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A politização da calamidade pública gerada pelo avanço do covid-19 no Brasil

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Politizar a calamidade pública de saúde gerada pelo covid-19 com objetivos nitidamente eleitoreiros é um gesto não apenas antiético, mas criminoso, de pessoas que não estão comprometidas com população de sua cidade, Estado ou nação.

Introdução

A expansão do número de casos de infectados e de mortos em decorrência do Coronavírus no Brasil cresce a cada dia. Segundo o site covidvisualizer[1], que é alimentado por dados oficiais de todos os países do mundo, na data de hoje (09 de abril de 2020), em todo o mundo há o número de 1.103.058 infectados ativos, com 89.418 mortos e 337.164 curados. Os dados do Brasil apontam para o número de 15.288 casos ativos, 823 mortos e 127 curados. Infelizmente esses números são modificados a cada dia, ainda mais quando especialistas apontam que não chegamos ao pico da pandemia no Brasil. Segundo um relatório técnico assinado pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e por especialistas em saúde, o Brasil terá pico dos casos de Covid-19 em abril e maio e continuará enfrentando a pandemia até meados de setembro[2].

Longe da solução definitiva do problema no Brasil, o governo federal, em conjunto com os demais entes federativos têm adotado uma série de medidas com vistas a melhorar as condições para o combate à pandemia, incluindo atendimento aos infectados pelo coronavírus, socorro econômico a pessoas e empresas afetadas com as medidas de isolamento social, compra de equipamentos para o sistema público de saúde, entre outras.

Faremos uma abordagem a seguir sobre os desafios que o Estado brasileiro encontrará para combater esse terrível mal que afeta toda a sua população. O momento nos impõe um agir ético elevado, ou seja, a sociedade brasileira é chamada à responsabilidade para, juntamente com Estado e suas instituições, fazer o melhor enfrentamento possível a este problema que nos iguala. No meio de uma crise de saúde pública como essa, ninguém será salvo por se filiar a uma corrente filosófica e/ou política, mas muitos podem ser salvos pelo agir responsável de todos os brasileiros. O vírus igualou, como poucas vezes na história da humanidade, os principais espectros da política mundial: direita e esquerda. Não podemos esquecer que todos estamos neste imenso barco chamado Brasil. Sendo assim, não se deve admitir que grupos políticos estejam promovendo a campanha do “quanto pior para a situação melhor para a oposição”, politizando tudo que esteja relacionado ao quadro de calamidade pública na saúde que o país enfrenta atualmente.


1. O teste do federalismo cooperativo no Brasil: solidariedade e princípio republicano.

O espírito que deve permear as relações entre os indivíduos e entre a Administração Pública e os administrados deve ser o de cooperação. Até mesmo a federação foi imbuída desse mesmo espírito quando o Texto Constitucional aponta para a necessidade de um federalismo cooperativo.

O princípio essencial que subjaz a ideia de cooperação é o da solidariedade. Em momentos de crise geral, todos devem dar a sua parcela de contribuição para a solução do problema, comum a todos. Nesse contexto, a solidariedade se impõe como um dever ético fundamental. Ademais, em face do princípio republicano, todos (estrutura estatal e indivíduos) devem estar comprometidos com a República e seus valores fundamentais. Como destaca Rodrigo Murad do Prado, o princípio Republicano é a viga mestra do Estado brasileiro, uma vez que a própria democracia se confunde com as características da República. Isso se dá porque a eletividade, a periodicidade e a responsabilidade são as principais características do Estado representativo, base do citado princípio[3].

Neste momento, recordo do artigo parágrafo único do artigo 23 da Constituição de 1988, quando dispõe que Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional. Este artigo é claro ao apontar para necessidade de um federalismo cooperativo que sirva à adoção de ações (obrigações de fazer) conjuntas e coordenadas entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

A competência prevista neste mesmo artigo 23 da Constituição é apontada pela doutrina como uma competência comum (administrativa), o que significa que todos os entes federativos têm o dever de cooperar entre si para cuidar da saúde e da assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (inciso II), proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (inciso VI), promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (inciso IX), combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos (inciso X), entre outras.


