O CARF foi responsável, em 2019, segundo pesquisa divulgada pelo próprio órgão, por um estoque de aproximadamente R$ 603,77 bilhões de créditos tributários em discussão. Não é um valor inexpressivo, mesmo para a União Federal. Estamos a falar de revisão de significativa quantidade de lançamentos fiscais, exercício do poder de autotutela com convite estendido parcimoniosamente ao administrado, discutindo a legalidade desses atos administrativos, pois houve questionamento por parte do contribuinte autuado. Postura litigiosa exacerbada, má técnica de lançamento, ou nem tanto ao mar, quanto à terra, é assunto para outro artigo.
O voto de qualidade (independente a favor de quem se decida) se faz necessário por singelo motivo. Quando analisamos a composição do CARF, suas câmaras e sessões possuem composição em número par. Dessarte, como o empate é um cenário possível, carece a legislação de uma técnica de julgamento para que o órgão julgador, que não é a pessoa do julgador, por maioria coloque fim à questão - non liquet. Até então, a solução prevista na legislação, ora revogada, era de que em caso de empate o seu presidente, que sempre é um representante fazendário, proferiria um voto de duplo ou de qualidade.
No meu sentir, o problema nunca foi o voto de qualidade em si, mas o seu abuso em situações específicas. Como assim? Por exemplo, validando autuações fiscais desconsiderando estruturas e negócios jurídicos válido utilizados pelo contribuinte com base em exigências sem previsão legal.
Com o fim da técnica de julgamento do voto de qualidade favorável à Fazenda Nacional no CARF, através do artigo 28 da Lei 13.988/2020, muitos questionamentos surgiram dentro da comunidade jurídica. Profícuos debates realizados e textos excelentes publicados em tão pouco tempo ilustram a relevância da temática em comento.
Adianto, contudo, que não será objeto de nossa análise a possível inconstitucionalidade da norma em função da ocorrência de "contrabando legislativo", compatibilidade da técnica com princípios que informam o sistema tributário nacional, aplicação da lei no tempo ou até mesmo possíveis elucubrações sobre uma eventual resposta da Fazenda Nacional, imaginando se ela fará valer entendimento exarado na Portaria PGFN nº 820 de 29/10/2004. Novamente, tema para outro texto.
Pretendo falar apenas sobre possíveis efeitos nos planejamentos tributários das empresas.
No dia 26 de maio de 2020 tive a alegria de participar do evento online no Ibmec sobre o fim do voto de qualidade e os efeitos no planejamento tributário. Para discutir este complexo tema, juntamente comigo estavam os professores Luís Eduardo Schoueri (Professor Titular da Universidade de São Paulo (USP) e Vice Presidente do IBDT), Sérgio André Rocha (Professor de Direito Financeiro e Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Micaela Dutra (Advogada da Petrobrás e professora da graduação e pós-graduação do Ibmec).
Nessa oportunidade, debatemos diversos temas importantes sobre planejamento tributário e tentamos imaginar se haverá alteração no entendimento do CARF, em especial da CSRF. Não retomarei as discussões travadas no evento. Mas, para melhor ilustrar o objeto deste artigo, trarei três situações por mim levantadas para que juntos analisemos a aplicação dessa teoria do propósito negocial, CARF e ao final flertar com um pouco de futurologia com o fim do voto de qualidade:
- Operação de pejotização imobiliária para venda de imóveis;
- Operação de split para enquadramento em regime de tributação mais favorável; e
- Utilização de empresa veículo para reconhecimento de ágio.
Falando sobre o primeiro caso, imaginemos que um determinado contribuinte possua imóveis alugados na pessoa física e que, em caso de cenário de mercado imobiliário favorável, possa vir a vendê-los. O recebimento do aluguel, provavelmente, já legitimaria fazer um estudo para oferecer tal rendimento à tributação através de uma pessoa jurídica. O modus operandi seria a integralização do capital social da pessoa jurídica com os imóveis, cujo objeto social seria compra e venda e aluguel de imóveis próprios, de sorte que a receita do aluguel será considerada operacional. Em função desse CNAE, o negative side seria a incidência do ITBI quando da integralização. Mas é preciso fazer conta para saber se esse planejamento faria sentido pensando exclusivamente no rendimento dos aluguéis.
