Capa da publicação Insolvência civil e o fresh start norte-americano
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Fresh start norte-americano

16/05/2020 às 16:00
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Principais aspectos sobre o código de falências norte-americano: mais avançado que o nosso, esse sistema retira o rótulo de "fraudadores" e "mau pagadores" daqueles que passaram por processo de falência.

No tocante à insolvência civil, o Brasil ainda mantém em seu sistema jurídico regramento próprio, a contar do art. 748 do Código de Processo Civil. O atual texto processual civil não contém qualquer dispositivo sobre a insolvência/recuperação de pessoa física, estabelecendo no art. 1.052 que permanecem em vigor os ab-rogados enunciados de 1973 no tocante à “falência” do devedor insolvente. Portanto, até o momento inexiste regramento acerca da reorganização de dívidas das pessoas físicas, não obstante a tramitação de projetos de lei, quanto ao tema específico.

Desde logo cabe salientar, por oportuno, que de forma alguma seria cabível a aplicação da Lei 11.101/05 para recuperação da pessoa física, porquanto, além da inexistência de qualquer previsão em tal sentido, descaberia tal abrangência, mesmo considerando a crise mundial (o que não está na lei, inexiste). No silencio do sistema jurídico, descabe qualquer interpretação hermenêutica tendente a conceder a extensão/ampliação do que simplesmente nem sequer existe, por óbvio ululante. Dito de outro modo, simplesmente não há como determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito, consoante Maximiliano[1].

Entrementes, o sistema jurídico norte-americano, muito mais avançado e consonante com a realidade capitalista, conta com o consistente Bankruptcy Code que, em relação aos devedores superendividados, apresentando várias disposições tendentes à tentativa de soerguimento (Capítulos 7 e 13). A filosofia daquele país é que qualquer pessoa, de fato, pode recomeçar a vida e lá o devedor não carrega o estigma de alguém marginalizado, fora sociedade, ostentando o rótulo de fraudulento ou de mau pagador, ao contrário do que ocorre no Brasil, por exemplo, como de há muito se vem afirmando. Em optando por economia de mercado, é evidente que a questão da concessão do crédito está estreitamente ligada ao risco e eventual inadimplência do devedor-tomador, não obstante a previsibilidade por parte do credor-fornecedor. Afinal, a sociedade é de consumo e muitos não se atentam para o limite do crédito e gastam sem limites.

Portanto, naquele sistema a insolvência de pessoa física é algo mais que corriqueiro, considerando-se a especificidade do mercado, sendo que até grandes afortunados já recorreram ao Código, especialmente Capítulos 7 e 13, porquanto não há vergonha quanto a tal pleito. Afinal, “falir” é algo que beira a naturalidade em tempos de crise sanitária.

No Capítulo 13, por exemplo, as pessoas podem salvar suas casas em execução hipotecária, interrompendo o processo, sob determinadas condições. Para se valer de tal capítulo, o devedor há de possuir renda regular e devem desenvolver plano para pagamento de todo o passivo. Apresentam tal plano para pagamento parcelado entre três e cinco anos[2] [3].  Ao registrar a petição, via formulário, há nomeação de administrador, que ficará à frente do caso. Ao apresentar a petição, a maioria das ações de cobrança em face do devedor restará automaticamente suspensa (stay period), traduzindo-se, tal período, em uma espécie de proteção ao devedor, a fim de que tenha fôlego e possa se reestruturar.

Determinadas medidas não se sujeitam ao procedimento. A suspensão decorre da lei e não de decisão judicial e ocorre enquanto perdurar o processo. Em decorrência, aos credores é vedada a continuação ou ajuizamento de ações e até mesmo são inibidos de fazer ligações telefônicas exigindo o pagamento da dívida. De uma forma ou de outra, o processo se torna uma arena, onde impera o poder de barganha do devedor[4], ou, um jogo de interesses entre credores e este, mediante uso de estratégias especulativas a fim de que haja sucesso ao que está mergulhado em dívidas[5].

Quanto à execução hipotecária, que tem por objeto a casa do devedor, a suspensão automática, assim que protocolar o pleito, interrompe aquela. Pode ele atualizar os pagamentos vencidos por período razoável de tempo. Mas, existe a possiblidade de perda do bem, caso a entidade hipotecária conclua a venda antes de o devedor registrar sua petição. Também pode perder a casa em não efetuando os pagamentos regulares da hipoteca vencidos até o dia em protocola seu pedido perante o tribunal de falências.

