compatível com a sua condição social. De qualquer forma, ainda que seja esse o direito do credor de alimentos, é mister que se atente, na quantificação de valores, às possibilidades do devedor de atender ao encargo. Assim, de um lado há alguém com direito a alimentos e, de outro, alguém obrigado a alcança-los. (DIAS, 2019)
Como é cediço, o vetor para a fixação de alimentos é o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade. Segundo Gilmar Ferreira Mendes (2020), tal princípio, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, e proibição de excesso.
Sobre as premissas até aqui fixadas, observando-se o binômio necessidade/ possibilidade, percebe-se que a necessidade do alimentado, ante a atual situação vivida globalmente, não irá deixar de existir. O que poderá haver, por exemplo, é a suspensão com gasto como transporte e alimentação no colégio.
Em contrapartida, mostra-se clarividente que a possibilidade do alimentante tornou-se incerta e indeterminada. A pandemia do novo coronavírus prejudica toda a classe trabalhadora. Não se sabe ao certo quanto tempo esse período de quarenta poderá durar, vez que, em média, é estabelecido por 14 dias, podendo ser prorrogado.
Destaque-se que, em situação normal, a percepção do alimentante de que houve alteração em sua possibilidade não poderá servir de incentivo para que o mesmo deixe de pagar os alimentos ou proceda a sua redução do modo que lhe aprouver. (DIAS, 2019)
Observando as novas exigências que a atual situação impôs ao mercado, percebemos que a palavra de ordem é: Inovação. Quando se fala em inovação, a maioria das pessoas normalmente imaginam o uso de tecnologias de ponta, com robôs, nanotecnologia, dentre outros. Mas o conceito de inovação vai bem além disso, e não está restrito ao universo das grandes corporações e nem tão pouco da alta tecnologia (SEBRAE, 2020).
Exemplo de inovação em negócio é o uso da venda por meio de aplicativos, como whatsapp, facebook e instagram. Dessa forma, especialistas tem afirmado que ainda que as vendas sejam em menor escala, é melhor do que não vender nada.
Diante disso, verifica-se que ainda que o genitor esteja impedido de sair de sua casa, este ainda continua tendo meios de vender ou prestar seus serviços, ainda que de forma inferior ao normal.
Neste intento, ressalte-se que a prisão civil do devedor de alimentos consiste em medida coercitiva extrema, que somente deve ser decretada com fundamento no inadimplemento voluntário e inescusável do devedor, a teor do art. 5º, inc. LXVII, da Constituição da República de 1988.
Segundo o TJMG, “A prisão civil imposta ao devedor de alimentos visa constrangê-lo ao adimplemento da obrigação alimentar e só pode ser admitida em hipóteses excepcionais” (BRASIL, 2019, p.1).
Em regra, o cumprimento da medida coercitiva da prisão civil – inclusive para manter seu caráter de coercibilidade – deve se dar em regime fechado, cabendo ser abrandado, apenas, diante de situações excepcionais, tal como a fragilidade do estado de saúde do devedor.
Fato é que com o atual cenário de pandemia, o Judiciário brasileiro, a qual se encontra totalmente abarrotado de processos, suspendeu seus prazos e atividades, movendo-se, apenas, em caso de ações de urgentes.
Estamos vivendo um cenário totalmente atípico, visto que nunca houve decretação de quarenta em todo o país.
Ao que se percebe, esse tornou-se um momento de conversa e bom senso entre os membros familiares, vez que toda a comunidade sofre com os impactos gerados pela propagação da doença.
Dessa forma, entende-se que o alimentante, ao devidamente demonstrar que houve alteração em sua possibilidade em continuar prestando alimentos, na forma estabelecida em juízo, umas das alternativas seria a apresentação de justificativa, com pedido de reajuste do valor.
Importante frisar que não se trata de exoneração ou revisão da obrigação alimentar, mas apenas de um instrumento legal que pode ser usado pelo alimentante para tornar inexigível a obrigação alimentar em determinada hipótese, ou seja, quando ele, submetido a processo de execução de alimentos, apresente justificativa, indicando os elementos que levem a crer que ele não poderá cumprir com sua obrigação alimentar.
Outra hipótese seria as próprias partes, em exercício de autonomia da vontade, realizarem um ajuste, tomando a termo um acordo que possibilite a continuação da prestação de alimentos, porém, de maneira condizente com a atual possibilidade do alimentante afetado pelos efeitos que o covid-19 eventualmente gerou em sua economia. Neste caso, havendo interesse de menor, haverá ainda a necessidade de cota ministerial do Ministério Público Estadual.
Assim, conclui-se que é exigível que o alimentante continue prestando alimentos, ainda que o seu cumprimento se dê por meio de acordo, com valor alternativo ao estabelecido por sentença.
Por outro lado, não seria possível exigir a prisão civil do devedor no presente caso, vez que, conforme demonstrado alhures, a prisão civil trata-se de medida excepcional, não sendo razoável a sua aplicação nessa hipótese, em que o alimentante busca se adequar ao atual cenário para garantir a sua própria subsistência.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Da República Federativa Do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988: atualizada até Emenda Constitucional nº91, 2016. Portal da Legislação. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 23 março. 2020.
_______. Agravo de Instrumento-Cv 1.0427.16.001179-2/001, Relator(a): Des.(a) Caetano Levi Lopes , 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 26/03/2019, publicação da súmula em 05/04/2019. Disponível em < https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaPalavrasEspelhoAcordao.do?&numeroRegistro=2&totalLinhas=639&paginaNumero=2&linhasPorPagina=1&palavras=alimentos%20prisao%20possibilidade&pesquisarPor=ementa&pesquisaTesauro=true&orderByData=1&pesquisaPalavras=Pesquisar&. Acesso em 24 março. 2020.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 13 ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 15. Ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
SEBRAE. Inovar é uma boa saída para pequenos negócios diante de crise. 2020. Disponível em: <https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/inovar-e-uma-boa-saida-para-pequenos-negocios-diante-de-crise,609a6eaecc801710VgnVCM1000004c00210aRCRD>. Acesso em 23 março. 2020.