Capa da publicação Acumulação de cargos públicos por militares: o que mudou na Constituição desde 1988?
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Acumulação de cargos públicos sob a perspectiva dos militares:

uma análise à luz da Constituição Federal de 1988

09/06/2020 às 12:30
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A regra sempre foi a da proibição da acumulação de cargos públicos, salvo nas hipóteses excepcionais previstas na própria CF. Mas, para os militares, ainda que com regime mais restrito, algumas flexibilizações ocorreram a partir de 2014.

1.Introdução

 

O presente trabalho, considerando o tema acumulação de cargos públicos por militares, buscou avaliar as possibilidades e vedações, tendo por parâmetro a Constituição Federal (CF) de 1988, desde a redação do constituinte originário, até o advento das mudanças implementadas pelas Emendas Constitucionais de números 77/2014 e 101/2019.

Para tanto, utilizou-se das pesquisas bibliográfica, documental e exploratória, sobretudo no que tange aos dados e informações provenientes do texto da Carta Magna, incluindo as alterações havidas desde sua promulgação, bem como a jurisprudência dos Tribunais Superiores, especialmente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF). Buscou-se, ainda, amparo em alguns doutrinadores que trazem conceitos e abordagens relacionados à discussão, necessários ao entendimento global do assunto.

Nessa perspectiva, inicialmente abordar-se-á a situação do regime jurídico constitucional aplicável aos militares, incluindo aqueles das Forças Armados (FFAA): Marinha, Exército e Aeronáutica, e, ainda, os das Polícias Militares e Corpo de Bombeiros Militares. Seguidamente, será tratado sobre as exceções constitucionais à vedação geral sobre acumulação de cargos, extensivos aos empregos e funções públicas, com ênfase naquelas nas alíneas do inciso XVI, do art. 37, da CF/88, discutindo sua aplicabilidade aos militares federais e dos estados-membros e do Distrito Federal e Territórios. Por fim, serão tratadas as conclusões e considerações sobre a pesquisa realizada. 


2. Desenvolvimento

 Na Constituição Federal de 1988, os militares constituem-se em espécie do gênero agentes públicos, tal qual os agentes políticos, servidores públicos e os particulares em colaboração (MELLO, 2008), classificação essa trazida pelas mudanças introduzidas Emenda Constitucional nº 18 de 1998.

Na forma da CF/88, os militares abrangem os profissionais que prestam serviços às Forças Armados (FFAA): Marinha do Brasil, Exército Brasileiro e Força Aérea Brasileira- Aeronáutica, bem como às Polícias Militares e Corpo de Bombeiros Militares, instituições estas organizadas com base na hierarquia e disciplina e com regime jurídico estatutário próprios.

Os militares das FFAA, sob a autoridade suprema do Presidente da República, destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.  Já as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, incumbidos de atribuições ligadas à segurança pública: os primeiros, o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, e os últimos, além das atribuições definidas em lei, a execução de atividades de defesa civil. Nesse sentido, rezam as disposições constitucionais do art.142, caput e § 3º, do art. 42, caput, e art.144, caput, V e §§ 5º e 6º:

Por sua vez, verifica-se que o tema acúmulo de cargos é preceito de status constitucional. A Carta Magna de 1988 estabeleceu como regra, no artigo 37, XVI (atualmente com redação  dada pelas Emendas Constitucionais nº 19, de 1998 (inciso XVI e alíneas “a” e “b”) e nº 34, de 2001 (alínea “c”)), a vedação à acumulação remunerada de cargos públicos, extensiva à empregos e funções (art. 37, XVII), excepcionada, quando houver compatibilidade de horários e observado o disposto no inciso XI (tetos remuneratórios): a) a de dois cargos de professor; b) a de um cargo de professor com outro técnico ou cientifico; e c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.

