O avanço da pandemia no Brasil provocou uma feroz reação legislativa para enfrentar a covid-19 e conter o seu contágio, sendo impressionante a quantidade de inovações legislativas que ocorreram no decorrer desses 15 dias de confinamento social.
Visando compilar tais informações, o próprio site do Planalto disponibilizou todas as novidades normativas (trabalhistas, financeiras, tributárias, sanitaristas, administrativas, consumeristas), dando maior publicidade e facilitação.[1]
Dentre as inovações, destaca-se a postura mais rigorosa de alguns Estados em decretar medidas temporárias de suspensão de alguns setores industriais/comerciais/serviços.
Em Pernambuco, destacam-se os seguintes decretos: [2]
Decreto nº 48.809 de 14/03/2020
Art. 3º Ficam suspensos, no âmbito do Estado de Pernambuco, eventos de qualquer natureza com público.
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Art. 3º-B. Ficam suspensas as atividades de todas as academias de ginástica e similares bem como cinemas localizados no Estado de Pernambuco.
Decreto nº 48.832 de 17/03/2020
Art. 1º Fica suspenso, a partir do dia 21 de março de 2020, o funcionamento de todos os shopping centers e similares localizados no Estado de Pernambuco.
Art. 2º Fica suspenso, a partir do dia 21 de março de 2020, o funcionamento de restaurantes, lanchonetes, bares e similares, localizados no Estado de Pernambuco.
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Art. 3º Fica suspenso, a partir do dia 21 de março de 2020, o funcionamento dos estabelecimentos de salão de beleza, barbearia, cabeleireiros e similares, localizados no Estado de Pernambuco.
Decreto nº 48.834 de 20/03/2020
Art. 2º Fica suspenso, a partir do dia 22 de março de 2020, o funcionamento de todos os estabelecimentos de comércio localizados no Estado de Pernambuco.
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Art. 3º Fica suspenso, a partir do dia 22 de março de 2020, o funcionamento de todos os estabelecimentos de prestação de serviços localizados no Estado de Pernambuco.
Apenas os estabelecimentos essenciais voltados ao abastecimento da população foram mantidos: supermercados, postos gasolina, farmácias, os que funcionam por delivery, dentre outros.
Segundo as melhores previsões, os efeitos do isolamento tendem a permanecer por cerca de 3 meses para conter, efetivamente, a propagação do patógeno.
Nesse período de circulação restrita, o mercado tende a ser severamente afetado pela possível e futura recessão econômica com demissões em massa, prejuízo e até falências de diversas empresas.
Poderia ser o Estado responsabilizado por atos legislativos de suspensão de atividades gravosos? Em outras palavras, poderia o particular prejudicado pelo decreto que teve seu negócio arruinado ingressar com ação contra o Estado e pedir reparação civil?
Esse o tema central que se propõe a analisar com base na jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Como regra, os atos legislativos resultantes da soberania estatal não ensejam responsabilidade. Desde que a função legiferante seja exercida nos limites formais e materiais da Constituição e sejam dotados de generalidade e abstração, não há como o Estado ser responsabilizado.
Valiosa são as lições do Prof. José dos Santos Carvalho Filho:[3]
Pode ocorrer, isto sim, e frequentemente ocorre, que a lei nova contrarie interesses de indivíduos ou de grupos, mas esse fato, por si só, não pode propiciar a responsabilidade civil do Estado para obriga-lo à reparação de prejuízos. Parece-nos incoerente, de fato, responsabilizar civilmente o Estado, quando as leis regulamente editadas, provêm do órgão próprio, integrado exatamente por aqueles que a própria sociedade elegeu – pensamento adotado por alguns estudiosos.
Doutrina e jurisprudência entendem que, em casos de leis inconstitucionais e leis de efeitos concretos, admite-se a possibilidade de existência de eventual responsabilidade civil estatal.
No caso, a lei de efeito concreto seria despida de normatividade, ou seja, generalidade e abstração, são aquelas leis em sentido formal, aplicada em situação concreta e com destinatários determinados, assemelhando-se com um ato administrativo.
Primeiramente, é interessante saber se o Estado possui competência para instituir medidas legais de restrição para o combate da pandemia?
Segundo entendimento do Min. Marco Aurélio, proferido na Adin 6341 em 24/03/2020, as providências adotadas pelo Governo Federal não afastam atos a serem praticados por Estado, Distrito Federal e Município, tendo em vista a competência para o tema ser concorrente, elencada no art. 23, II, da CF:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...)
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
Dessa forma, Prefeitos e Governadores podem adotar medidas de combate ao coronavírus, considerando que as providências relacionadas com a proteção da saúde é matéria de competência comum.