Entre 21 e 50 dias após o pleito, caberá ao administrador realizar reunião com os credores, cabendo ao devedor comparecer ao ato e responder a todas as indagações que lhe forem feitas. A esta reunião o juiz não comparecerá, para preservar sua independência quanto ao julgamento da demanda.

O plano do devedor, submetido à aprovação do tribunal de falências, deve indicar pagamentos de valores fixos ao agente fiduciário, a fim de que este os distribua aos credores, em estrita consonância com o estipulado. O plano pode estabelecer pagamento inferior ao valor do débito. O pagamento deve ser iniciado no prazo de 30 dias após o protocolo do pedido, mesmo que o plano ainda não tenha sido aprovado pelo tribunal.

Até 45 dias após a reunião entre credores, com a participação do administrador e do devedor, o juiz deve realizar audiência de confirmação e decidir se o plano é viável e se está em consonância com os padrões de confirmação estabelecidos pela lei falimentar. Os credores serão avisados e se podem opor à confirmação. O mais comum nas objeções pelos credores apresentadas é de que os pagamentos oferecidos pelo devedor em seu plano são inferiores aos que receberiam caso os ativos fossem liquidados ou que o plano não compromete toda a renda disponível, projetada pelo devedor para o período em que ficaria sujeito ao processo.

O tribunal poderá confirmar o plano ou recusá-lo, hipótese em que o devedor pode apresentar aditamento. Há a possiblidade de o devedor converter o caso em liquidação, conforme Capítulo 7 e, se o tribunal não acolher o plano ou seu aditivo, poderá autorizar que o agente devolva os valores ao devedor, mantendo quantia necessária ao pagamento das custas. Há a hipótese superveniente de alteração na capacidade de pagamento do devedor, o que ensejaria nova modificação do plano, que tem caráter vinculativo em relação aos credores, antes ou após al confirmação pelo tribunal.

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Considerando o caráter vinculativo, o devedor há de agir de boa fé objetiva e fazer com que plano seja bem-sucedido. Após o efetivo de todos os débitos, a lei concede ao devedor o direito à quitação, que o libera de todas as dívidas previstas no plano. Há algumas exceções legais [obrigações de longo prazo, dívidas por pensão alimentícia, determinados impostos, por exemplo]. 


Notas

[1] Hermenêutica e aplicação do direito. 18ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 2.

[2] Cabe-lhe apresentar a lista de ativos [que engloba todos os seus bens] e passivos [nomes dos credores, valores e natureza dos débitos], cronograma de receitas [fonte, valor e frequência da receita] e despesas atuais [lista detalhada das despesas mensais, tais como alimentos, roupas, abrigo, serviços públicos, tributos, transportes etc.], cronograma de contratos e de arrendamentos não vencidos, cópia da declaração de imposto ou transcrições do ano fiscal mais recente e assim agir durante a tramitação do processo, dentre outras exigências legais. Os cônjuges podem apresentar conjunta petição ou individual, tudo via formulário oficial de falência, ao contrário do sistema pátrio.  O devedor precisa pagar taxias.

[3] Neste tipo de procedimento,  resta comprometida a renda futura do devedor, mas preserva-se seu patrimônio. O fresh start possibilita a que o devedor permaneça com seus bens.

[4] CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009; DELANEY, Kevin J. Strategic bankruptcy: how corporations and creditors use Chapter 11 to their advantage. California: University of California Press, 1998.

[5] A propósito, bem assevera Delaney: Since the original publication of ‘Strategic Bankruptcy’ in 1992 I have become more convinced that bankruptcy is really politics by another name. Many Americans who never thought they would care about corporate bankruptcy found themselves unwitting parties to the complex process of Chapter 11 reorganization in the 198s and 1990s. The bankruptcy arena, formerly the province of bankers, financial managers, and their attorneys, became the arena in which some of the biggest social issues of our time were decided: the fate of asbestos victims and compensation to women injured by the Dalkon Shield intrauterine device and those suffering ill health after receiving silicone implants. Op. cit., ix. Grifos no original. No meu livro, aqui citado, bem detalho vários aspectos acerca da arena mencionada por Delaney.

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Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. Fresh start norte-americano. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6163, 16 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/81432. Acesso em: 18 abr. 2024.

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