Antes de adentrar na discussão objeto deste estudo, é preciso fixar o conceito de cargo público, expressão a ser reiteradamente utilizada no bojo do trabalho. Assim, cargo público é o lugar ocupado por servidor público, cuja acessibilidade se dá por concurso público, ressalvada a nomeação para cargos de provimento em comissão, cujas nomeação e exoneração são livres (art. 37, II, CF/88) (MEIRELLES, 2009; DI PIETRO, 2008; MELLO, 2008). Nesse mesmo viés, Paulo & Alexandrino (2016) ensina que:

Cargo público é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional da administração que devem ser cometidas a um servidor. Os cargos públicos são criados por lei, com denominação própria e vencimento pago pelos cofres públicos, para provimento em caráter efetivo ou em comissão (Lei 8.112/1990, art. 3º). Em qualquer hipótese, os titulares de cargos públicos submetem-se ao regime estatutário ou institucional. (PAULO & ALEXANDRINO, 2016, p. 371-372) (grifei)

 

Pelos dispositivos ut supra, a regra constitucional é a  da não acumulação de cargos públicos, devendo ser observada por todos os entes da Administração Pública direta e indireta, bem como a hipótese de sua excepcionalidade, qual seja, em havendo a compatibilidade de horários e desde que observado o teto remuneratório (art. 37, caput e inciso XVI).

Na forma da alínea “a”, até de 02 cargos de professor, face ao fato de que a docência possibilita jornadas de trabalho diferenciadas e mais flexíveis, comparativamente a outros cargos, permitindo, por conseguinte, que um mesmo servidor tenha condições de desempenhá-la em mais de uma instituição, se não houver dedicação exclusiva em qualquer dos vínculos. 

Na forma da alínea “b”, um cargo de professor com outro técnico ou científico. Cargo técnico ou científico são aqueles que demandam conhecimento especializado prévio em seu campo de atuação, consoante vasta jurisprudência pátria. São aqueles em que, para fins de ingresso, a prova já exige um curso anterior como habilitação:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ACUMULAÇAO DE CARGOS PÚBLICOS. PROFESSOR APOSENTADO E AGENTE EDUCACIONAL. IMPOSSIBILIDADE. CARGO TÉCNICO OU CIENTÍFICO. NAO-OCORRÊNCIA. RECURSO IMPROVIDO. 1. É vedada a percepção simultânea de proventos de aposentadoria de servidores civis ou militares com a remuneração de cargo, emprego ou função pública, ressalvados os acumuláveis na atividade, os cargos eletivos ou em comissão, segundo o art. 37, 10, da Constituição Federal. 2. O Superior Tribunal de Justiça tem entendido que cargo técnico ou científico, para fins de acumulação com o de professor, nos termos do art. 37, XVII, da Lei Fundamental, é aquele para cujo exercício sejam exigidos conhecimentos técnicos específicos e habilitação legal, não necessariamente de nível superior. (...) (STJ. 5ª Turma. RMS 20.033/RS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 15/02/2007)

 

Destacam-se, ainda, como precedentes importantes sobre o tema: MS 7.550/PB, 6.ª Turma, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ de 02/03/1998; STJ. 2ª Turma. RMS 42.392/AC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 10/02/2015; STF. 1ª Turma. RMS 28497/DF, rel. orig. Min. Luiz Fux, red. p/ o acórdão Min. Cármen Lúcia, julgado em 20/5/2014. Info 747; STJ. 5ª Turma. RMS 28.644/AP, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 06/12/2011).

Na forma da alínea “c”, de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas, seria, por exemplo, o caso de o mesmo profissional exercer um cargo de médico do município e outro de médico do estado. Abrange não apenas saúde humana (médicos, enfermeiros, odontólogos, assistentes sociais, fisioterapeutas, nutricionistas etc.), mas também saúde animal, como o veterinário. Não cabe a estes profissionais a extensão da possibilidade de acumular qualquer outro cargo, salvo o de professor, caso em que o cargo, emprego ou função da área de saúde se enquadraria como técnico ou científico (alínea “b”).

Nas três hipóteses previstas nas alíneas citadas, deve-se observar, inicialmente, se haverá compatibilidade de horários entre os órgãos onde o servidor vai desempenhar suas atribuições, i.e., as duas funções devem ser exercidas em horários distintos, sem prejuízo do quantum das horas de trabalho regulamentares de cada cargo, bem como do exercício regular das atribuições de cada um deles.