O simplório exemplo acima já abre espaço para algumas discussões. Entenderia o Fisco não haver propósito negocial ao se utilizar uma pessoa jurídica para receber os aluguéis que antes eram reconhecidos na pessoa física, antiga proprietária dos bens? Partindo da premissa que há economia de tributos nesse caso, e que a operação de criação da holding patrimonial tenha tido como objetivo conseguir eficiência fiscal, isto por si só daria azo a desconsideração da operação societária? Parece-se que a resposta é negativa. Desconheço vedação legal nesse sentido. Por mais que outros ganhos de eficiência surjam da nova estrutura, se não há provada intenção de fraudar credores, entendo ser perfeitamente válida esse negócio jurídico.
Mas tentemos seguir o raciocínio do Fisco ao advogar a tese do propósito negocial. O problema seria a operação ser motivada principalmente pela economia de tributos para quem a engendra? Há quem advogue tese nesse sentido. No plano teórico, filio-me ao pensamento do saudoso mestre Ricardo Lobo Torres, no sentido de que a "jurisprudência dos valores e o pós-positivismo aceitam o planejamento fiscal como forma de economizar imposto, desde que não haja abuso de direito"1.
Mas por amor (excessivo) ao debate, fico a me perguntar o seguinte: em se adotando a visão do propósito negocial defendida pelo Fisco em suas autuações, no caso de a otimização fiscal se consumar na possibilidade de gerar crédito de PIS/COFINS para locatário pessoa jurídica, uma vez estando agora os imóveis na holding patrimonial? Como não há economia direta de tributos, mas apenas vantagem competitiva indireta gerada pela operação, então seria permitido? Ou ainda assim estaríamos diante de um planejamento abusivo? Sigamos com o exemplo.
Caso se decida pela venda do imóvel em dado momento. Respeitando a premissa de que esse imóvel que será vendido está há 1 ano sem receber aluguel, imagine que o tenhamos, portanto, enquadrado na conta estoque, do ativo circulante. Assim, sua venda será como a venda de uma mercadoria, incidindo aproximadamente 6,73% de tributos (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS) já projetados sobre a receita com a venda.
O cenário acima fica cada vez mais vantajoso quando o lucro imobiliário (ganho de capital) na pessoa física, tributado com alíquotas progressivas que se iniciam a 15% for expressivo - mas claro que precisamos fazer contas para se descobrir o break even da operação. Explico. Um imóvel adquirido a 100 mil e vendido a 600 mil gera um ganho de capital na pessoa física de 500 mil que, tributado a 15%, encontramos o valor de 75 mil de IRPF. Se esse mesmo imóvel fosse vendido na pessoa jurídica no formato acima, a tributação total seria de 6,73% sobre o valor de venda, 600 mil, gerando uma tributação total de pouco mais de 40 mil.
O cenário criado no parágrafo anterior é lícito ou estaria o contribuinte incorrendo em abuso de direito? Levando em consideração que quando da integralização do imóvel não houvesse comprador conhecido, pessoalmente não consigo enxergar em simulação. O simples fato da venda do imóvel por uma pessoa jurídica com objeto social e CNAE de compra e venda de imóveis, provocando uma economia de tributos, violaria o propósito negocial ou qualquer outro princípio e/ou regra em nosso ordenamento? Quem souber a resposta, toda ajuda será bem-vinda.
Boa notícia veio do TRF da 4ª Região, no processo nº 500 9900-93.2017.4.04.7107, que deu aval a um planejamento tributário realizado por contribuinte que se valeu de planejamento simular ao acima e anulou autuação fiscal de R$ 57 milhões, em valor atualizado. A contribuinte recorreu ao Judiciário depois de perder a disputa, por voto de desempate, na Câmara Superior do CARF.
Sobre a segunda situação, temos o caso de uma empresa que possui receitas operacionais de venda de mercadoria e prestação de serviços. Por questões de mercado, imagine que a margem líquida da venda da mercadoria é de 25% - trata-se artigo de luxo e empresa com bom posicionamento no mercado, ao passo que o serviço prestado é acessório, como uma instalação ou manutenção e, portanto, a margem líquida fique em torno de 10%.
Como a opção pelo lucro real ou presumido é pelo CNPJ da matriz, percebemos uma clara ineficiência fiscal. O melhor dos mundos seria poder oferecer à tributação a receita da venda de mercadorias no lucro presumido e a de serviços no lucro real, respeitados os requisitos legais e olhando apenas sob o prisma do IRPJ e CSLL (leia-se desconsiderando a problemática dos créditos de PIS/COFINS). Mas não podemos. A menos que façamos uma operação conhecida como split, criando nova pessoa jurídica para que exerça isoladamente uma das atividades econômicas.