2. A pandemia do coronavírus como um problema ambiental

Destacamos no parágrafo anterior incisos do artigo 23, da Constituição de 1988 que, em nosso entender, podem ser usados diretamente no combate ao coronavírus no Brasil e no tratamento das pessoas infectadas. Neste sentido, convém lembrar que o problema de saúde gerado pelo coronavírus é um problema ambiental, uma vez que se trata de um patógeno que circula no ambiente, afetando seres humanos e demais animais. Não se pode fugir da compreensão de que o homem é parte integrante do meio ambiente. Sendo assim, o homem não é apenas um dos agentes de transformação do ambiente, mas é também parte integrante desse.

Problemas que afetam os seres humanos, em especial a sua saúde, são sim problemas ambientais. Nesta ocasião, convém lembrar o teor do artigo 225 da Constituição de 1988. Reza o dispositivo que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Perceba que um dos principais objetivos, senão o principal, da tutela ambiental no Texto Constitucional, é permitir que as pessoas possam gozar de uma sadia qualidade de vida. Sim, o Texto Constitucional brasileiro é marcadamente antropocêntrico. Críticas a este tópico renderia um novo artigo, o que faremos em outra ocasião.

Já há estudos que apontam que o vírus causador da doença que atualmente aterroriza o mundo, cientificamente chamado de SARS-CoV-2, é oriundo de desequilíbrios ambientais no habitat de populações de morcegos. O escritor do livro Spillover – Animal Infections and the Next Human Pandemic, David Quammen, traz a seguinte a seguinte reflexão:

“De onde esses vírus pulam? Eles pulam de animais em que há muito tempo permaneceram, encontraram segurança e ocasionalmente ficaram presos.  (…) O Hantavírus [que pode causar febre hemorrágica] pula de roedores. Lassa [vírus que também provoca febre hemorrágica] também pula de roedores. O vírus da febre amarela salta de macacos (…). Os influenza [causadores da gripe] pulam de pássaros selvagens para aves domésticas e depois para pessoas, às vezes após uma transformação em porcos. O sarampo pode ter saltado para dentro de nós a partir de ovelhas e cabras domesticadas. O HIV-1 entrou em nosso caminho a partir de chimpanzés. Assim, há uma certa diversidade de origens. Mas uma grande fração de todos os novos vírus assustadores (…) vêm pulando para nós de morcegos”[4].

Sobre essa questão, Diogo Sponchiato afirma que:

 “(...) morcegos parecem ser um dos principais reservatórios para vírus potencialmente terríveis ao ser humano. O coronavírus não é uma exceção. E a solução, antes que alguém pense em exterminá-los, está, pelo contrário, em respeitarmos mais seu habitat. Porque, como Quammen e outros experts afirmam, as pandemias originárias de zoonoses nada mais são que um reflexo das intervenções do homem no meio ambiente. No anseio para se expandir, a humanidade invade o terreno alheio — e traz problemas de lá”[5].

Diante do que fora exposto nas linhas anteriores, percebe-se a importância da defesa ambiental. Neste sentido, a sociedade e em especial o Poder Público de todos os entes federativos devem implementar ações voltadas à proteção e preservação do ambiente e todos os seus componentes.


3. A politização da calamidade pública gerada pelo Covid-19

Como se não bastasse a gravidade do quadro de saúde pública que o país enfrenta, o brasileiro acompanha uma verdadeira guerra de notícias veiculadas na mídia. Não raras vezes, encontramos muitas matérias com conteúdos desencontrados e contraditórios ou até mesmo conteúdos falsos (as chamadas Fake News).

