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Coronavírus: aplicação do Código Penal em meio à pandemia no Brasil

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30/03/2020 às 20:14
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O presente estudo aborda a aplicação de tipos penais do código penal como o art. 131, 267 e 268 em meio a pandemia de Covid-19 no Brasil. E as intercorrências que as normas do poder executivo em conter a pandemia trazem a aplicação do código penal.

Resumo: O presente artigo busca demostrar de maneira objetiva a aplicação do direito penal em meio à pandemia que o Brasil passa gerada pelo coronavírus. Medidas estão sendo tomadas com o intuito de conter a doença Covid-19, desencadeada pelo vírus. Com isso, decretos estaduais e leis federais a exemplo da lei nº 13.979/2020 foram editadas a fim de conter o surto epidemiológico. Assim, implicações penais surgem em decorrência do descumprimento de tais medidas. Logo, este artigo demonstrará de que forma se aplica o código penal em meio a essa pandemia, especificamente no tocante ao crime do art. 268 do CP, código penal, infração de medida sanitária preventiva. Como será visto é um tipo penal que terá bastante aplicação, sobretudo devido às medidas tomadas pelo poder público frente ao atual cenário que vive o país. Também serão destacados os crimes de epidemia do art. 131 e desobediência do art. 330, ambos do código penal, trazendo explicações do por que não têm relevância prática no contexto da pandemia atual que se vive.

Palavras-chave: Pandemia, Covid-19, código pena.


1. INTRODUÇÃO

O surto da doença Covid-19 desencadeada pelo coronavírus se alastrou pelo mundo, fazendo com que a OMS, organização mundial da saúde declarasse, em 11 de março de 2020, pandemia de Covid-19. Depois de já muitos países da Europa estarem sofrendo os impactos da doença, como exemplo notório a Itália. Países pelo mundo veem tomando medidas para conter o surto da doença, muitas até proibindo seus cidadãos de transitarem pelas ruas, em estado de quarentena.

O Brasil, por seu turno vem tomando medidas para tentar passar por essa pandemia o mais ileso possível. Medidas estão sendo tomadas em todas as esferas de governo, em nível federal, estadual e municipal. Impactos econômicos e no modo de vida da população já são perceptíveis em todo território nacional.

E, não menos importante, a esfera jurídica penal brasileira não passa despercebida em meio as mudanças trazidas pela pandemia global. Não que o código penal brasileiro venha inovando com algum novo tipo penal, mas de fato tipos penais não tão usuais tem uma maior incidência neste momento, sobretudo, como já falado, devido as medidas tomadas pelo poder público no combate a pandemia, sobretudo com as normas que visam conter o surto de Covid-19 no país.

Assim, conforme veremos, artigos como o 268 do código penal, terão, sem dúvida, uma maior aplicação prática em decorrência de leis e decretos editados pelo poder público com o fim de conter o avanço do Covid-19 em todo território nacional.  


2. PERIGO DE CONTÁGIO DE MOLÉSTIA GRAVE

O crime do art. 131 do CP versa que: “art. 131 - Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa” (BRASIL, 1940). Dirige-se finalisticamente a produção de um dano, que é a transmissão de uma moléstia grave. Não necessitando que o agente consiga transmitir a doença, bastando para a consumação deste crime o comportamento com o fim dirigido a transmissão da moléstia grave. Assim definido pela doutrina como crime formal. De acordo com Greco (2007) o legislador se satisfaz com a prática do comportamento destinado à transmissão de moléstia grave, mesmo que esta não ocorra efetivamente, tratando-se, pois, de crime de natureza formal.

Quanto a forma que o delito pode ser cometido é consenso que pode ser de qualquer forma que se mostre de fato capaz de promover a transmissão da moléstia. O professor Rogério Greco ensina que o agente pode-se valer de meios diretos e indiretos.

Meios diretos dizem respeito àqueles em que houver um contato pessoal do agente, a exemplo do aperto de mão, do beijo, do abraço etc. Indiretos são aqueles que decorrem da utilização de quaisquer instrumentos capazes de transmitir a moléstia grave, a exemplo de seringas, bebidas etc. (GRECO, 2017, p. 565).

Quanto a pena do art. 131, cabe reclusão, de um a quatro anos, e multa. Assim sendo, o acusado sendo conduzido à delegacia de polícia, caberá prisão em flagrante delito. Cabendo, obviamente, a lavratura do auto de prisão em flagrante passar pelo crivo da análise jurídica da autoridade policial, delegado de polícia, que decidirá sobre a sua admissibilidade ou não.