Partindo do pressuposto que a divisão encontra respaldo no mundo dos fatos, com funcionários e operação independentes, por mais que tenhamos rateio de custos, CSC e CSA (centro de serviços compartilhados e cost sharing agreement), não há simulação em nosso sentir. Mas há economia de tributos. E a partir de que momento a legislação vigente passou a considerar essa operação abusiva? Qual o problema de ser motivada precipuamente por economia fiscal se o que vislumbramos no mundo dos fatos está representado nos instrumentos jurídicos?
Finalmente, analisando a terceira situação, poderíamos aqui tecer longas considerações sobre como a jurisprudência deste tribunal administrativo se comporta quando o assunto é ágio para fins fiscais. Permitir-me-ei fazer um recorte para que me ater em apenas uma controvérsia: a utilização de empresas veículo e o conceito de real investidor.
Situação-problema: temos um grupo estrangeiro antes da edição da lei 12.973/2014 pretendendo adquirir uma empresa no Brasil com pagamento de ágio baseado em rentabilidade futura.
Quando analisamos os julgados no CARF sobre a amortização do ágio baseado em rentabilidade futura, nos termos do atual artigo 433 do RIR/2018 (artigo 386 do RIR/1999 vigente à época), encontramos controvérsia levantada pela Receita Federal do Brasil (RFB) sobre a utilização de empresas veículo, vazias ou intermediárias. O cerne da discussão é a suposta confusão patrimonial pela utilização de uma empresa de propósito específico na operação societária de combinação de negócios (pronunciamento CPC 15 (R1)) descrita acima.
A RFB, em regra, questiona a utilização de empresas que ela chama de “vazias”, pois seriam empresas que não são operacionais, normalmente em estrutura de holding, o que geraria confusão entre investida e a real investidora. Gostaria de destacar que esse conceito de real investidora foi construído pela fiscalização e referendado pelo CARF à época.
Vamos entender. Como precisamos de uma empresa no Brasil para figurar no papel de adquirente e, com isso, aproveitar o ágio para fins fiscais, na situação-problema, descrita acima, a empresa veículo recebe aporte financeiro para que consiga adquirir a empresa-alvo. A celeuma sobre a figura do real investidor surge principalmente quando aquele investimento advém de capital estrangeiro e toda a operação seria considerada artificial.
Para facilitar a compreensão do que ora se expõe, é oportuno lembrar o Caso Cremer (Acórdão nº 1102-001.006 do Processo 13971.005209/2010-12). Ficando adstrito a parte que nos interessa analisar, o caso julgado diz respeito a ágio proveniente da integralização por holding brasileira cujo capital pertencia integralmente a holding americana. Associaram-se os grupos vendedor e comprador do controle da investida, de novas ações desta última. Observe-se que são partes não relacionadas, e a estrutura foi montada para que o ágio fosse gerado na empresa veículo de venda brasileira (a holding nacional), que depois foi incorporada pela investida, e não na investidora estrangeira. Segundo trecho do acórdão supra mencionado "A operação de substituição de participação societária, gerando ágio numa empresa veículo, é suficiente para macular o planejamento, mesmo que anteriormente tivesse sido gerado ágio, em aquisição pretérita, realizada mediante efetivo pagamento."
A fiscalização entende inexistir propósito negocial no emprego da empresa veículo nesse caso, posto que sua participação na operação seria por exclusivos motivos tributários. Por conta disto, não raro encontramos nesse tema lavratura de autos de infração falando em simulação, abuso de abuso de direito ou de forma. Estamos ainda pré-12.973/2014 e gostaria muito de encontrar base legal para a construção de jurisprudência no CARF referendando a lavratura desses autos de infração.
À guisa de conclusão, entendo que a jurisprudência do CARF será menos complacente com autuações fiscais abusivas, não mais referendando a criação de teses pelo Fisco ao arrepio de fundamento legal. Digo isto por confiar na isenção do órgão julgador e qualidade técnica de seus membros, que possui papel inafastável de aplicar a lei - seja ele representando advindo dos quadros do Fisco ou do contribuinte.
Não estamos defendendo ou endossando "planejamento abusivos", incentivando simulações, abusos ou acreditando que o CARF dará as costas para a lei. Jamais e muito pelo contrário. Acredito que teremos um novo capítulo de aplicação mais correta da legislação tributária, corrigindo abusos e, consequentemente, trabalhando em prol de uma fiscalização mais eficaz. Sem que prevaleça instrumentos abusivos como o propósito negocial, tenho esperanças na mudança da jurisprudência, revendo antigos temas resolvidos historicamente por votos de desempate.
Referência
- Torres, Ricardo Lobo. Normas Gerais Antielisivas. Revista Fórum de Direito Tributário – RFDT, Belo Horizonte, n.1, jan/fev. 2003, p. 90 – 123.