Sabe-se que em uma sociedade tradicional, a figura feminina mexe com os sentidos. Quanto à visão, busca-se a comprovação nas artes com um exemplo enigmático, Mona Lisa (1503-1517) que até hoje prende a atenção não só dos visitantes do museu do Louvre em Paris, mas também do mundo, há mais de 500 anos, por sua naturalidade e mistério. No Brasil, tem- se a obra símbolo do modernismo brasileiro Abapuru, de Tarsila Amaral, em 1929, até hoje estudada, pois embora pareça ser a pintura de uma mulher, o significado do seu nome, em tupi, é homem come gente.
Pelos ouvidos dos receptores, o hino - harmoniosamente afinado à sociedade brasileira da época - considerado pelos historiadores da música nacional, à guisa de Jairo Severiano como clássico do samba “Ai! Que saudade da Amélia”, lançada em 1942, demonstra o ideal a ser perseguido pelas mulheres da época. Paralelamente, a voz melodiosa nas notas do Jazz da estadunidense Norma Deloris Egstrom, mais conhecida como Peggy Lee, lançou em 1963 um clássico chamado I ́m a Womam, cujo teor se projetava no mundo em se vangloriar quanto à capacidade das mulheres em realizar rapidamente serviços domésticos.
Como principal norma de etiqueta social, havia - o necessário domínio da boca das mulheres para a sagrada preservação dos ouvidos dos homens dos anos 50 do século XX - conselhos basilares
Edward Podolsky, em seu livro “How to be a Good Wife”, publicado em 1943, ensina a receita para o casamento dos sonhos: “Não incomode seu marido com problemas insignificantes e reclamações quando ele chegar em casa depois de um dia de trabalho”, dizia ele, que aconselhava também que as mulheres fossem boas ouvintes: “Deixe que ele conte a você sobre os problemas dele; os seus vão parecer bobagem se você comparar”.1
Ainda nesta toada, uma boa mulher precisaria cozinhar bem a ponto de seduzir o olfato do seu esposo.
No livro “Sex Satisfaction and Happy Marriage”, publicado em 1951 pelo reverendo Alfred Henry Tyrer, a importância dos dotes culinários de uma boa esposa foi ressaltada com veemência: “Um chá da tarde, uma matinê, uma estante não são desculpas para não haver jantar pronto quando o marido chega em casa depois de um dia difícil de trabalho”2
A mulher virtuosa teria que considerar de forma intocável o seu esposo, conforme aponta o renomado eugenista Prof. B.G. Jefferis: “A regra número um: reverencie seu marido. Ele sustenta, a mando de Deus, uma posição de dignidade como líder da família e cabeça da mulher. Qualquer quebra nesta ordem indica um erro na união ou uma digressão de dever”3
Delimitadas as solenidades pelas quais as senhoras deveriam ser submetidas, os homens - que intentaram barrar a ascensão comunista, supostamente descortinada pelo chamado Plano Cohen, motivo esse que ensejou a imposição do Estado Novo de Vargas em 1937 - tinham afinidades ideológicas com a dos integralista, cujo líder Plínio Salgado emerge no cenário pelo Partido Arena ultraconservador, machista, religioso, nacional, patriótico e de extrema direita.
Nesse contexto, os ideários conservadores intentavam estabelecer esses predicados à sociedade brasileira e não tinham dúvidas de que suas cônjuges, cujo procedimento estava afim ao de mulheres honestas, teriam um papel fundamental na popularização das aspirações deles. Assim, organizações femininas, como a UCF (União Cívica Feminina) e MAF (Movimento de Arregimentação Feminina), influenciadas por homens da elite empresarial militar, ajudaram a organizar em São Paulo, no 19 de março de 1964, a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, cujo mote era a resposta ao inesquecível comício do então Presidente João Goulart que anunciara suas propostas de Reforma de Base que objetivara reestruturar as instituições políticas, jurídicas e econômicas do País, com fins de debelar as profundas desigualdades sociais. Políticos famosos representaram o modelo de família expondo suas esposas nesse evento.
A fim de estimular a população, tal casta de mulheres fora utilizada pelo movimento militar para dar ares de espontaneidade e legitimidade ao intento deles - muitas já, confortavelmente, acobertadas pelas disposições da Lei nº 3.765, de 4 de maio de 1960, que instituíra pensão vitalícia à esposa e a filhas não inválidas. Atribuía-se a essas mulheres chamadas de “guerrilheiras perfumadas” características estilísticas da época, tratando-as como “santas mães de família”. Como exemplo dessas mulheres “puras”, cite-se apenas duas: a criadora e a vice-presidente da CAMDE (Campanha da Mulher Pela Democracia) Amélia Molina Bastos, irmã do General Molina e Eudóxia Ribeiro Dantas, esposa de José Ribeiro Dantas empresário no ramo aéreo, respectivamente.
