Capa da publicação Covid-19 e responsabilidade do Estado pela demissão de empregado: riscos do art. 486 da CLT
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Os riscos de se aplicar o art. 486 da CLT.

Análise a partir das excludentes de responsabilidade civil da administração pública

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02/05/2020 às 09:30
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4. A POSSIBILIDADE DA EXISTÊNCIA DE EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE - ANÁLISE, EM ESPECÍFICO, DO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL 

Ultrapassado o ponto anterior, é possível agora analisar os riscos de se aplicar o art. 486, da CLT, a partir da possibilidade de existência de excludentes da responsabilidade civil. Mais detidamente, se abordará a possibilidade (já consolidada pela jurisprudência) do reconhecimento do estrito cumprimento do dever legal e será feito um paralelo entre os deveres do Estado de garantir segurança pública (art. 144, CF/88) e de garantir saúde e reduzir o risco de doenças (art. 196, CF/88).

Assim, assume-se, agora, que o empregador teve de paralisar suas atividades por conta de um Decreto (municipal ou estadual) e, em decorrência direta disso, precisou rescindir os contratos de trabalho de seus empregados.

Nessa hipótese, Governadores e Prefeitos serão responsabilizados pelo pagamento das indenizações?

Depende!

Mesmo que o artigo 486 da CLT preceitue que a Administração Pública seria responsável pelo pagamento da indenização, o Estado estaria isento de arcar com a indenização caso comprovasse ter ocorrido alguma das excludentes de responsabilidade civil.

Novamente, deve-se relembrar que a Constituição Federal de 1988 (CF/88) preceitua, em seu art. 196, que a “saúde é direito de todos e DEVER DO ESTADO, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença [...]”. Relembre-se, também, que a Organização Mundial de Saúde (OMS), onde trabalham alguns dos maiores especialistas em saúde pública de todo o mundo, recomendou o isolamento e a quarentena para o combate ao Coronavírus.

Pois bem.

Os Governadores e Prefeitos são agentes públicos (classificados como agentes políticos). Esses agentes públicos têm, como visto, de acordo com o art. 196, da CF/88, o DEVER LEGAL de garantir saúde à população promovendo a redução ao risco de contaminação por doenças.

Aventa-se, assim, a possibilidade de se entender configurada a excludente de responsabilidade pelo estrito cumprimento do dever legal - o que se faz simplesmente por constatar que o tema é abundante na jurisprudência -, uma vez que os Governadores e Prefeitos tiveram de tomar medidas, tais como a quarentena e a proibição da prática de atividades empresariais não essenciais, para fazer com que houvesse redução do risco de a população contrair a doença e para poder prestar o auxílio adequado aos que, porventura, ainda assim contraírem a moléstia (o que se diz diante do iminente colapso do sistema de saúde). Além disso, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular seria mais um ingrediente para corroborar com a medida tomada pelos governantes.

Outra vez é preciso destacar que existiriam inúmeros posicionamentos contrários, entendendo que a Administração Pública possui responsabilidade objetiva e que se aplica a Teoria do Risco, segundo a qual mesmo atos lícitos (como a publicação dos Decretos pelos Governadores e Prefeitos) poderiam ensejar o dever de indenizar. Esta corrente de pensamento poderia entender, portanto, que a excludente de responsabilidade civil mencionada (estrito cumprimento do dever legal) não se aplicaria ao presente caso. Afirmariam, assim, que tal excludente de responsabilidade recai sobre a licitude ou ilicitude do ato (art. 188, I, Código Civil), o que não seria levado em consideração na Teoria do Risco.

Nada obstante, é preciso destacar mais uma vez que o objetivo deste artigo é demonstrar que há riscos na aplicação do art. 486, da CLT, uma vez que existem fundamentos para embasar todos os diferentes posicionamentos. A teoria do estrito cumprimento do dever legal vai ser abraçada pelo Judiciário? Não se sabe! Mas é uma hipótese plausível uma vez que já consolidada na jurisprudência e, por conta disso, traz riscos aos que pretendem se valer do dispositivo celetista mencionado.

E veja-se que se diz que a hipótese é plausível porquanto diversos julgadores, Brasil afora, quando analisam a atuação de policiais (ou seja, agentes públicos) no desempenho de suas atribuições, entendem que se aplica à Administração Pública a ideia de que se o agente público age em decorrência do estrito cumprimento do seu dever legal, sem praticar abusos ou excessos, restaria configurada uma excludente de responsabilidade civil do Estado.

Muito embora a maior parte dos julgados traga rasa fundamentação sobre o assunto, sem se aprofundar no fato de ser uma excludente de ilicitude e no fato de a ilicitude não ser parâmetro para análise da Teoria do Risco (tanto Integral quanto Administrativo), estabeleceu-se, na jurisprudência, que apenas os atos praticados, pelos policiais agentes públicos, com excesso e abuso de direito é que seriam indenizáveis.

