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Um poder moderador?

08/06/2020 às 15:30
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A garantia dos poderes constitucionais, conforme prevê o art. 142 da Constituição Federal, tornou-se a justificativa preferida pelas Forças Armadas para a definição de seu papel?

A Constituição outorgada por D. Pedro I, de 1824, a chamada Constituição do Império, apresentou modelo estruturado em 25 de março daquele ano. Declara, de início, que o Império do Brasil é a associação política de todos os cidadãos brasileiros, que formam uma nação livre e independente que não admitia, com qualquer outro, laço de união ou federação que se oponha à sua independência (artigo 1º).

Aquela Constituição estabelecia um governo monárquico hereditário constitucional e representativo, como se via do artigo 3º.

O princípio da divisão e harmonia dos poderes políticos foi adotado como princípio conservador dos direitos dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias que a Constituição oferece (artigo 9º), mas segundo uma formulação quatripartida de Benjamim Constant (Curso de Política Constitucional, 1968, páginas 13 e seguintes): Poder Legislativo, Poder Moderador, Poder Executivo e Poder Judiciário (artigo 10).

A inspiração para o Poder Moderador veio do pensamento de estadistas franceses como Benjamin Constant e Clermont Tornnerre, cujas ideias circularam na França na época da Restauração da Casa de Bourbon, após a derrocada do Império Napoleônico. Um dos responsáveis diretos pela inserção do Poder Moderador na Constituição Imperial do Brasil foi o estadista José Bonifácio de Andrada e Silva.

Designado por “povoir royal”, Benjamin Constant justificava a sua existência pela necessidade de o “poder real” ser um “poder neutro”, a fim de evitar o vício de quase todas as constituições.

Interessa-nos, aqui, o Poder Moderador.

O Poder Moderador, considerado a chave de toda a organização política, era exercido privativamente pelo Imperador, como chefe supremo da Nação e seu primeiro representante, para que de forma incessante velasse sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos demais poderes políticos (artigo 98).

Realmente criando aquela Constituição, enfeixado na pessoa real, os estadistas do antigo regime monárquico armaram o soberano de faculdades excepcionais. Como Poder Moderador, ele agia sobre o Poder Legislativo pelo direito de dissolução da Câmara, pelo direito de adiamento e de convocação, pelo direito de escolha, na lista tríplice, dos senadores. Ele atuava sobre o Poder Judiciário pelo direito de suspender os magistrados. Ele influía sobre o Poder Executivo pelo direito de escolher livremente seus ministros de Estado e livremente demiti-los. Ele influía sobre a autonomia das províncias, dentro de um Estado unitário. O Imperador, como chefe do Poder Executivo, que exercia por meios dos seus ministros, dirigia, por sua vez, todo o mecanismo administrativo do país.

O Poder Moderador "somente pode ser estimado nas consequências incomparáveis que teve para a consolidação da unidade nacional e para a estabilidade do sistema político do Império", num "continente politicamente flagelado por ódios civis e pulverizado em repúblicas fracas e rivais". Para Galvão Sousa, o Poder Moderador sob dom Pedro II, "deu margem à famosa ‘ditadura da honestidade’. Transformou-se, logo no poder pessoal do monarca, exercido sempre com alto espírito público".  O termo ditadura utilizado pelo autor não possui uma conotação pejorativa relacionada à palavra e sim para exemplificar a força da moralidade e justiça que dom Pedro II impunha no seu papel como monarca constitucional.

A Constituição imperial dizia no artigo 98: “O Poder Moderador [...] é delegado privativamente ao Imperador [...] para que vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”. Temos uma República julgada incapaz de se autogovernar, sujeita à tutela de um novo Poder Moderador.

Assim, o Poder Moderador e o Poder Executivo eram exercidos pelo Imperador (artigos 101 e 102), cumulação essa que foi muito discutida, como disse Zacarias de Góis e Vasconcelos (Da natureza e limites do poder moderador).

Naquilo que é considerada a melhor obra na matéria, Zacarias de Góis e Vasconcelos afirmavam que a plenitude do governo representativo somente estaria assegurada pela responsabilidade ministerial nos atos do Poder Moderador.

Hoje, a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas Forças Armadas para definir seu papel.

Em Portugal, a Constituição de 1826 trouxe na estrutura de poder o Poder Moderador:

As suas características mais importantes são as seguintes:

1) A carta é uma concessão régia, que não só não afirma, ao contrário da Constituição de 1822, o princípio da soberania popular, como concede ao rei um importante papel na ordenação constitucional;

2) Estipula o princípio da separação de poderes que, além dos clássicos três, legislativo, executivo e judicial, passa a ter mais um, o moderador. O poder legislativo pertence às Cortes com a sanção do rei e é exercido por duas câmaras: a dos Deputados, eletiva e temporária e a dos Pares, com membros vitalícios, nomeados pelo rei e sem número fixo, sendo os lugares hereditários. O poder moderador, o mais importante, pertence exclusivamente ao rei, que vela pela harmonia dos outros três poderes e não está sujeito a responsabilidade alguma. O poder executivo também pertence ao rei, que o exercita através dos seus ministros.  O poder judicial é independente e assenta no sistema de juízes e jurados;

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3) A Carta enumera, ainda, os direitos dos cidadãos, de que os mais importantes são o direito de liberdade de expressão, oral e escrita, o direito de segurança pelo qual ninguém pode ser preso sem culpa formada, e o direito de propriedade.  Mas não indica quaisquer deveres, o que é bastante significativo.