Quanto à percepção de remuneração, na forma do § 10º do art. 37 da CF/88, poderá haver percepção de proventos de aposentadoria e remuneração de servidor ativo, se decorrentes de cargos acumuláveis na forma da constituição ou de cargos eletivos ou em comissão. Destaca-se que a regra citada anteriormente, que veda a acumulação de proventos com remuneração (art. 37, § 10), não foi prevista originalmente na Constituição Federal de 1988, de modo que o artigo 11 da Emenda Constitucional nº 20/98, ressalvou o direito adquirido daqueles servidores (civis e militares) que, até a até a data da publicação da Emenda Constitucional nº 20/98, tenham ingressado novamente no serviço público, podendo estes permanecer acumulando seus proventos somados à remuneração.

Igualmente, na forma do art. 40, § 6º, poderá haver percepção de 02 aposentadorias se decorrentes de cargos acumuláveis na forma da CF/88. 

Quanto ao teto remuneratório, a Constituição da República, em seu art. 37, XI, traz previsão sobre o valor máximo que os agentes públicos podem receber no país, com a finalidade de evitar que alguns agentes públicos recebessem salários incompatíveis com o serviço público.

Pela literalidade dos dispositivos constitucionais citados (art. 37, XI e XVI), o entendimento seria de que, mesmo nos casos de acumulação permitida, a soma das remunerações dos dois cargos não poderia ser superior ao teto.  No entanto, o STJ e do STF entendem em sentido oposto, no sentido de que o limite do teto deverá ser considerado, isoladamente, para cada um dos vínculos, sendo possível que a soma dos dois ultrapasse esse limite.

Sobre a temática, veja-se o que decidiu o Plenário do STF em julgamento de repercussão geral:

Nos casos autorizados constitucionalmente de acumulação de cargos, empregos e funções, a incidência do art. 37, XI, da Constituição Federal pressupõe consideração de cada um dos vínculos formalizados, afastada a observância do teto remuneratório quanto ao somatório dos ganhos do agente público. (STF. Plenário. RE 612975/MT e RE 602043/MT, Rel. Min. Marco Aurélio, julgados em 26 e 27/4/2017, repercussão geral, Info 862)

 

No mesmo sentido, a 1º Turma STJ decidiu no julgamento do AgRg no RMS 45.937/DF, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 05/11/2015.

Igual entendimento é aplicável para acumulação de aposentadorias, nos casos de os servidores que se aposentaram em dois cargos acumuláveis, podendo a soma dos dois proventos ultrapassar o teto, devendo, assim, o art. 40, § 11, da Carta Magna ser interpretado como sendo um teto para cada aposentadoria.

Quanto a acumulação de cargos públicos pelos militares, por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988, no § 1º do art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, foi prevista uma possibilidade do militar, à época, acumular cargos públicos, in verbis: “É assegurado o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos de médico que estejam sendo exercidos por médico militar na administração pública direta ou indireta”.

Já por ocasião das alterações implementadas pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998, o artigo 142 foi acrescido do §3º, e seus incisos. Extrai-se dessas regras que não era lícita cumulação de cargos ou emprego público civil, com a atividade militar, o que resultaria na transferência para reserva, nos casos em que o militar, em atividade, tomasse posse em cargo ou emprego público (art. 142, § 3º, incisos II e III). Verifica-se, ainda que, na redação agora trazida no art. 142, § 3º, VIII, da Lei Maior, há a expressa menção de quais incisos do art. 37 se aplicariam aos membros das Forças Armadas (e militares estaduais por extensão), não mencionando, esse dispositivo, até então, o inciso XVI do art. 37.

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Em relação ao militar inativo (aposentado), federal (art.142) ou estadual (art.42), a Carta Magna também proibia a acumulação dos proventos com a remuneração de cargo ou emprego público, consoante redação do já citado § 10 do artigo 37, introduzido pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998. Logo, repise-se, caso o militar “aposentado” tomasse posse em cargo público, deveria fazer opção pela remuneração do novo cargo ou pelos proventos da inatividade:

Logo, por ausência de previsão constitucional, a possibilidade de cumulação de cargos prevista no inciso XVI do art. 37 da CF/88, permanecia restrita aos servidores públicos civis, vez que o § 3º do art. 142 da Carta Magna não mencionava expressamente o inciso XVI do art. 37 da CF/88 como aplicável aos militares. No entanto, houve flexibilização dessa regra, por ocasião da edição de 02 Emendas Constitucionais, quais sejam: as EC nº 77 /2014 e nº 101/2019.

A partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 77, de 2014, a qual deu nova redação aos incisos II, III e VIII do § 3º do art. 142 da Constituição Federal, a vedação da possibilidade de acumulação de cargos começou a sofrer mitigação, passando a Carta Magna a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 142. (...) § 3º (....) II - o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea "c", será transferido para a reserva, nos termos da lei;

III - o militar da ativa que, de acordo com a lei, tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea "c", ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antiguidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a reserva, nos termos da lei;

(...)

VIII - aplica-se aos militares o disposto no art. 7º, incisos VIII, XII, XVII, XVIII, XIX e XXV, e no art. 37, incisos XI, XIII, XIV e XV, bem como, na forma da lei e com prevalência da atividade militar, no art. 37, inciso XVI, alínea "c";

 

Como se constata, com as alterações suso mencionadas, a cumulação de cargo a que se refere o art. 37, inciso XVI, alínea "c", passou a ser possível aos profissionais de saúde das Forças Armadas (médicos, enfermeiros, odontólogos etc.).  Gize-se que, embora a EC nº 77/2014 tenha modificado o art. 142, que trata sobre os integrantes das Forças Armadas, essa alteração também se aplica aos demais militares ex vi § 1º do art. 42 da Constituição da República. Nesse mesmo sentido, o STJ acolheu esse entendimento (RMS 34.239/GO, Rel. Ministro Sérgio Kukina, 1ºTurma, julgado em 25/10/2016, DJe 09/11/2016).

Ainda quanto ao posicionamento das cortes superiores, as 5º e 6º Turmas do Superior Tribunal de Justiça, mesmo antes da promulgação da EC nº 77/2014, já possuíam alguns precedentes com permissivo sobre a acumulação do inciso XVI, art. 37, da CF/88, aos militares profissionais de saúde, vez que não exerciam funções tipicamente militares (combatentes):

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. POLICIAL MILITAR. ATUAÇAO NA ÁREA DA SAÚDE. ACUMULAÇAO DE CARGOS CIVIL E MILITAR. POSSIBILIDADE. 1. A jurisprudência firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, diante da interpretação sistemática do art. 37, XVI, alínea "c", c/c os arts. 42, § 1º, e 142, § 3º, II, todos da Constituição Federal de 1988, admite a acumulação de dois cargos privativos na área de saúde, no âmbito das esferas civil e militar, desde que o servidor público não desenvolva, em ambos os casos, funções tipicamente militares. (...) (STJ 6ª Turma. AgRg no RMS 23.736/TO, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 21/05/2013).

 

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. ACUMULAÇÃO DE CARGOS. POLICIAL MILITAR E PROFESSOR DA REDE PÚBLICA ESTADUAL. INTEGRANTE DAS FORÇAS ARMADAS. VEDAÇÃO PREVISTA NO ART. 142, § 3º, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. É vedado aos integrantes das Forças Armadas, dentre eles os policiais militares estaduais, a cumulação de cargos, conforme dicção do art. 142, § 3º, II, da Constituição Federal. 2. Esta Corte, ao interpretar os arts. 37, II, e 142, § 3º, inciso II, da Constituição Federal, decidiu que a proibição de cumulação de cargos reflete-se apenas nos militares que possuem a função tipicamente das Forças Armadas. Por isso, entendeu que os militares profissionais da saúde estão excepcionados da regra. Precedente: RMS 22.765/RJ, Relatora Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, DJe 23/08/2010. (...) (STJ 5ª Turma. RMS 28.059/RO, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 04/10/2012)

 

No bojo destas decisões, foram mencionados importantes precedentes: RMS 32.930/SE, Rel. Ministro Humberto Martins, 2º Turma, DJe 27/9/2011; AgRg no RMS 28.234/PA, Rel. Ministro Vasco Della Giustina, Desembargador Convocado do TJ/RS, Sexta Turma, DJe 9/11/2011; RMS 22.765/RJ, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe 23/8/2010. : RE 182.811/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2º Turma, DJ 30/6/2006.