A dúvida pertinente que paira por este tipo penal diz respeito ao fato de que se a Covid-19 é uma moléstia grave ou não, pois somente haverá a aplicação do art. 131 do C.P caso ela seja. Para Greco (2007) este artigo é uma norma penal em branco necessitando de uma complementação do ministério da saúde incluir o Covid-19 no rol das moléstias graves, o que até o presente momento não foi feito.

No entanto, para Masson (2018) moléstia grave pode ser entendida como qualquer doença capaz de gerar séria perturbação da saúde, sendo irrelevante se curável ou não. Bastando ser contagiosa. Ainda sobre o tema Pierangeli (2005, p. 154), ensina que

Indispensável é que sejam contagiosas ou transmissíveis, pelo que devemos recorrer ao regulamento do Ministério da Saúde que classifica as doenças graves e contagiosas, mas a ausência de uma moléstia desse rol não a exclui da consideração sobre ser grave e infecciosa. Com este posicionamento afastamos o critério da norma penal em branco sustentado por parte da doutrina

Por fim, controvérsias a parte, vale ressaltar que é um crime de ação pública incondicionada e que admite apenas a modalidade dolosa. Ou seja, o acusado deve agir com o fim específico de transmitir a moléstia grave, com vontade livre e consciente. Caso o fizesse de forma culposa entende-se que caberia o crime de lesão corporal culposa.

Como vimos o tipo penal do art. 131 paira por muitas incertezas jurídicas, sobretudo pela falta de uma jurisprudência a cerca da doença desencadeada pelo Coronavírus, Covid-19, poder ou não ser considerada como moléstia grave. E outro ponto importante é que o crime exige o especial fim de agir que é de transmitir a moléstia grave, não basta simplesmente o agente praticar atos capazes de transmitir a doença, é necessário que ele tenha a real intenção de transmitir a doença. O que na prática é difícil de constatar. Logo, o mais prudente pelas forças policiais nesses casos é cautela antes de decidir pela condução de um cidadão pelo art. 131, é importante ter testemunhas que presenciaram a prática da conduta do acusado para subsidiar a decisão do agente de segurança pública pela condução, caso assim o decida.

3. INFRAÇÃO DE MEDIDA SANITÁRIA PREVENTIVA

Este crime também é uma norma penal em branco, pois necessita de outra norma para que possa ter eficácia, que seria uma determinação do poder público (lei, decreto, portaria, etc.). Definido no código penal como: “art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa” (BRASIL, 1940). Destina-se a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. De acordo com Greco (2007, p. 1391) “introdução significa o ingresso, a entrada da doença contagiosa, enquanto que propagação deve ser entendida como difundir, disseminar a referida doença”.

Exemplificativamente no estado do Amapá, em relação a Covid-19, há determinação legal do governo do estado, decretos nº 1.414 /2020 e 1.415/2020, com intuito de não somente de impedir a introdução como também a propagação de doença contagiosa, Covid-19. Satisfazendo assim os requisitos do art. 268 do C.P. Logo, o policial se deparando com indivíduo desrespeitando a determinação do poder público, deverá conduzi-lo à delegacia para apreciação do fato pelo delegado de polícia.

Noutro giro, o crime em tela poderá ser cometido por qualquer pessoa, tanto na forma comissiva, fazendo algo proibido pela determinação do poder pública, ou de forma omissiva, deixando de fazer algo determinado pelo poder público. Tendo como sujeito passivo a sociedade.

Com relação à doença contagiosa, define Teles (2004, p. 239)  como sendo “o agravo à saúde, determinado por um agente infeccioso específico ou por seus produtos tóxicos e que pode ser transmitida a outro indivíduo ou suscetível de transmissão por diversos mecanismos”. Logo entendemos que a doença covid-19 se amolda perfeitamente a este conceito e assim satisfazendo requisito do art. 268 do C.P.

Além do mais, Segundo doutrina dominante, trata-se de um crime de perigo abstrato, ou seja, basta que se descumpra a determinação do poder público, não necessitando demonstrar que a conduta corroborou para a introdução ou propagação da doença. É o que nos ensina Bitencourt (2018, p. 336), que se “tratando de crime de perigo abstrato, desnecessária para sua configuração a efetiva introdução ou propagação de doença contagiosa”. Apesar de haver posições em sentido contrário.

Assim, consuma-se no momento da violação da determinação legal, admitindo somente a modalidade dolosa. Ressaltando que se trata de crime de ação pública incondicionada. Com relação a pena, é de detenção, de um mês a um ano e multa, cabendo, no caput, a lavratura do TCO, termo circunstanciado de ocorrência, caso o acusado seja conduzido à delegacia de polícia.