Embora liberal, ficou longe do espírito democrático da Constituição de 1822.

Eram marcantes naquela Constituição de Portugal os traços do poder moderador e do bicameralismo.

Aquela Carta, em seus artigos 11 e 71, introduziu o poder moderador e o sistema bicameral (artigo 14).

 Designado por “pouvoir royal”, este autor justificava a sua existência pela necessidade de o “poder real” ser um “poder neutro”, a fim de evitar o vício de quase todas as constituições.

O poder moderador era considerado por aquela Carta como “a chave de toda a organização política” e de competência exclusiva do rei (artigo 71), era uma construção artificial e acabava por entregar ao poder executivo a solução de conflitos que foi logo notado pela doutrina constitucional do século XIX e princípios do século XX, como se lê de José Tavares (O poder governamental no Direito Constitucional português, 1909, pág. 7). No direito brasileiro, à luz da Constituição de 1824, tem-se as palavras sobre a matéria de Paulo Bonavides (História constitucional do Brasil, Nelson Saldanha (A teoria do poder moderador e as origens do direito público brasileiro).

O rei exercia, naquela Carta Constitucional, o seu poder moderador:

Art.74º - O Rei exerce o Poder Moderador: § 1.° - Nomeando os Pares sem número fixo. § 2.° - Convocando as Cortes Gerais extraordinariamente nos intervalos das Sessões, quando assim o pede o Bem do Reino. § 3.° - Sancionando os Decretos, e Resoluções das Cortes Gerais, para que tenham força de Lei, Artigo 55.°. § 4.° - Prorrogando, ou adiando as Cortes Gerais, e dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado, convocando imediatamente, outra, que a substitua. § 5.° - Nomeando e demitindo livremente os Ministros de Estado. § 6.° - Suspendendo os Magistrados nos casos do Artigo 121.°. § 7.° - Perdoando, e moderando as penas impostas aos Réus condenados por Sentença. § 8.° - Concedendo Amnistia em caso urgente, e quando assim o aconselhem a humanidade, e bem do Estado.

Os tempos passaram.

Em 1976, quando se vivia sob a ditadura militar, sob a égide da Emenda Constitucional nº 1/69, pensou-se em fixar o Poder Moderador.

Os militares já tinham essa ideia de exercê-lo, por via das Forças Armadas.

Tem-se no modelo ditatorial de 1967, com as mudanças outorgadas em 1969, que as Forças Armadas tinham o papel político e policial.

Art. 92: repete 1946, trocando “poderes constitucionais” por “poderes constituídos”.

Em 1988, com a Constituição democrática tivermos: papel político e policial.

Art. 142: “[como em 1946] organizadas [...] sob a autoridade suprema do PR, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Em 1891, ironicamente, a Constituição proibia o que o Exército acabara de fazer: desrespeitar as instituições constitucionais. Mesmo assim, deixou uma saída intervencionista ao acrescentar “dentro dos limites da lei”. Juarez Távora não viu na limitação qualquer obstáculo à revolta dos tenentes: eles sabiam definir o que era ou não legal. Hoje, a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel e justificar sua intervenção.

Fala-se num exercício de Poder Moderador pelas Forças Armadas.

Toda a carreira do militar da ativa é formalizada, previsível e institucionalizada por critérios objetivados, diria o ministro Ayres Britto. Etapas adequadas ao mérito e treinamento que tiveram. O soldo é predeterminado. A hierarquia profissional prevalece. São obrigados ao silêncio obsequioso. São proibidos de se manifestar politicamente.

A Constituição imperial dizia, em seu artigo 98: “O Poder Moderador [...] é delegado privativamente ao Imperador [...] para que vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos”. Temos uma República julgada incapaz de se autogovernar, sujeita à tutela de um novo Poder Moderador.

Assim, a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a justificativa preferida pelas Forças Armadas para definir seu papel.

Esse entendimento levaria ao retorno das ideias de 1937 e dos Atos Institucionais que rasgaram a Constituição de 1946, no sentido de que as Forças Armadas seriam a garantia dos poderes institucionais tendo poder de intervir. Ora, isso não se amolda à Constitução-cidadã de 1988, que renega a ideia de que o poder civil é uma concessão do poder militar. Ficaria a sociedade entregue aos ditames militares, o que é uma afronta à democracia.

Os episódios de triste memória ocorridos entre 1964 e 1985 são um alerta.

Militar é carreira de Estado. Não de governo.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um poder moderador?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6186, 8 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82698. Acesso em: 26 abr. 2024.

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