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Aborto humanitário: uma análise à luz da Constituição

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10/06/2020 às 14:55
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CAPÍTULO 2. A PROTEÇÃO À VIDA NO CÓDIGO PENAL

2.1. Crimes contra a vida: uma breve análise

  O Código Penal brasileiro foi instituído pela Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, e permanece vigente até a data da publicação deste estudo. A parte geral do referido diploma, que define conceitos, regras e princípios gerais para a aplicação da lei penal, foi alterada, em sua totalidade, pela Lei nº. 7.209, de 11 de julho de 1984. Já a parte especial, que define os crimes em espécie e estipula suas respectivas sanções, sofreu somente alterações pontuais, com a exclusão de alguns crimes e acréscimo de outros, sem maiores reformulações.

 Conforme mencionado no capítulo anterior, o capítulo I do título I da parte especial do nosso Código Penal dispõe sobre os crimes contra a vida. Ao criminalizar as condutas ali previstas, fica claro que o bem jurídico que se quer proteger é a vida humana. Dessa forma, a lei penal efetiva a proteção ao bem jurídico mais valioso garantido pela Constituição Federal de 1988.

  Nesse sentido, ensinam Costa Machado e David Teixeira de Azevedo:

O primeiro bem jurídico relacionado à pessoa humana a receber tutela do direito penal é a vida humana, reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência como o bem de maior valor no ordenamento jurídico. (MACHADO e AZEVEDO, 2016, p.181)

Da leitura da lição acima reproduzida, fica evidente, novamente, que a vida é o bem de maior valor no nosso ordenamento, motivo pelo qual o Código Penal dedica o primeiro capítulo de sua parte especial aos crimes cometidos contra este bem jurídico, buscando, dessa forma, conferir a máxima proteção possível à missão conferida pelo artigo 5º. da Constituição da República.

O tema central de nosso trabalho, o aborto humanitário, encontra-se previsto justamente no capítulo primeiro do título I da parte especial do Código Penal, o que nos permite concluir, desde já, que o nascituro, que é aquele que ainda está por nascer, também é destinatário da proteção constitucional à vida.

Porém, antes de tratarmos efetivamente desse tipo penal, é importante fazermos uma breve exposição dos demais crimes que o diploma penal elencou como atentatórios à vida humana. Vejamos agora.

2.1.1. Homicídio.

O delito de homicídio está previsto no artigo 121 do Código Penal, que o define de forma extremamente objetiva: “Matar alguém. Pena – reclusão de 6 a 20 anos.” É o chamado homicídio simples. Temos aí a proteção à vida humana de forma genérica. Qualquer pessoa que matar outra, via de regra, pratica o tipo penal previsto nesse artigo.

No parágrafo 1º do artigo 121, temos as hipóteses de diminuição de pena no delito de homicídio, quando o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima. Nesses casos, a pena poderá ser reduzida de um sexto a um terço. Ou seja, mesmo que haja algum motivo especial que tenha levado o agente a praticar homicídio, o delito continua sendo punido, ainda que de forma mais branda, pois a vida humana é bem jurídico inviolável.

O parágrafo 2º do artigo 121 dispõe sobre a forma qualificada de homicídio, que tem previsão de pena maior do que a da modalidade simples, em razão do motivo pelo qual o agente pratica a conduta (mediante recompensa ou por razão fútil ou torpe – incisos I e II), do meio empregado na ação (veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura, emboscada, dissimulação, dificultação da defesa do ofendido ou outro meio cruel ou que possa resultar perigo comum – incisos III e IV), da finalidade do crime (para assegurar a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro delito – inciso V), ou da condição pessoal da vítima (no caso de crimes cometidos contra mulher no âmbito da relação doméstica, vede tópico posterior, e na hipótese de crimes contra agentes da segurança pública e seus respectivos familiares – incisos VI e VII). Para o homicídio qualificado, o legislador estipulou pena de 12 a 30 anos.

