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Proibição de foie gras por norma municipal

15/05/2021 às 11:00
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O artigo tem como escopo elucidar os aspectos a serem observados no julgamento do RE 1.030.732, que decidirá a constitucionalidade da Lei 16.222/2015 do município de São Paulo (SP), que proíbe a produção e comercialização de “foie gras” no comércio local.

Breve síntese

A Associação Nacional de Restaurantes (ANR) ajuizou ação questionando a constitucionalidade da Lei 16.222/2015 do município de São Paulo (SP) que proíbe a produção e comercialização de “foie gras” (patê de fígado de ganso) no comércio local.

No julgamento, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) julgou inconstitucional a Lei municipal 16.222/2015, editada com o objetivo de aumentar a proteção aos animais, por entender que a atuação legislativa do município se limita aos assuntos de interesse local ou de caráter supletivo da legislação federal e estadual. Para o TJ-SP, o município não pode proibir, de forma ampla e geral, a comercialização de determinado produto, interferindo diretamente em sua produção e em seu consumo.

A questão foi parar no STF.

Isso porque o município de São Paulo afirma que a lei visa coibir práticas de crueldade aos animais e que o ente federativo municipal é competente para legislar sobre a proteção do meio ambiente. Para o Município, a vedação da produção e da comercialização de “foie gras” são matérias de interesse local, porque São Paulo é o maior centro consumidor da mercadoria no território nacional.

De outro modo, o procurador-geral de Justiça do Estado de São Paulo alega que a competência para legislar sobre a fauna não é exclusiva da União e dos Estados. O Procurador argumenta que, em razão da competência política administrativa comum de preservação da fauna e da competência legislativa suplementar, os municípios podem, atendendo ao interesse local, instituir regras para dar maior proteção aos animais e que a atividade econômica deve ser realizada em harmonia com os princípios e diretrizes orientados à preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

O STF

Ao ser chamado a decidir sobre a matéria, o Supremo Tribunal Federal reconheceu ser admissível o Recurso Extraordinário (RE) 1030732, e que a matéria possui repercussão geral (Tema 1.080).

O relator do RE, Ministro Luiz Fux, entende haver relevância nos aspectos social, econômico, jurídico e, que a resolução da controvérsia levará em conta o peso a ser dado, de um lado, ao princípio da livre iniciativa e, de outro, aos princípios da proteção do consumidor e do meio ambiente.

Destacou ainda, que a questão transcende os limites subjetivos da causa e tem impacto potencial em diversos casos, pois há municípios, como Florianópolis (SC) e Blumenau (SC), que têm legislação semelhante.

Além do mais, o Ministro lembrou que, no julgamento do RE 586.224, o Plenário reconheceu a competência municipal para legislar sobre direito ambiental, no limite do interesse local e desde que tal regramento seja harmônico com a disciplina estabelecida pelos demais entes federados (Tema 145 da Repercussão Geral).

a Constitucionalidade da lei

Analisaremos a constitucionalidade da referida lei por dois aspectos: formais e materiais.

Sob o prisma da formalidade não nos parece ter qualquer vício. Elucido.

O art. 23, VI e VII determina que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; e preservar as florestas, a fauna e a flora.

Do mesmo modo, o art. 24, VI, VII e VII deixa claro que há competência concorrente da União, Estados e Municípios para legislar sobre: florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico; responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

De mais a mais, sendo o comércio de patê de fígado de frango, uma cultura um tanto quanto local, o art. 30, I e II dispõe que compete aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local, bem como suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.

Assim sendo, em uma primeira vista, a referida lei não carece de vício de formalidade, pois o Município é competente para legislar sobre a matéria.

Analisando a materialidade da referida lei, há uma série de nuances a se constatar. Veja.

De um lado podemos verificar que a Carta Magna consagra, no parágrafo único do artigo 170, a liberdade de iniciativa como princípio fundamental, sendo proibido, porém, que este direito interfira no núcleo essencial de outros princípios de elevado interesse público.

Do outro lado a mesma Carta Cidadã determina no art. 170, V que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios da defesa do consumidor e defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.

E assim colocamos o Judiciário mais uma vez para decidir questões de relevante impacto econômico, cultural e que, caso não seja cauteloso, gerará grande insegurança jurídica.

Democracia

Percebemos até aqui, que a decisão que o STF adotar nesse caso, ultrapassará os limites subjetivos da causa, por isso, não à toa, o relator reconheceu a Repercussão Geral e se reservou a julgar a matéria juntamente com todos os Ministros da Corte.

Mas isso só não basta, eis que, como dito, se trata de decisão que afetará aspectos, econômicos, culturais e de proteção ao meio ambiente. Explico.

