O alocamento de detentos transexuais no sistema prisional brasileiro

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5. O ALOCAMENTO DE TRANSEXUAIS NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

5.1. Da Resolução Conjunta de Nº. 01/ 2014

Apesar de existir uma omissão legislativa específica versando sobre o tema, conforme já mencionado anteriormente, há a Resolução Conjunta de Nº. 01/2014, que será aqui tratada com ênfase no que se refere aos parâmetros de acolhimento dos transexuais no sistema prisional brasileiro.

A importância da adoção de tais diretrizes pelas unidades prisionais brasileiras se justifica pelo fato de que, a partir dela, tem-se o mínimo de respeito à identidade de gênero dos detentos transexuais. Sendo assim, far-se-á um estudo acerca de tal resolução, bem como a análise de um importante precedente que versa sobre o alocamento de transexuais a luz desta, trazendo um debate sobre a maneira correta de aplicação de tais medidas.

Inicialmente, em análise a Resolução Conjunta de nº. 01/2014, destaca-se uma importante questão que diz respeito ao nome social do preso. O nome social é utilizado pelas pessoas transexuais, haja vista que estas foram registradas com um nome estranho a sua identidade de gênero, desta forma, com intuito de sofrer menos rejeição social estas pessoas adotam outro nome, o qual, muitas das vezes não consta no documento de identificação.

Art. 2º - A pessoa travesti ou transexual em privação de liberdade tem o direito de ser chamada pelo seu nome social, de acordo com o seu gênero.

Parágrafo único - O registro de admissão no estabelecimento prisional deverá conter o nome social da pessoa presa (BRASIL 2020).

Desta forma, fica facultado ao detento, nos termos do art. 2º, serem chamadas pelo nome social ao invés do nome registral, além de se fazer constar no registro interno do detento esse nome.

Destarte, um interessante ponto, o qual merece destaque neste artigo, diz respeito ao art. 4 da Resolução. Tal dispositivo legal trás a impressão que haverá certos problemas em relação ao detento transexual. O mesmo dispõe o caput, no sentido de que “as pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para unidades prisionais femininas” (BRASIL, 2020), posteriormente, em seu parágrafo único, estabelece que “às mulheres transexuais deverá ser garantido tratamento isonômico ao das demais mulheres em privação de liberdade” ( BRASIL, 2020).

Analisando a letra da lei, percebe-se que, independente da identidade de gênero do transexual e levando-se em consideração apenas seu sexo biológico, o tratamento será o mesmo para tais detentos. Ou seja, um detento que seja biologicamente do sexo feminino, mas seja psicologicamente do sexo masculino, receberá o mesmo tratamento que receberia as demais mulheres privadas de liberdade.

Há grave violação à dignidade de um detento ao ser submetido ao procedimento de revista íntima utilizada em mulheres, bem como a sua transferência para presídios femininos, quando aquele detento se considere homem. 

Noutro giro, adiante na resolução se dispõe acerca da garantia de mantença de cabelos cumpridos ao detento que os tenha, bem como a utilização de roupas de acordo com sua identidade de gênero, a fim de garantir o mínimo de respeito àqueles que já estão privados de sua liberdade, conforme artigo 5º, in verbis:

Art. 5 - À pessoa travesti ou transexual em privação de liberdade serão facultados o uso de roupas femininas ou masculinas, conforme o gênero, e a manutenção de cabelos compridos, se o tiver, garantindo seus caracteres secundários de acordo com sua identidade de gênero (BRASIL, 2020).

Tal questão se faz importante uma vez que a pessoa transexual através da adoção desses caracteres sente-se um pouco mais acolhida pela sociedade, tendo em vista que se igualaria a sua identidade de gênero. Sobre esse tema, Jesus (2012, p. 15) ressalta:

Pessoas transexuais geralmente sentem que seu corpo não está adequado à forma como pensam e se sentem, e querem “corrigir” isso adequando seu corpo à imagem de gênero que têm de si. Isso pode se dar de várias formas, desde uso de roupas, passando por tratamentos hormonais e até procedimentos cirúrgicos.

Nesse sentido, ainda, é garantido ao detento transexual, nos termos do art. 7, § único, que “à pessoa travesti, mulher ou homem transexual em privação de liberdade, serão garantidos a manutenção do seu tratamento hormonal e o acompanhamento de saúde específico” (BRASIL, 2020). Esse tratamento é denominado processo transexualizador, para melhor compreensão dessa expressão, Jesus (2012, p. 30) assim trata:

Processo pelo qual a pessoa transgênero passa, de forma geral, para que seu corpo adquira características físicas do gênero com o qual se identifica. Pode ou não incluir tratamento hormonal, procedimentos cirúrgicos variados (como mastectomia, para homens transexuais) e cirurgia de redesignação genital/sexual ou de transgenitalização.

