A inexigibilidade de conduta diversa diante dos efeitos da crise gerada pelo covid-19

03/04/2020 às 11:30
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Reflexões sobre a inexigibilidade de conduta diversa configurada pelas dificuldades financeiras provocadas pelos efeitos da crise do Covid-19.

As determinações de isolamentos, quarentenas e fechamento temporário do comércio no Brasil e no mundo para conter a epidemia da Covid-19 causam efeitos fulminantes na economia. Diante disso, os governos federal e estaduais começam a organizar e, mais à frente, implementar, políticas de apoio aos setores atingidos pelas medidas sanitárias e pelos impactos na saúde coletiva que já estão acontecendo e, infelizmente, ainda marcarão nossa rotina.

Mas vem a pergunta: a falta de recolhimento de impostos e contribuições pode ser considerado crime?

O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º (inciso II) da Lei 8.137/1990”. Com esse entendimento, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) concluíram na sessão desta quarta-feira, dia 18 de dezembro do corrente ano, o julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) 163334, interposto pela defesa de comerciantes de Santa Catarina denunciados pelo Ministério Público Estadual (MP-SC) por não terem recolhido o imposto.

O julgamento teve início, quando a maioria dos ministros se manifestou pela criminalização da apropriação indébita do imposto. A corrente majoritária seguiu o entendimento do relator, ministro Roberto Barroso, para quem o valor do ICMS cobrado do consumidor não integra o patrimônio do comerciante, o qual é mero depositário desse ingresso de caixa que, depois de devidamente compensado, deve ser recolhido aos cofres públicos. O ministro, contudo, frisou que, para caracterizar o delito, é preciso comprovar a existência de intenção de praticar o ilícito (dolo). “Não se trata de criminalização da inadimplência, mas da apropriação indébita. Estamos enfrentando um comportamento empresarial ilegítimo”, resumiu o ministro.

O ministro Edson Fachin lembrou que, no julgamento do RE 574706, o Supremo entendeu que o ICMS não integra a base de cálculo para PIS/Cofins exatamente por não fazer parte do faturamento do sujeito passivo da obrigação (no caso, o comerciante). Para Fachin, o valor que entra a título de ICMS apenas circula na contabilidade do comerciante, mas não ingressa definitivamente no seu patrimônio. Assim, no seu entendimento, não se trata apenas de inadimplemento fiscal, “mas sim a disposição de recurso de terceiro”.

Esse foi o mesmo argumento da ministra Rosa Weber. Para ela, a cobrança e a posterior omissão de recolhimento pelo comerciante implica efetivamente apropriação de valor de terceiros, o que legitima a tipificação penal. A ministra Cármen Lúcia votou no mesmo sentido, ressaltando que o recolhimento ao fisco do valor cobrado a título de ICMS é uma obrigação insuperável do comerciante.

Quanto ao artigo 168 – A do Código Penal vale o comentário abaixo.

A conduta de apropriar‐se indevidamente de bem alheio consuma‐se quando o agente tem a posse ou detenção de um bem alheio que, uma vez reclamado, não é restituído ao dono legítimo. Apropriando‐se o agente de valores que deveriam ser repassados à Previdência Social, comete o agente o crime inscrito no artigo 168 –A do Código Penal.  

A contribuição previdenciária é composta por duas parcelas: calculadas a partir do salário pago pelo empregador e a outra pelo empregado, cabendo, entretanto, ao empregador, reter o valor, descontado do salário do empregado e repassá‐lo ao Instituto Nacional do Seguro Social. A apropriação indébita de verba previdenciária representa a retenção de parte do salário do empregado pelo empregador, desacompanhada do respectivo repasse.  

Tem‐se no crime: posse anterior do bem alheio; apropriação desse bem e dolo.   Com o Decreto‐lei n  65/1937, a matéria veio a lume, sendo incluída no texto da Lei Orgânica da Previdência Social, de 1960. Em 1976, entrou em vigência a Consolidação das Leis da Previdência, incluído o delito no artigo 149.  