A justificativa para tal seria a de que caso fossem punidos quaisquer atos lícitos praticados por agentes públicos (no caso, policiais) que resultassem em dano (e não apenas aqueles praticados com abusos e excessos), se criaria obstáculos à garantia de segurança pública.

Veja-se exemplo extraído do Acórdão proferido na Apelação Cível 2010062334-2, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em cuja Ementa constou que somente se pode aventar a responsabilização civil da Administração Pública pela prática de ato ilícito ou ato praticado com excesso e abuso de poder, sob pena de ser o Estado obrigado a indenizar quando age no exercício de sua função de prestar segurança pública.

Fazendo um paralelo, assim como a garantir segurança pública é um dever do Estado (art. 144, CF/88), prover saúde para a população e evitar a disseminação de doenças (art. 196, CF/88) também é; todos os agentes públicos (policiais, Governadores e Prefeitos) possuem, portanto, o dever legal de cumprir o disposto na Constituição Federal. Não seria nenhum absurdo entender que se o Estado somente pode ser responsabilizado pelos atos praticados pelos policiais, no exercício de garantir segurança pública, com abuso ou excesso, da mesma forma o Estado somente poderia ser responsabilizado pelos atos praticados pelos Prefeitos e Governadores, no exercício de prover saúde e evitar a disseminação de doenças - em meio à pandemia causada pelo COVID-19 -, também eivados de excessos ou abusos.

Veja-se outro exemplo: abaixo consta um trecho de uma decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“Entretanto, não haverá responsabilização do Estado naquelas hipóteses em que for demonstrada alguma das excludentes do dever de indenizar, quais sejam, culpa exclusiva da vítima, caso fortuito, força maior, fato exclusivo de terceiro ou se o ato for praticado no estrito cumprimento de um dever legal, sem a ocorrência de abusos, tendo em vista a adoção pelo nosso sistema jurídico da Teoria do Risco Administrativo e não da Teoria do Risco Integral”. (TJRS, Apelação Cível 70080621345, Sexta Câmara Cível, Relator Des. Niwton Carpes da Silva, Julgado em 23 de maio de 2019)

Ou, ainda, a ementa de Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina em processo no qual o Estado era réu:

AÇÃO CONDENATÓRIA AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DENÚNCIA DE QUE INDIVÍDUO PORTAVA ARMA DE FOGO EM LOCAL PÚBLICO. ABORDAGEM POLICIAL NECESSÁRIA. AUTOR QUE SE IDENTIFICOU COMO POLICIAL CIVIL MAS NÃO PORTAVA O DOCUMENTO FUNCIONAL. CONDUÇÃO PELOS AGENTES PARA ESCLARECIMENTOS. USO DE ALGEMAS PROPORCIONAL À ATRIBUIÇÃO DE PROTEÇÃO E SEGURANÇA. ATUAÇÃO NO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE NÃO EVIDENCIA ABUSO OU EXCESSO. CAUSA EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE OBJETIVA VERIFICADA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação Cível 0007879-20.2011.8.24.0005, Primeira Câmara de Direito Público, Relator: Des. Jorge Luiz de Borba, Julgado em 30/07/2019)

Ambas as decisões apenas preceituam que se o agente público age no estrito cumprimento do seu dever legal, sem praticar abusos e excessos, a Administração Pública não poderia ser responsabilizada civilmente pelo pagamento de indenização. É certo que as decisões tratam de ações policiais, todavia os policiais são agentes públicos assim como os Governadores e Prefeitos, de tal modo que o entendimento aplicável a um pode, ressalvados casos específicos, se estender a todos.

E relembre-se, novamente, ensinamento de Gilmar Mendes[11] afirmando que em um Estado constitucional garantidor de direitos fundamentais, deve haver uma precisa e adequada investigação das circunstâncias nas quais ocorreu o suposto fato danoso antes de se impor o dever de indenizar - ora, se está diante de uma pandemia sem precedentes; nada mais justificável, portanto, do que as medidas tomadas por Prefeitos e Governadores para o cumprimento da Constituição Federal, seguindo ainda o que especialistas em saúde pública da OMS estabeleciam como indicado para o combate ao vírus.

Vê-se, portanto, que existem bons argumentos para considerar que existiria uma excludente de responsabilidade e, caso isso venha a ocorrer, a Administração Pública não poderá ser responsabilizada pelo pagamento da indenização mencionada no art. 486, CLT. Além do estrito cumprimento do dever fundamental, trazido aqui à guisa de exemplo, existem diversas outras excludentes de responsabilidade que podem ser aplicadas ao caso, havendo por conseguinte uma gama de riscos àqueles que desejam aplicar o dispositivo celetista.


5. DA POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR LEIS CONSTITUCIONAIS

Por fim, ainda se pode abordar posicionamento existente na doutrina segundo o qual a Administração Pública somente poderia ser responsabilizada no caso da prática de atos legislativos inconstitucionais.