Por sua vez, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em sentido contrário, pouco antes da promulgação da EC nº 77/2014, havia proferido julgamento, negando a possibilidade de acumulação do art. 37, inciso XVI, alínea “c”:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ACUMULAÇÃO DE DOIS CARGOS DE MÉDICO POR MILITAR. IMPOSSIBILIDADE. ARTS. 42, § 1º, e 142, § 3º, II, da CONSTITUIÇÃO. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I - Com efeito, o art. 42, § 1º, combinado com o art. 142, § 3º, II, da Constituição, estabelece que o militar da ativa que tomar posse em cargo ou emprego civil permanente será transferido para a reserva. Assim, diante do caráter específico e restritivo da norma supracitada, não se justifica a interpretação extensiva conferida pelo acórdão recorrido no sentido de que o militar pode acumular dois cargos, ainda que se refiram a cargos de profissionais de saúde. Precedentes. II – Agravo regimental a que se nega provimento. (STF 2ª Turma. RE 741304 AgR, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 03/12/2013)

 

Especificamente sobre a controvérsia, outros julgados do STF já haviam mesmo entendimento, como o RE 539.579/MG e RE 560.235/SP, Rel. Min. Ellen Gracie; RE 310.235/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso; RE 592.207/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski

No entanto, com a edição da EC nº 77/2014, foram superados quaisquer entendimentos jurisprudenciais em sentido contrários à sua redação. Cite-se alguns julgados após a edição da citada Emenda Constitucional, em que os autores acumulavam cargos públicos de profissionais de saúde com profissões regulamentadas e que o STJ reputou legítima essa acumulação, à luz da Carta Magna, nova redação:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ACUMULAÇÃO DE CARGOS PÚBLICOS PRIVATIVOS DE MÉDICO. MILITAR ESTADUAL (CORPO DE BOMBEIROS MILITAR DO ESTADO DE GOIÁS) E CIVIL (HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DE GOIÁS). EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 77⁄2014. PREVISÃO EXPRESSA. 1. A jurisprudência desta Corte admite a acumulação de cargos privativos de médico por militares. Precedentes. 2. A Emenda Constitucional n.° 77⁄2014 alterou a redação do inciso II do § 3º do art. 142 da Constituição Federal para permitir, expressamente, a acumulação, por militares, de dois cargos públicos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas. (...) (STJ- RMS 34.239⁄GO, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25⁄10⁄2016, DJe 09⁄11⁄2016) (grifei)

 

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. ACUMULAÇÃO DE CARGOS. MILITAR POSSIBILIDADE. 1. O Superior Tribunal de Justiça admite a acumulação de dois cargos privativos na área de saúde, no âmbito das esferas civil e militar, desde que o servidor público não desempenhe as funções tipicamente exigidas para a atividade castrense, e sim atribuições inerentes a profissões civis, diante da interpretação sistemática do art. 37, XVI, alínea c, c/c os arts. 42, § 1º, e 142, § 3º, II, da Constituição de 1988. 2. Agravo Interno não provido. (STJ - AgInt no REsp: 1698599 RJ 2017/0211022-0, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Julgamento: 20/03/2018, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/11/2018)

 

Mais recentemente, por ocasião da Emenda Constitucional nº 101, de 2019, novamente o texto constitucional sofreu alterações que introduziram importantes mudanças na temática ora discutida, vez que acrescentou um parágrafo ao art. 42 da Constituição Federal, estendendo todas as alíneas do inciso XVI do art. 37 aos militares estaduais e do Distrito Federal e Territórios, e não somente a alínea “c” deste mesmo artigo, como havia feito a EC nº 77/2014. A redação do novel dispositivo é a que segue:

Art. 42 (...)