3.1 - DA NORMA FEDERAL PARA CONTER A COVID-19

Com relação à legislação federal é cabível também o enquadramento de certas condutas ao art. 268 do CP. A lei federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, estabelece, dentre outras medidas, “isolamento, quarentena, realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas e vacinação. Bem como determina o dever de todas as pessoa colaborarem com as autoridades sanitárias comunicando imediatamente possíveis contatos com agentes infecciosos do coronavírus e circulação em áreas consideradas como regiões de contaminação pelo coronavírus”. (BRASIL, 2020).

Tais medidas são regulamentadas pelas portarias nº 356, de 11 de março de 2020 do ministério da saúde, que dispõe sobre a regulamentação e operacionalização do disposto na Lei nº 13.979/2020. E pela Portaria Interministerial nº 5, de 17 de março de 2020, que Dispõe sobre a compulsoriedade das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública previstas na Lei nº 13.979/2020.

Esta última portaria inclusive faz menção, em seu art. 4º, ao crime do art. 268 do CP. Destacando que o descumprimento de medidas previstas na Lei nº 13.979 poderão sujeitar os infratores às sanções penais previstas nos art. 268 e art. 330 (desobediência), ambos do código penal. Assim, caso um cidadão esteja descumprindo ordem médica ou recomendação de agente de vigilância epidemiológica, a cerca da obrigação de se isolar ou se submeter à quarentena ou demais medidas médicas, estará incorrendo no delito do art. 268 do CP.

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Todas as medidas estabelecidas na lei 13.979/2020 reguladas pelos decretos supracitados seguem requisitos para serem postos em aplicação, e satisfazendo-os uma vez descumprido as determinações caberá o enquadramento da conduta no art. 268. Para melhor compreensão vejamos o quadro sinóptico de Montenegro e Viana (2020).

Quadro 1 – Quadro sinóptico das medidas sanitárias da lei 13.979/2020.

Medida sanitária

Requisitos

Conduta penalmente relevante (art. 268 CP)

Isolamento: separação de pessoas contaminadas.

– Prescrição médica ou por recomendação do agente de vigilância epidemiológica, com prazo máximo de 14 dias prorrogáveis por igual período (Portaria nº 356 art. 3º, § 1º).

– Comunicação prévia à pessoa afetada sobre a compulsoriedade da medida (Portaria Interministerial nº 5, art. 4º, § 1º).

Infringir o isolamento domiciliar ou hospitalar.

Quarentena: restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes.

Ato administrativo formal e devidamente motivado, publicada no diário oficial e amplamente divulgada pelos meios de comunicação. (Portaria nº 356 art. 4º, § 1º).

Desrespeitar a restrição de atividades determinadas em ato administrativo.

Realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos.

– Indicação mediante ato médico ou por profissional de saúde (Portaria nº 356, 6º).

– Comunicação prévia à pessoa afetada sobre a compulsoriedade da medida (Portaria Interministerial nº 5, art. 4º, § 1º).

Resistir à realização de exames, testes e tratamentos indicados.

Fonte: Montenegro e Viana (2020)

Conforme visto acima, caso uma pessoa descumpra uma das medidas previstas na lei 13.979/2020, como isolamento, quarentena, ou se recuse a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos, desde que essas medidas satisfaçam os requisitos legais, estará infringindo determinação do poder público e incorrendo no crime do art. 268 do CP.

4. DESOBEDIÊNCIA

O crime de desobediência do art. 330 está previsto no título do código penal inerente aos crimes praticados contra a administração pública. Preceitua que: “Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa” (BRASIL, 1940). Não é um crime contra a saúde pública, é cometido até mesmo em cenários normais, sem nenhum surto epidemiológico. No entanto, sua importância no atual cenário decorre das medidas tomadas pela administração pública no sentido de conter o surto de Covid-19 no país, tanto a nível federal com a lei 13.979/2020, quanto a nível estadual e municipal com seus decretos, a exemplo do estado do Amapá com os decretos 1.414/2020 e 1.415/2020.

No entanto, respeitando posições contrárias, entendemos que caso um agente infrinja determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação do Covid-19, estaria incorrendo no crime do art. 268 e a desobediência do art. 330 restaria absorvida por aquele. De acordo com Foureaux (2020) o crime de desobediência é subsidiário, o que quer dizer que somente será aplicado caso não haja outra norma penal, civil ou administrativa.

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