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Primeiramente, lembremos que o poder legislativo municipal é composto de representantes do povo, que o povo elegeu exercendo soberania popular (art. 14, ss, da CF). Soberania esta que é fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º da CF).

Sendo assim, antes de avançar, ressalte-se que a lei municipal foi elaborada e votada por representantes do povo e, por conseguinte, o STF deve-se ter máximo de cuidado para que não ultrapasse a sua competência e interfira na esfera de atuação de outros poderes da república, sob pena inclusive e enfraquecer ainda mais os ideais democráticos.

Ocorre que, embora saibamos disso, o STF não pode se abster de tomar decisões sobre a constitucionalidade de leis, ainda que seja ultrapassado os limites subjetivos da lide. Vejamos, por exemplo, o julgamento sobre a lei que regulamentava as vaquejadas (ADI 5710) e o julgamento declarando a constitucionalidade de lei gaúcha que permite sacrifício de animais em rituais religiosos (RE 494601).

Isto é, o STF não tem sido omisso em situações como essa.

Contudo, o STF deve adotar os instrumentos necessários para esse julgamento, pois embora o objeto seja o questionamento de uma lei em abstrato, essa decisão poderá gerar consequências no enfraquecimento dos ideais democráticos, bem como nas esferas sociais, econômicos e culturais da população do município de São Paulo.

Instrumentos para a consecução dos ideais democráticos.

Assim, o que pode-se fazer para que tentemos preservar a democracia, que tem a participação popular como pilar, e ao mesmo tempo garantir que a decisão observe todos os aspectos subjetivos da lide e suas consequências?

Uma das possibilidades é o amicus curiae.

O amicus curiae ou “amigo da corte”, previsto no art. 138 do CPC, é um terceiro com interesse institucional, de notório conhecimento sobre a matéria, que contribui com na qualidade da decisão, dando sua versão sobre o que está sendo discutido, voltado especialmente à melhor solução possível e aos efeitos práticos da escolha.

Esse interesse institucional, por parte do amicus curiae, é o que mais se aproxima do interesse público, embora não se confunda. Isto porque, ele não possui interesse próprio de natureza subjetiva na demanda[1].

Ou seja, o ingresso de um terceiro, na condição de amicus curiae com notório saber sobre a matéria da proibição ou não da comercialização do "foie gras", nos traz a ideia de participação popular e, por conseguinte, a consecução dos ideais democráticos, podendo legitimar e melhorar a qualidade da decisão do STF.

De outro modo, também buscando a concretização dos ideais democráticos nesta decisão e, tentando antever as consequências práticas nas esferas sociais, econômicos e culturais da população do município de São Paulo, outra possibilidade é a convocação de audiência pública.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, as audiências públicas foram regulamentadas pela Emenda Regimental 29/2009, que atribuiu competência ao Presidente ou ao Relator, nos termos dos art. 13, XVII, e 21, XVII, do Regimento Interno, para “convocar audiência pública para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em determinada matéria, sempre que entender necessário o esclarecimento de questões ou circunstâncias de fato, com repercussão geral e de interesse público relevante” debatidas no Tribunal[2].

Conclusão

Diante de todo exposto, verifica-se que, embora o objeto da lide seja o questionamento de uma lei em abstrato, a decisão do STF sobre a proibição do consumo de “foie gras” no Município de São Paulo pode gerar consequências no enfraquecimento dos ideais democráticos, bem como nas esferas sociais, econômicos e culturais da população.

Portanto, para salvaguarda dos princípios democráticos e para ter a dimensão das consequências que a decisão pode causar, faz-se necessário que o STF utilize-se do “amicus curiae” e até mesmo de audiências públicas, permitindo a participação da sociedade através de pessoas com experiência e autoridade na matéria e, por conseguinte, legitimando sua decisão.


[1] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil – Vol Único. 8. Ed. Salvador: Ed JusPodivm. 2016.

[2] http://www.stf.jus.br/portal/audienciaPublica/audienciaPublicaPrincipal.asp

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Sobre o autor
Jamil Pereira de Santana

Mestre em Direito, Governança e Políticas Públicas pela UNIFACS - Universidade Salvador | Laureate International Universities; Pós-graduado em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário pelo Centro Universitário Estácio; Pós-graduado em Licitações e Contratos Administrativos pela Universidade Pitágoras Unopar Anhanguera; Pós-Graduando em Direito Societário e Governança Corporativa pela Legale Educacional; Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio da Bahia; 1º Tenente R2 do Exército Brasileiro; Advogado atuante em Direito Administrativo, Militar e Governança.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTANA, Jamil Pereira. Proibição de foie gras por norma municipal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6527, 15 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80959. Acesso em: 16 abr. 2024.

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