Crimes em tempo de pandemia

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10/04/2020 às 11:41
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Trata dos possíveis delitos decorrentes da proliferação da Covid-19, abrangendo os crimes contra a saúde pública.

No contexto atual (Covid-19), necessário destacar que o que está “em jogo” é a saúde coletiva (incolumidade pública), bem jurídico constitucionalmente tutelado pelo artigo 6º, da Constituição Federal: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”[i]

Nesse sentido, está envolvido o direito social, em relação à saúde pública, bem como a preservação da dignidade humana. Portanto, nós temos a obrigação como sociedade, bem como os órgãos do governo, de proteger a saúde de todos.

Acontece que, em relação aos Decretos (Portaria - 356/20)[ii] que regulamentam medidas para redução de circulação e aglomeração de pessoas, muito se discute sobre os possíveis excessos de zelo por parte do Poder Executivo, principalmente, Municipal e Estadual.

Por isso, como a última ratio, surge o Direito Penal para punir aqueles que atentarem contra a saúde pública, seja em relação às pessoas que não cumprirem o isolamento ou quarentena, seja contra o provocador de epidemia ou outras transgressões. Afinal de contas, a enfermidade pode levar muitas pessoas a óbito.

Alguns dos crimes recorrentes em tempo de pandemia: artigos 257 (subtração, ocultação ou inutilização de material de salvamento), 267 (epidemia), 268 (determinação sanitária preventiva) e 273 (falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais), todos do Código Penal[iii].

 

DOS CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA

  •  SUBTRAÇÃO, OCULTAÇÃO OU INUTILIZAÇÃO DE MATERIAL DE SALVAMENTO.

Art. 257. Subtrair, ocultar ou inutilizar, por ocasião de incêndio, inundação, naufrágio, ou outro desastre ou calamidade, aparelho, material ou qualquer meio destinado a serviço de combate ao perigo, de socorro ou salvamento; ou impedir ou dificultar serviço de tal natureza:

Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

Inicialmente, analisando o preceito secundário do crime, conclui-se tratar de crime de médio potencial ofensivo, e, portanto, não suporta os benefícios da transação penal ou suspensão condicional do processo (arts. 76 e 89, Lei 9.099/95). Contudo, como a pena mínima em abstrato é inferior a 04 (quatro) anos, admite-se o acordo de não persecução penal (art 28-A, CPP).

No atual cenário, pandemia Covid-19, muitas notícias e vídeos circularam na internet divulgando cenas em que pessoas entravam em estabelecimentos comerciais e subtraiam para si álcool gel e máscaras.

Destaca Rogério Sanches:

“É pressuposto para a ocorrência do delito que esteja em andamento, por ocasião da conduta, incêndio, inundação, naufrágio, ou outro desastre ou calamidade. Inexistentes essas circunstâncias, outro poderá ser o crime, como, por exemplo, furto ou dano”.

Ora, se não fosse o cenário de calamidade pública, de fato seria tipificado como furto (art. 155, CP), porém, sob análise do princípio da especialidade, lex specialis derogat legi generali (lei especial derroga lei geral), justamente por haver todos os elementos do crime de furto e mais alguns, os “especializantes”, o agente responde pelo crime em comento.

Rapidamente, antes de iniciar os comentários sobre o crime de pandemia (art. 267 do CP), você sabe qual a diferença entre pandemia e epidemia?

Epidemia: é o surto de uma doença transitória que ataca simultaneamente número indeterminado de indivíduos em certa localidade.

Pandemia: enfermidade amplamente disseminada, ou seja, que atinge várias nações.

  •  EPIDEMIA

Art. 267 - Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:

Pena - reclusão, de dez a quinze anos. (Redação dada pela Lei nº 8.072, de 25.7.1990).

§ 1º - Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro.

§ 2º - No caso de culpa, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos.

Quanto ao crime de causar epidemia, segundo o professor Rogério Sanches: “Ao prever a provocação de epidemia como crime, busca-se tutelar a incolumidade pública, especialmente no que diz respeito à saúde das pessoas, expostas aos efeitos devastadores da conduta criminosa”[iv].

Tal conduta é praticada, de forma dolosa ou culposa, ao propagar germes patogênicos, colocando em risco a vida de pessoas. Explico, pode ser propagada de forma consciente e voluntária por quem esteja contaminado, ou pelo simples fato de assumir o risco de eventual disseminação, bem como através da inobservância de um dever objetivo de cuidado (imperícia, negligência ou imprudência). 

Visualizamos não raras vezes, através de vídeos postados na internet, pessoas que aparentam estar infectadas e demonstram querer contaminar outras, seja cuspindo em locais públicos; tossindo propositalmente perto de outras pessoas etc.

No entanto, também existe a hipótese de médicos que não cumprem com os procedimentos técnicos adequados, a fim de evitar a disseminação da doença.

MIRABETE, citando Flamínio Fávero, dá exemplos no caso de provocação culposa:

“Imperícia na preparação de vacina com germes que podem propagar a doença e à negligência pela não remoção para isolamento, de doentes portadores de infecções epidêmicas, bem como à falta de esterilização de instrumental de exames”[v].

Ademais, por se tratar de crime de elevado potencial ofensivo, a pena do caput é superior a 8 (oito) anos, sendo o caso de imposição do regime prisional fechado, nos termos do artigo 33, §2º, “a”, do CP.

Quanto ao seu §1º, além da pena ser aplicada em dobro, tem-se que segundo o art. 1º, inciso VII, da Lei 8.072/90[vi], rotula a epidemia com resultado morte como delito hediondo (consequências mais gravosas para o criminoso).