§ 3º Aplica-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios o disposto no art. 37, inciso XVI, com prevalência da atividade militar.  (Incluído pela Emenda Constitucional nº 101, de 2019)

 

Extrai-se, ainda, do § 3º do art. 42 da CF/88, ora inserido pela EC nº 101/2019, que tal permissão de acumulação lícita de cargos públicos não foi extensiva aos militares das Forças Armadas, sendo, portanto, exclusivo dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. Como é cediço, os militares das Forças Armadas possuem regramento próprio no art. 142 da CF/88, sendo inaplicável as disposições do art. 42.

Frise-se, por oportuno, que a acumulação de cargos aos militares estaduais somente é permitida se houver compatibilidade de horários, porém, sempre com prevalência da atividade militar, como bem explicita a parte final da redação do § 3º, do art. 42 da CF/88. Outra situação decorrente do acúmulo lícito de cargos públicos é que o militar estadual poderá receber acima do teto se considerarmos seus ganhos globais, uma vez que o limite deverá ser considerado separadamente para cada um dos vínculos. Sobre a temática, como já mencionado, o STJ (AgRg no RMS 45.937/DF, 1º Turma) e o STF têm mesmo entendimento (RE 612975/MT, RE 602043/MT, Plenário).

Em suma, no atual regramento constitucional, quanto à temática de acumulação de cargos públicos tratada no inciso XVI do art. 37, aos militares estaduais, do Distrito Federal e Território, são lícitas: as hipóteses das alíneas “a” (dois cargos de professor), “b” (um cargo de professor com outro técnico ou científico) e “c” (“dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas”); ao seu turno, aos militares das Forças Armadas tão somente é permitida a hipótese de acumulação da alínea “c” do inciso XVI do art. 37.

 


3. Conclusão

 

Diante do exposto, concluiu-se que, por força da redação do constituinte originário da Constituição Federal de 1988, os militares estavam incluídos, sem exceções, à regra da vedação à acumulação de cargos públicos. Porém, incialmente, com a introdução da EC nº 77/2014 (aplicável a todos os militares), e, posteriormente com a promulgação da EC nº 101/2019 (inaplicável aos militares federais), a regra da acumulação de cargos públicos a esta categoria foi mitigada, ante as hipóteses permissivas trazidas pelas respectivas alterações.

Mesmo antes disso, algumas jurisprudências das cortes superiores, em análise sistemática dos dispositivos constitucionais, já reconheciam a possibilidade da acumulação, em suas decisões, para aqueles profissionais que não exerciam funções tipicamente militares, admitindo a acumulação de dois cargos privativos na área de saúde.

Assim, o atual cenário constitucional brasileiro, quanto à possibilidade de acumulação lícita de cargos públicos tratada no inciso XVI do art. 37, é que, aos militares estaduais, do Distrito Federal e Territórios, é permitida a acumulação prevista nas hipóteses contidas nas alíneas “a” (dois cargos de professor), “b” (um cargo de professor com outro técnico ou científico) e “c” (“dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas”); e, aos militares federais, somente esta última. Tais hipóteses devem ser sempre interpretadas restritivamente, haja vista que, repise-se, a regra é a proibição de acumulação remunerada de cargos públicos.

 


REFERÊNCIAS 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 16 dez. 2019.

 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo. 21.ed. São Paulo: Atlas, 2008.

 

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. 

 

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso De Direito Administrativo Brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

 

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 32. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2016.

 

PAULO, Vicente; Alexandrino Marcelo. Direito Constitucional. 15. ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro. São Paulo: Método: 2016.

 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Jurisprudência do STJ. <https://scon.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 25 nov. 2019.

 

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 13 dez. 2019.

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Sobre o autor
Cleyton Cruz

Bacharel em Direito. Bacharel em Segurança Pública e do Trabalho. Especialista em Direito Administrativo e Licitações. Especialista em Gestão Pública Municipal. Especialista em Direito Militar. Mestre em Defesa e Segurança Civil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Cleyton. Acumulação de cargos públicos sob a perspectiva dos militares:: uma análise à luz da Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6187, 9 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82852. Acesso em: 19 abr. 2024.

Mais informações

Artigo Científico apresentado à Universidade Candido Mendes - UCAM, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Direito Constitucional. Programa do Núcleo de Pesquisas Jurídicas de Imperatriz (NUJEPI)

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