Tal questão se mostra de suma relevância considerando que, a depender desse processo transexualizador, o físico de um detento mudaria drasticamente. Em resumo, conforme é sabido, homens e mulheres produzem hormônios próprios, sendo eles: testosterona e estrogênio, respectivamente. A ingestão de tais hormônios influencia diretamente no físico e psicológico de uma pessoal transexual, tendo em vista que influenciarão no tamanho do pênis, seios, físico, dentre outros.

Desta forma, a interrupção do tratamento geraria, além de transtornos psicológicos, uma mudança na narrativa fática do alocamento. O detento transexual que ingere hormônios para ter um físico feminino, com a pausa, começaria a sofrer mudanças no corpo como o aumento do pênis e diminuição dos seios, aparentando ainda mais com seu sexo biológico. Daí, como mantê-lo em uma cela com outras mulheres quando o mesmo, apesar de sua identidade de gênero, se aparenta como um homem?

A Resolução de nº. 1/2014 dispõe sobre algumas diretrizes de acolhimento do detento transexual, porém é bastante superficial, haja vista não ter sido criada especificamente para tal fim. Desta forma, haja vista a ausência legislativa nesse assunto, gera diversos conflitos no âmbito penitenciário.

Na maioria das vezes, quando um detento transexual chega a uma unidade prisional, os agentes de segurança penitenciária não possuem ideia de como lidar com o mesmo, surtindo uma avalanche de dúvidas, sendo então socorridos ao judiciário.

5.2. Precedente do STF (HC 152491 / SP)

Recentemente, mais precisamente em 2018, houve uma importante decisão junto ao Superior Tribunal Federal acerca do alocamento de dois detentos transexuais. A decisão, a qual versava sobre um habeas corpus impetrado de nº. 152.491, trazia uma situação em que transexuais femininos encontravam-se em privação de liberdade em um presídio masculino.

O Ministro da suprema corte Luís Roberto Barroso, decidiu nesse caso, que os detentos se encontravam presos em unidade incompatível as suas identidades de gênero, devendo àqueles serem transferidos imediatamente para uma unidade prisional feminina. Sobre o contexto, leia-se:

(...) Diante do exposto, com base no art. 21, §1º, do RI/STF, nego seguimento ao habeas corpus. Contudo, concedo a ordem de ofício para determinar ao Juízo da Comarca de Tupã/SP que coloque o paciente PEDRO HENRIQUE OLIVEIRA POLO (nome social Laís Fernanda) e o corréu Luiz Paulo Porto Ferreira (nome social Maria Eduarda Linhares) em estabelecimento prisional compatível com as respectivas orientações sexuais. (HC 152491 / SP)

Apesar de correta a postura do Sr. Ministro, há de se destacar que ainda tal decisão se torne um precedente para outras, ainda assim teremos diversos problemas. Desta forma, se faz necessário fazer alguns questionamentos. No caso julgado no STF, caso estivesse diante de um detento transexual psicologicamente feminino, mas que ainda tivesse o órgão sexual masculino, como proceder?

Ao providenciar a transferência daquele indivíduo a um presídio compatível com sua identidade de gênero, resolveria a questão psicológica. Porém, devemos observar também a segurança daquele detento, se ele estaria ou não sujeito a estupros pelas outras mulheres que dividiriam a cela com o mesmo, pois, conforme é sabido, o delito tipificado no art. 213 do Código Penal não diferencia homem ou mulher, podendo ambos serem sujeito passivo ou ativo daquele crime, tendo em vista que mulheres possuem as mesmas necessidade sexuais que os homens.

Sem sombras de dúvidas, a segurança do detento é de responsabilidade do Estado, devendo este garantir a integridade física e moral daquele, enquanto estiver sob sua custódia. Sobre o tema, Cunha (2017, p. 102) leciona:

A garantia da segurança e integridade física e mental dos presos custodiados em estabelecimentos prisionais é dever jurídico do Estado (art. 5o, inciso XLIV da CF). Atuando como verdadeiro garantidor, comprovada a sua omissão, impõe-se a responsabilidade civil do poder público.