A polarização da política no Brasil transformou a realidade social e econômica brasileira em uma verdadeira “guerra de torcidas organizadas”, como se um imenso “Fla x Flu” ou outro grande clássico do futebol brasileiro tomasse conta do país. Essa lógica é prejudicial, visto que divide o país no momento em que a unidade é uma grande arma. A cooperação que o Texto Constitucional aponta para os entes federativos também deve ser seguida pela sociedade. Aqueles que aderem a esta “política” (ou politicagem, como diz o vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, José Herval Sampaio), do “quanto pior melhor”, não têm compromisso com o país.

Seu compromisso é, apenas e tão somente, com o seu grupo político. Neste sentido, a oposição “fica de tocaia”, aguardando um mínimo deslize da situação governista para disparar sua metralhadora de críticas. Se junto com as críticas viessem proposições para o enfrentamento da crise seria bom, mas não é isso que se observa. O que a oposição quer não é ajudar, mas sim derrubar o governo, pedir o impeachment do opositor. Sua luta não é pela melhoria da realidade posta, mas pela implementação de seu projeto de poder e de sua agenda política.

O momento atual não é de fazer campanha. Não é a antecipação da propaganda eleitoral. Todos, governo federal, governos estaduais, distrital e municipais devem colaborar para que juntos seja possível combater o problema comum do país (coronavírus) de forma eficiente. Não é momento para conchavos, traições ou ensaio de golpes. Não quero nem imaginar o que seria do país se tivéssemos que lidar, nesse momento da crise do coronavírus, com uma crise política gerada por movimentos abruptos que tivessem força para afastar, por exemplo, o Presidente da República.

Não estou afirmando que não possa haver situações futuras que justifiquem o afastamento do Presidente da República de seu cargo. Claro que há. Nenhum político está imune a este fato, que já foi vivenciado por 2 (dois) ex-Presidentes da República. A questão que considero inadmissível é que movimentos planejados e conspirações criem um cenário de instabilidades institucionais que favoreçam golpes ou outros momentos abruptos; até porque uma situação como essa certamente amplificaria o caos, uma vez que os grupos que polarizam a política nacional dividiriam ainda mais a nação, prejudicando ações de cooperação que são fundamentais para o combate eficiente à pandemia nos dias de hoje.

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A “guerra de notícias e informações” é tão intensa que não raras vezes gera confusão na população. Neste ponto se igualam os mais e os menos esclarecidos. Todos estão à mercê da manipulação de informações. A depender do grupo ou do interesse que apoie, a mídia, de forma proposital, amplifica o problema, a ponto de criar uma atmosfera de terror, extremamente prejudicial, inclusive, à saúde da população, uma vez que já há pesquisas que apontam que as pessoas que são expostas a uma carga de notícias negativas estão sujeitas a uma redução de sua imunidade, o que as tornam ainda mais vulneráveis ao Covid-19.

Por outro lado, há os que distorcem a realidade, minimizando (subdimensionando) o problema e até incitando as pessoas para que voltem a circular normalmente. Há ainda os que sustentam que a crise não existe e que os números de mortos e infectados são pura manipulação e fraude. Não podemos ainda deixar de destacar que há ainda os adeptos de teorias da conspiração. A principal delas seria que o governo Chinês teria criado a crise do coronavírus com o propósito deliberado de atacar as economias de seus principais concorrentes no mercado global, em especial os Estados Unidos da América. Coincidência ou não, os Estados Unidos hoje despontam como o principal prejudicado com a pandemia, suportando severos prejuízos econômicos. Vale destacar que os EUA estão travando uma verdadeira guerra comercial com a China, em termos que nos faz lembrar da “guerra fria” com a antiga União Soviética.

Sempre estou a refletir sobre a capacidade que algumas pessoas têm de praticar o mal, de espalhar o terror. Que fique claro que não defendo que se mascare a realidade, minimizando o problema. Não. A sociedade tem o direito de saber a realidade do quadro de saúde pública de sua cidade, de seu Estado e de seu país. No entanto, a sociedade e a própria justiça brasileira devem estar atentas aos oportunistas de plantão, que objetivam se beneficiar no cenário de caos, real ou criado, para simplesmente obter proveito político.