Analisando a jurisprudência do STF, é interessante trazer para discussão o caso da Varig, no qual o Supremo reconheceu responsabilidade da União pelos prejuízos causados decorrente do plano econômico de congelamento das tarifas:
EMENTA: RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. RESPONSABILIDADE DA UNIÃO POR DANOS CAUSADOS À CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO DE TRANSPORTE AÉREO (VARIG S/A). RUPTURA DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DO CONTRATO DECORRENTE DOS EFEITOS DOS PLANOS “FUNARO” E “CRUZADO”. DEVER DE INDENIZAR. RESPONSABILIDADE POR ATOS LÍCITOS QUANDO DELES DECORREREM PREJUÍZOS PARA OS PARTICULARES EM CONDIÇÕES DE DESIGUALDADE COM OS DEMAIS. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE, DO DIREITO ADQUIRIDO E DO ATO JURÍDICO PERFEITO.
(...)
10. O Estado responde juridicamente também pela prática de atos lícitos, quando deles decorrerem prejuízos para os particulares em condições de desigualdade com os demais. Impossibilidade de a concessionária cumprir as exigências contratuais com o público, sem prejuízos extensivos aos seus funcionários, aposentados e pensionistas, cujos direitos não puderam ser honrados.
11. Apesar de toda a sociedade ter sido submetida aos planos econômicos, impuseram-se à concessionária prejuízos especiais, pela sua condição de concessionária de serviço, vinculada às inovações contratuais ditadas pelo poder concedente, sem poder atuar para evitar o colapso econômico-financeiro. Não é juridicamente aceitável sujeitar-se determinado grupo de pessoas – funcionários, aposentados, pensionistas e a própria concessionária – às específicas condições com ônus insuportáveis e desigualados dos demais, decorrentes das políticas adotadas, sem contrapartida indenizatória objetiva, para minimizar os prejuízos sofridos, segundo determina a Constituição. (...)(RE 571969, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Tribunal Pleno, julgado em 12/03/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-181 DIVULG 17-09-2014 PUBLIC 18-09-2014)
Como se pode observar, o diferencial para o reconhecimento da responsabilidade estatal foi a existência de prejuízos especiais imputadas a concessionária em condições de desigualdade com os demais.
No presente caso, todo o mercado pernambucano foi atingido pelas medidas de suspensão comercial, não havendo o que se falar de destinatários determinados ou prejuízos especiais, acometendo todos os concorrentes.
Nesse sentido é o entendimento de Cretella Junior[4]:
Tanto lei constitucional danosa como a inconstitucional danosa podem causar danos. Os danos podem atingir todos os destinatários da lei ou podem incidir sobre diminuto número de cidadãos. Se a lei constitucional danosa causar danos a seus destinatários, in genere, o Estado é irresponsável, porque o prejuízo se reparte por todos. Se causar danos a um só, ou a restritíssimo número, deixa a lei constitucional de ser “lei em tese” para erigir-se em ato administrativo e, nesse caso, o atingido pode recorrer aos Tribunais, mediante os adequados remédios jurídicos.
Apesar de a Constituição ter abarcado a teoria da Responsabilidade Objetiva do Estado fundada no Risco Administrativo em seu art. 37, §6º, tendo como requisitos apenas a comprovação do dano e do nexo causal, tal responsabilidade não é ilimitada como no Risco Integral, encontrando limites que podem excluir ou atenuar a responsabilidade como a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, caso fortuito e força maior.
Os Decretos representam a célere reação legislativa dos Estados para conter o avanço da disseminação entre a população que se encontra em “contágio comunitário” com políticas públicas concretas e voltadas num cenário de estado de calamidade que condizem para uma situação de força maior, não representando deleites ou arbitrariedades administrativas, sendo justas, razoáveis e esperadas.
Também não há o que se falar de fator surpresa ou quebra do princípio da confiança pelo impacto econômico da medida, tendo em vista ser essa a política de paralisação/suspensão comercial adotada e indicada por diversas Administrações estrangeiras acometidas pelo vírus, muito antes de chegar ao Brasil.
Na eventual colisão de direitos constitucionais, ensina o princípio da harmonização ou concordância prática que se deve buscar a coexistência harmoniosa entre os bens jurídicos tutelados pela Constituição, de modo a evitar a supressão ou predomínio em abstrato de qualquer deles em detrimento do outro.
Tendo em mente que nenhum direito é absoluto, no presente caso, o livre exercício da atividade econômica está em choque com a própria promoção do bem de todos (objetivo fundamental da República elencado no art. 3, IV), que envolve o direito a vida (art. 5º, caput), a saúde (art. 196), devendo assim ser ressaltado as ações em prol do coletivo, embasado, inclusive, no princípio da Supremacia do Interesse Público.
Diante de todo exposto, pode-se concluir pelo não preenchimento dos requisitos para configuração da responsabilidade civil objetiva estatal por atos legislativos de paralisação comercial.
Notas
[1] http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-covid-19
[2] https://legis.alepe.pe.gov.br/covid-19.aspx
[3] CARVALHO FILHO, José dos santos. Manual de Direito Administrativo. Ed. Atlas. 28ª. 2015. p. 594.
[4] CRETELLA JUNIOR, J. Responsabilidade do Estado por ato legislativo. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 153, p. 15-34, jul/set, 1983