Em 3 de abril de 1964, os vitoriosos reuniram-se para escolher o candidato à presidência a ser nomeado. Entretanto, tal entendimento não poderia passar sem ser consultada a presidente da UFC Regina Figueiredo Silveira, irmã de banqueiro primo de militar, para que ela lançasse o nome de Castelo Branco, através de sua organização que deveria elevar um manifesto de apoio a ser veiculado pelas televisões.
Do lado diametralmente oposto, havia guerrilheiras não tão perfumadas assim. Não faziam parte da elite articuladora do golpe de Estado de 1964, não tinham a estilística, tampouco, o status social das perfumadas. Ao contrário, seu forte odor demostrava o suor das lutas e torturas e no espelho da alma delas reflexava-se a forma brutal e desumana como foram tratadas pela contrafação do regime democrático, marcadas pelas digitais do tato autoritário. Alçada a um nível de coragem e obstinação, Dina baiana, torturada enquanto grávida, segundo relatórios da Comissão da Verdade, olhou para seu covarde algoz e disse: “eu quero morrer de frente”. Amelinha relatou à mencionada Comissão ter ouvido os gritos do famoso “pau-de-arara, e neste interim, ter visto seus filhos lhe verem em tal situação de tortura. Não deixou de sentir pelos clamores dos seus amigos ecoarem nos fétidos porões de horror, sem desprezar o fato de ter o gosto amargo na sua boca em ter estado com o terrível Coronel Ustra que cruelmente tocava em sua pele com instrumentos de choque quase letais.
Guerrilheiras perfumadas e Guerrilheiras não perfumadas. Eis a questão: onde estavam presentes as cores vivas e reais do verdadeiro amor à pátria? As primeiras foram levadas, abraçadas pelos seus esposos, a empunhar nas mãos a bandeira verde e amarela sem significado coletivo. As últimas levavam no coração ferido a bandeira vermelha que prenunciava o sangue que jorraria do suor das torturas. O dia 1º de abril de 1964 estaria escrito nas paredes dos calabouços solitários por mais de 20 anos de escuridão e “cale-se”.
O dia 1º de abril é mundialmente conhecido como dia da mentira. Conta-se que na França a passagem do ano era comemorada na mudança do mês de março para abril. Com a alteração para o calendário gregoriano, passou-se a festejar o novo ano em primeiro de janeiro. Entretanto, muitos desavisados ainda permaneceram celebrando-o na data antiga e por isso sofriam escárnios. Por isso, o primeiro dia do quarto mês do calendário gregoriano é conhecido como “o dia dos tolos” ou “dia da mentira”.
No caso brasileiro, a chamada Revolução Democrática da Família não passava de uma grande mentira. Primeiramente, não havia nenhuma revolução, já que não houvera nenhuma revolta ou mudança drástica, pois o monopólio militar com sua constante observação quanto à manutenção de seus interesses, permanecia no comando, desde a proclamação da república com o primeiro Presidente o Marechal Teodoro da Fonseca, até aqueles dias de 1964 com o militar Castelo Branco. Nesse hiato temporal, somente se alteraram os figurinos, aos cinquenta tons de verde-oliva, entretanto, a festa sempre foi a mesma. O sistema democrático só existia nas capas dos jornais monopolizadores da época. Assim, o povo estava totalmente alienado desse processo, sendo um movimento da elite branca e letrada, frente um Brasil com altos índices de analfabetismo, então, insubsistente confundir um regime totalitário nas mãos de coronéis com democracia, cujo cerne está em privilegiar o povo. Por fim, a família numa perspectiva eugênica estava resguardada, entretanto, milhares de outros lares tiveram seus componentes estranhamente abduzidos ao além das vistas, sem nunca terem tido a oportunidade de rever suas faces.
O Brasil encontra-se em reflexão. Em quarentena, pela ameaça invisível e mortal da Pandemia do Coronavírus, deve-se acionar os limpadores auriculares para ouvir a voz do silêncio dos inocentes que vagueiam nas profundezas das trevas vividas sob o comando militar aos moldes tupiniquins*. Em 2018, as urnas expressaram o retorno de um fenótipo militar, certamente pela tradição brasileira de desconhecer sua história. Tal fato, enseja a oração que Jesus fez pregado na cruz, com adaptações: - “Pai, perdoa-lhes porque não souberam o que fizeram”. Considerando o dito popular que “Deus é brasileiro”, Sua misericórdia com o País parece durar para sempre.
Dessarte, que o golpe de Estado venha à mente do povo como estudo de caso concreto de todo o caminho pelo qual o Brasil não deve voltar a percorrer. Para tanto, é urgente o fortalecimento dos pilares democráticos, com instituições cada vez mais hígidas, interligadas e comprometidas com o bem comum, afastando de nós, como cantou Chico Buarque, “este cale-se”, sendo indubitável que “apesar de você amanhã há de ser outro dia”.
Notas
1 Disponível em https://www.megacurioso.com.br/comportamento/75330-5-conselhos-que-as-esposas-ouviam-nos-anos-50-para-agradarem-a-seus-maridos.htm acesso em 01/04/2020.
2 IDEM
3 IDEM