Nesse cenário, por exemplo, já surgem propostas de adiamento das eleições municipais de 2020, com a unificação dos pleitos de prefeito e vereadores com os demais cargos de deputados estaduais, federais, senadores, governadores e Presidente da República em 2022. Os detentores de mandato de prefeitos e vereadores atuais permaneceriam no cargo até o pleito eleitoral de 2020. Neste caso, até onde há bom senso e até onde há oportunismo? Fica a reflexão. Outro fato relevante é que municípios que ainda não foram afetados pelo coronavírus já estão declarando estado de calamidade, o que pode ser motivado por outros interesses escusos.


4. A PRESENTE discussão à luz do pensamento de Lourival Vilanova

O jurista pernambucano Lourival Vilanova foi um dos maiores intelectuais que o Brasil já produziu. Em sua outra Escritos Jurídicos e Filosóficos (volume 1) encontra-se uma lição que convém destacar por ocasião deste breve ensaio.

Explica este autor:

“A realidade social que nos é dada na experiência é uma multiplicidade inter-relacionada. Não é um conjunto de um só facto, nem uma pluralidade dispersa de factos. Nem tampouco esses factos múltiplos se dispõem linearmente, como em série, sempre uniformes em sua composição interior. Dispõe-se em segmentos, uns subpostos, outros sobrepostos, uns em coordenação, uns em relação de subordinação, de tal sorte que a realidade social apresenta-se como uma heterogeneidade estruturada. É assim a realidade social parcial, como a realidade social global, tanto a micro como a macrossociedade. Empregando categoria de Husserl, é uma multiplicidade objetivada o que se realiza historicamente. Essa textura de complexo heterogêneo (H. Ricert) apresenta à teoria do conhecimento problemas desconhecidos nas ciências do homogêneo (contínuo homogêneo)”.

O que o autor nos fala, em síntese, é que os segmentos sociais compõem um tecido de relações que são imprescindíveis ao estabelecimento da ordem no âmbito social. Diante de tal lição, percebe-se que quando um grupo ou segmento pretende se desconectar do todo para criar uma realidade paralela, uma ficção de “reconstrução da ordem”, está em verdade contribuindo para a desagregação do edifício estatal. Senão vejamos o que diz este mesmo autor em outra passagem:

“A política, em face dos possíveis conteúdos sociais a que serve, comporta-se como forma diante da matéria socialmente dada. As formas de ação recíproca, que conformam a estrutura do mundo social, são a dominação, a concorrência, a cooperação, o conflito, a luta, a imitação, a união, a integração, a solidariedade, a divisão do trabalho e outras modalidades de protofacto “um estar com os outros”, o estar em relações de aproximação ou distância (Wiese), o conviver na paz ou em militância com inimigos ou opositores. Essas formas de ação recíproca dão origem às estruturas sociais. Ordinariamente, não se dá uma forma social articulada por um só tipo de relação. As relações confluem, estão co-presentes em graus diversos, e o que tipifica uma forma é a predominância da relação recíproca em jogo”.

Diante dessa reflexão, percebe-se que os movimentos da oposição são legítimos em quaisquer Estados democráticos. Não se nega a importância da oposição. O que estamos a refutar são os atos mesquinhos e oportunistas da oposição (não importa se alinhada à esquerda ou à direita) diante de uma situação de crise gerada por fatos alheios ao governo. O jurista supracitado, quando afirma que não se dá uma forma social articulada por um só tipo de relação, está a dizer que há a necessidade de um compromisso social entre os diversos atores sociais, especialmente em momentos como que se vive no Brasil.

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Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Carlos Sérgio Gurgel. A politização da calamidade pública gerada pelo avanço do covid-19 no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6132, 15 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81105. Acesso em: 2 nov. 2024.

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