Finalmente, no caso de culpa e sem resultado morte, trata-se de crime de menor potencial ofensivo, cabendo transação penal e sursis processual (arts. 76 e 89, ambos da Lei 9.099/95), porém caso ocorra resultado morte, será cabível, em tese, o acordo de não persecução penal (art. 28-A ,do CPP).

Ainda, explica o professor Rogério Sanches que o crime é consumado quando várias pessoas forem contaminadas com a conduta do agente, ao passo que, quando somente uma pessoa é contaminada em razão de pronta intervenção de autoridade sanitária, restará o crime tentado.

  •  INFRAÇÃO DE MEDIDA SANITÁRIA PREVENTIVA

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

A questão é a seguinte, “infringir determinação do poder público (...)”, mas qual determinação?

Sair na rua mesmo havendo recomendação do prefeito da cidade para ficar em isolamento social tipifica o crime?

A peculiaridade deste crime diz respeito à norma penal em branco, justamente porque depende da existência de outras regras (lei, decreto, portaria) para que possa ter eficácia jurídica e social. Neste caso, encontra-se na Lei 13.979/2020:

Art. 3º  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:                (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)

I - isolamento;

II - quarentena;

III - determinação de realização compulsória de:

a) exames médicos;

b) testes laboratoriais;

c) coleta de amostras clínicas;

d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou

(...)

Importante registrar que tal complementação poderá ocorrer de forma individualizada pelos demais entes da Federação, tanto pelos Estados quanto pelos Municípios, ou seja, não é só complementada pela União, mas sempre em consonância com ela.

A título de exemplo, praticará o crime de infração de medida sanitária preventiva o agente que, mesmo após receber determinação para que realize compulsoriamente exame médico, deixar de realizá-lo (artigo 3, III, “a”, da Lei 13.979/20). De igual modo, se o agente isolado por determinação vier a fugir, também praticará o crime previsto no artigo 268 do Código Penal (artigo 3, I, da Lei 13.979/20).

Ademais, se o sujeito ativo do crime for funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro, a pena é aumentada de um terço (parágrafo único).

Ainda assim, por ser de menor potencial ofensivo, o crime admitirá os benefícios da Lei 9.099/95, porém, admitida a transação penal, ficará inviabilizado o acordo de não persecução penal, nos termos do art. 28-A, §2º, inciso I, do CPP.

  •  FALSIFICAÇÃO, CORRUPÇÃO, ADULTERAÇÃO OU ALTERAÇÃO DE PRODUTO DESTINADO A FINS TERAPÊUTICOS OU MEDICINAIS.

Artigo 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais: (Redação dada pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

        Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

        § 1º - Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado. (Redação dada pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

        § 1º-A - Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico. (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

        § 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições: (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

        I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente; (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

        II - em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior; (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

        III - sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização; (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

        IV - com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade; ((Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

        V - de procedência ignorada; (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

        VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente. (Incluído pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)

       Modalidade culposa

        § 2º - Se o crime é culposo: 

        Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998).

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Por diversas vezes também ficamos sabendo de pessoas que alteraram substâncias saneantes, para produzir o álcool gel e, até mesmo, falsificaram remédios sob a alegação de que se tratava da cura da Covid-19, não é mesmo?

Quanto à cabeça do artigo, não resta dúvida que se trata de crime de elevado potencial ofensivo, a pena é superior a 8 (oito) anos, sendo o caso de imposição do regime prisional fechado, nos termos do artigo 33, §2º, “a”, do CP.

Entretanto, se for praticado na modalidade culposa (imperícia, negligência, imprudência), admite-se a suspensão condicional do processo, já que a pena mínima em abstrato é de 01 (um) ano.

Em especial atenção ao §1º-A do respectivo artigo, além dos produtos destinados para fins terapêuticos ou medicinais, equiparam-se como objeto material os cosméticos (produtos que se destinam a manter ou melhorar a aparência) e saneantes (produtos purificadores, desinfetantes) como, por exemplo, o álcool gel.

Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci[vii]:

“(...) No mais, é preciso verificar que um cosmético entra em contato direto com o organismo humano, tanto quanto um medicamento, de forma que os danos à saúde podem ser de igual monta, caso sejam adulterados ou falsificados. O mesmo se diga dos saneantes, que servem à higienização de muitos locais, como hospitais, clínicas e consultórios, ligando-se diretamente à questão da saúde”.

Assim, sendo para fins terapêuticos e medicinais, a equiparação se justifica, inclusive, porque o que se busca é uma maior proteção à saúde pública!

Por fim, caso o agente atue dolosamente para transmitir a doença  a outrem (pessoa específica) e haja lesão corporal ou morte, deverá responder pelo crime de lesão corporal (art. 129 do CP) ou homicídio (art. 121 do CP).

Conforme Cleber Masson[viii]:

“Além disso, se o sujeito possuir o dolo de matar ou de ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem, a ele será imputado o crime de homicídio qualificado pelo meio de que possa resultar perigo comum (CP, art. 121, § 2.º, inc. III) ou de lesão corporal (CP, art. 129), consumado ou tentado, conforme o caso”.

Ainda, vale destacar, não pratica o crime de desobediência (art. 330 do CP), quando o agente descumpre determinações do Poder Público para que impeça a introdução ou a propagação de doença contagiosa, uma vez que este tipo penal é subsidiário. Logo, somente praticará tal crime quando não houver outro tipo penal ou sanção cível ou administrativa com a ressalva da possibilidade de se praticar desobediência em caso de descumprimento de ordens advindas de funcionários públicos.

Sobre o autor: André Ferreira De Luca, pós graduando em Direito e Processo Penal - UEL/PR. Foco de atuação na área Criminal. Instagram: @afluca

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André Ferreira De Luca

Pós-graduando em Direito e Processo Penal (UEL-PR)

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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