Nesse sentido, o STF já decidiu que o Estado, enquanto garantidor, possui responsabilidade civil caso um detento sofra algum dano dentro de uma unidade prisional:

 (...) A omissão do Estado reclama nexo de causalidade em relação ao dano sofrido pela vítima nos casos em que o Poder Público ostenta o dever legal e a efetiva possibilidade de agir para impedir o resultado danoso. (...) É dever do Estado e direito subjetivo do preso que a execução da pena se dê de forma humanizada, garantindo-se os direitos fundamentais do detento, e o de ter preservada a sua incolumidade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal). (RE 841.526/RS)

Desta forma, um detento transexual poderia ter violada a sua intimidade sexual em uma cela feminina, enquanto detentor de um órgão sexual masculino e, o pior de tudo, teria o Estado como colaborador na prática do delito quando não dispõe de um ambiente adequado para custódia do transexual.

5.3. Possibilidade de transferência a presídios especiais

Temos ainda, a possibilidade de cumprimento da pena em presídios especiais. Segundo informações obtidas através da SEJUSP/MG (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas gerais), muitos transexuais hoje, no estado de Minas Gerais, estão alocados na Penitenciária Professor Jason Soares Albergaria, em São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de Belo Horizonte/MG, mais conhecidos como “as alas rosas”.

A preocupação insurge no fato de que procedimento de transferência de detentos a tal presídio é feito através da auto declaração do transexual, ou seja, qualquer um que se manifestar transexual poderá cumprir sua pena em uma dessas alas, permitindo que pessoas que não sejam do grupo LGBT+ gozem de espaços destinados ao alocamento dos transexuais, colaborando na ocorrência de violações na integridade física, moral e sexual daqueles detentos. Sendo assim, tais presídios não tem um controle quanto a números de transexuais locados ali, demonstrando a falha no sistema.

Outro problema interessante se observa no fato de que tais presídios são extremamente incomuns no nosso país, sendo os estados que os detém vistos como exceção. Por tal razão, surge um problema a partir do momento em que temos um detento que não reside na cidade em que a penitenciária está estabelecida, desta forma, se o mesmo for transferido para esta, este ficaria longe da família e, conforme previsão constitucional (art. 5º, LXIII), a assistência familiar é direito garantido a todos os detentos, além de ser um importante auxílio na ressocialização do preso: “Art. 5º. (...) LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” ( BRASIL, 2020).

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Sendo assim, poderia o detento, ao ser transferido, vir a ferir direito constitucional da assistência familiar, o qual, conforme é sabido, é de suma importância do processo da ressocialização do detento.


6 CONCLUSÃO

Analisando o tema proposto, é possível notar que a omissão do Estado em criar uma legislação específica em relação às mais diversas possibilidades de cumprimento da pena, pelo detento transexual, gera problemas enormes no âmbito jurídico, como uma série de discriminações, violências físicas, morais e sexuais, distanciamento de familiares, dentre outros.

Um detento transexual, ao chegar a uma unidade prisional, fica sujeito a tratamento não condizente com sua identidade de gênero, o que torna sua dignidade afrontada. Cumpre notar que tais pessoas são iguais a qualquer outro indivíduo, uma vez que gozam de direitos e obrigações decorrentes do Estado Democrático de Direito. As questões relacionadas à identidade de gênero não acarretam tratamento especial em detrimento das demais pessoas; apenas colocam o transexual em situação de paridade na sociedade.

Discussões como esta se mostram relevantes, uma vez que está se tratando de minorias, o que faz com o Estado se torne silente em relação a estas pessoas, e uma discussão sobre o tema pode influenciar positivamente em uma tomada de atitude, fazendo com que o Poder Público volte seus olhos a estas pessoas, seja no âmbito da fiscalização, seja no âmbito da segurança.

Não se tem hoje um estabelecimento totalmente adequado para custódia desses detentos. Infelizmente, onde quer que eles sejam alocados haverá violações de diversas formas. O que se deve buscar é a redução dos danos ao encarceramento, partindo da premissa do respeito à identidade de gênero do transexual e da dignidade humana, buscar adequar o sistema prisional às necessidades dessa parcela da população.

Sendo assim, pode-se concluir que hoje não se tem um padrão a ser seguido no que concerne ao alocamento de transexuais no sistema prisional. O que se tem são parâmetros utilizados na custódia destes detentos. Porém, conforme demonstrado, ainda que se sigam tais parâmetros, ter-se-á a violação de garantias fundamentais, colocando o detento transexual em circunstâncias incompatíveis com suas garantias constitucionais.


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Nota

[1] Penitenciário Nacional. Disponível em< http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/infopen> Acesso em mai de 2020.

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Sobre os autores
Mirian Aparecida Silva de Oliveira

Graduanda em Direito pelo centro Universitário UNA de Bom Despacho/MG

Pedro Henrique de Sousa

Graduando do centro universitário UNA de Bom Despacho/MG

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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