Veja-se ensinamento de Carvalho Filho[12] sobre o tema:

“Apesar da divergência existente entre os autores nacionais, entendemos que o ato legislativo não pode mesmo causar a responsabilidade civil do Estado, se a lei é produzida em estrita conformidade com os mandamentos constitucionais. Com a devida vênia dos que pensam em contrário, não vemos como uma lei, regularmente disciplinadora de certa matéria, cause prejuízo ao indivíduo, sabido que os direitos adquiridos já incorporados a seu patrimônio jurídico são insuscetíveis de serem molestados pela lei nova, ex vi do art. 5º, XXXVI, da CF. Acresce, ainda, que a lei veicula regras gerais, abstratas e impessoais, não atingindo, como é óbvio, direitos individuais”.

Ou seja, segundo tal entendimento, caso o ato legislativo esteja estritamente de acordo com os mandamentos constitucionais, sendo regularmente disciplinador de determinada matéria, não haveria a possibilidade de a Administração Pública vir a ser responsabilizada por indenizar os eventuais danos daí advindos.

No mesmo sentido, veja-se ensinamento de Mendes[13]:“Assinale de tenha sido declarada pelo Poder Judiciário.” (RDA, 135/26.) Assim, parece forçoso concluir, por conseguinte, que o reconhecimento do dever de indenizar dano oriundo de ato legislativo ou de atos administrativos decorrentes de seu estrito cumprimento depende da declaração prévia e judicial da inconstitucionalidade da lei correlata. E isso pela simples razão de que, até ser declarada inconstitucional, e se o for, nenhuma lei pode considerar-se contrária à ordem jurídica.”.

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Desta feita, seria possível, ainda, aventar a hipótese de que seria imprescindível, para a condenação da Administração Pública ao pagamento da indenização prevista no art. 486, CLT, que os Decretos municipais e Estaduais fossem declarados inconstitucionais, sendo que atualmente não há qualquer movimento nesse sentido dentre os operadores do direito. Novamente, um risco apresentado aos que querem fazer uso do dispositivo celetista para rescindir os contratos de trabalho de seus empregados.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se, portanto, que o art. 486 da CLT - que apareceu como uma esperança a empregadores desesperados pela crise causada pela pandemia do Coronavírus e pela quarentena imposta em diversos Estados e Municípios - traz, consigo, uma série de dúvidas e inseguranças.

Conforme visto, há a possibilidade de que sejam aventadas teses considerando a excludente de responsabilidade da Administração Pública - não apenas o estrito cumprimento de dever legal, como aqui abordado, mas certamente diversas outras teses surgirão.

O Judiciário irá abraçá-las? Só o tempo dirá. Todavia, chance existe, e é inegável que quem aplica o art. 486, da CLT, precisa estar ciente dos riscos que corre.

Vale ainda ressaltar que se está diante de um quadro de rescisão do contrato de trabalho e de um possível pagamento de verbas trabalhistas pelo Estado - é sabido que demandas contra o Estado, que ensejam o seu dever de pagar, por vezes são muito demoradas. Isso[14], somado ao princípio da proteção do trabalhador, pode influenciar no posicionamento do Judiciário, ao adotar uma ou outra tese, responsabilizando o próprio empregador (e não a Administração Pública) pelo pagamento das verbas.

Por fim, mas não menos importante, vale destacar que é posicionamento já consolidado nos Tribunais brasileiros o de que a crise financeira faz parte do risco empresarial. Assim, ainda aventa-se a possibilidade de mais esse ingrediente ser considerado na análise.

As possibilidades, portanto, são muitas e aquele que adota o art. 486, da CLT, como a medida a ser tomada deve estar plenamente ciente de que, no futuro, poderá (ou não) ser responsabilizado pelo pagamento das verbas decorrentes da extinção contratual.


Notas

[1] Disponível em < https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-defende-que-governadores-prefeitos-paguem-encargos-trabalhistas-por-dias-parados-24332785>. Acesso em 27/03/2020.

[2] CASSAR, Voilá Bonfim. Direito do Trabalho. São Paulo: Método, 2014.

[3] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Malheiros, 2004.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2015.

[6] MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012.

[7] MENDES, Gilmar. Op cit.

[8] MENDES, Gilmar. Op cit.

[9] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit.

[10] MENDES, Gilmar. Op cit.

[11] MENDES, Gilmar. Op cit.

[12] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit.

[13] MENDES, Gilmar. Op cit.

[14] CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2008.

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Sobre o autor
Luiz Fernando Calegari

Advogado, OAB/SC 49886, sócio do escritório Fontes, Philippi, Calegari Advogados, graduado em Direito (Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC), Especialista em Direito Civil (Rede LFG) e em Compliance Contratual (LFG), Mestrando em Direito (UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALEGARI, Luiz Fernando. Os riscos de se aplicar o art. 486 da CLT.: Análise a partir das excludentes de responsabilidade civil da administração pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6149, 2 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80836. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Este artigo é uma atualização e um aprofundamento no estudo do artigo "Os riscos de se aplicar o art. 486 da CLT: rescindir o contrato de trabalho e esperar que o Governo pague a indenização? Não é bem assim!".

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