A Lei 8.212, de 1991, no artigo 95, criminalizou a conduta de apropriação indébita previdenciária, alínea d, fazendo‐se referência ao Código Penal para aplicação da pena. Por sua vez, a Lei 9.983, de 14 de julho de 2000, revogando o artigo 95 e parágrafos da Lei n º 8.212, dispondo a matéria no artigo 168 – A do Código Penal.  

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou posição no sentido de que para a caracterização do delito de apropriação indébita previdenciária, basta o dolo genérico, devendo ser classificado o crime como omissivo próprio.  

Entendeu, ainda, o Superior Tribunal de Justiça, que é desnecessário o dolo específico e a efetiva apropriação dos valores arrecadados para a configuração do crime de apropriação indébita previdenciária. Com base em entendimento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal em relação ao delito de apropriação indébita previdenciária se exige a constituição definitiva do crédito tributário, para que se dê a persecução penal por se tratar de crime omissivo.   Caso haja inquérito aberto deve o mesmo ser trancado, se teve início a despeito da constituição definitiva do crédito tributário.  

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do HC 145.649/PE, Relator Ministro Felix Fischer, DJe de 23 de agosto de 2010, reiterou que o crime de apropriação indébita de contribuições previdenciárias é omissivo próprio, sendo despiciendo qualquer especial fim de agir para a sua caracterização.  

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Não tenho dúvidas no sentido de que a gravíssima onda de crimes que ocorre no Brasil diante da aplicação da política sanitária de saneamento com a suspensão de contratos de trabalho, demissões, fechamento de estabelecimentos comerciais, traz à discussão a possiblidade de aplicação da exculpante de inexibilidade de conduta diversa, pois há evidente situação de agravamento na situação financeira, levando a clara posição de inadimplência. Aliás, o próprio Poder Público tem adiado o pagamento de tributos através de atos normativos.

A não exigibilidade de conduta diversa supõe que a ocorrência exceda a natural capacidade humana de resistência à pressão dos fatos, pois se o Direito não impõe heroísmos, reclama uma vontade anticriminosa firme, até o limite em que razoavelmente pode ser exigida.  

É necessário que tais dificuldades sejam graves, a indicar a real ausência de condições de saldar o compromisso. A omissão no recolhimento do tributo deve revelar-se uma medida última. Afinal, somente em situação anormal, extremamente grave e excepcional é possível a exculpação, sendo, pois, insuficiente a referência genérica à crise econômica e ao desemprego para configurá-la, mormente se o agente abriu mão das vias normais para a solução do conflito como ensinou Nivaldo Brunoni((Princípio de Culpabilidade: Considerações, Ed. Juruá, Curitiba, p. 275).

As dificuldades financeiras criadas pela crise não deixam ao empresário outra conduta: não pagar.

Trata-se, evidentemente, de questão complexa, que exige um exame cauteloso das circunstâncias que envolvem o caso concreto. Dito isso, após tal análise, vislumbra-se a possibilidade de reconhecer a excludente de culpabilidade. 

Na lição de Marco Antônio Nahum(Inexigibilidade de conduta diversa, pág. 98) que "no Brasil, reconhecida taxativamente a lacuna do sistema jurídico quanto às hipóteses de inexigibilidade de conduta diversa, há que se admiti-la como causa supralegal e excludente de culpabilidade, sob pena de não se poder reconhecer um pleno direito pena de culpa.

Por fim, observe-se a lição de Baumann(Derecho penal - conceptos fundamentales y sistema, pág. 70 e 71) quando disse que "se se admite que as causas de exclusão da culpabilidade reguladas na lei se baseiem no critério da inexigibilidade, nada impede que, por via de analogia jurídica, se postule a inexigibilidade como causa geral da exclusão da culpabilidade".

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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