Já no parágrafo 3º, temos o instituto do homicídio culposo, quando o agente não tem a intenção de matar. Nessa modalidade, a pena prevista é de detenção, de um a três anos. Notem que, mesmo que o homicida não tenha nenhuma intenção de cometer o delito, há previsão legal de pena. É a legislação penal demonstrando, mais uma vez, a inviolabilidade do direito à vida

  2.1.1.2. Feminicídio.

Retornando às hipóteses de crime qualificado, previstas no parágrafo 2º do artigo 121, compete ressaltar que a Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015, acrescentou uma nova qualificadora, referente a condição feminina da vítima, instituindo o chamado delito de feminicídio.

A referida legislação incluiu o inciso VI ao parágrafo 2º do artigo 121, definindo como crime qualificado aquele que for praticado contra a mulher, por razões da condição de sexo feminino. Nesse caso, a pena também será de reclusão de 12 a 30 anos.

Essa nova qualificadora é fruto da tendência, cada vez mais crescente, de aumento da proteção jurídica da mulher, buscando coibir abusos cometidos no ambiente doméstico, movimento que se iniciou com a Lei de Violência Doméstica (Lei 11.340/2006), popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, e culminou na recente alteração do Código Penal.

A intenção do legislador, com esta alteração, é penalizar com maior rigor o crime cometido pelo homem que se vale da privacidade do lar para praticar condutas cruéis contra sua companheira, visto que, ao longo dos tempos, atos de violência doméstica sempre ocorreram com uma triste frequência em nosso país.

Cumpre destacar que parte da doutrina questiona a constitucionalidade desta alteração, visto que estabelece uma desigualdade de tratamento entre homens e mulheres que são vítimas de homicídios cometidos no ambiente doméstico. No entanto, para o fim que pretende este trabalho, é irrelevante discorrer a este respeito, bastando destacar que o feminicídio é mais uma forma prevista no ordenamento para tutelar o direito constitucional a inviolabilidade da vida humana.

2.1.2 Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio

 Segundo disposto no artigo 122 do Código Penal, é crime a seguinte conduta: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça. Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.”

Nessa situação, o Estado atua no sentindo de impedir que uma pessoa elimine a própria vida, criminalizando a conduta de quem, de alguma forma, contribuir para isso. Todo aquele que induzir, instigar ou auxiliar de qualquer forma alguém a atentar contra a própria vida incorre prática delituosa prevista no artigo 122 e será criminalmente processado, pois a vida humana é bem jurídico indisponível, constitucionalmente garantido.

A legislação penal não prevê esse delito na modalidade culposa, no entanto, a doutrina entende ser possível a prática desse crime por dolo eventual, que é a modalidade de dolo em que o agente, embora não tenha a real intenção de cometer o crime, age de modo a não se importar com o resultado fático de sua conduta, como no clássico exemplo de quem dirige embriagado. Ou seja, quem pratica alguma conduta que pode levar outrem a se suicidar, incorre na prática delituosa, mesmo que não tenha agido diretamente nesse sentido. Para demonstrar isso, citaremos exemplo do jurista Cesar Roberto Bitencourt:

Nada impede que o dolo orientador da conduta do agente configure-se em sua forma eventual. A doutrina procura citar alguns exemplos que, para ilustrar, invocaremos: o pai que expulsa de casa a filha desonrada, havendo fortes razões para acreditar que ele se suicidará; o marido que sevicia a esposa, conhecendo a intenção desta de vir a suicidar-se, reitera as agressões. (BITENCOURT, 2003, p. 124-125)

Segundo o exemplo da doutrina, podemos perceber que, ainda que o agente não auxilie, induza ou instigue alguém a se suicidar, se praticar qualquer conduta de modo a não se importar se dela resultar o suicídio da vítima, incorrerá na prática do tipo penal previsto no artigo 122, e será punido criminalmente, devido ao caráter inviolável da vida humana.

Para finalizarmos essa breve exposição sobre o artigo 122, compete mencionar o artigo 146, parágrafo 3º, inciso II do Código Penal, que determina que não configura crime de constrangimento ilegal a coação exercida para impedir suicídio. Ou seja, aquele que constranger alguém (mediante violência, grave ameaça ou após lhe reduzir a capacidade de resistência) a não se suicidar, não estará praticando qualquer crime, pois estará atuando no sentido de preservar a vida humana. No entanto, ninguém poderá se eximir da responsabilidade penal se praticar tal conduta para evitar que alguém pratique atos imorais, como a prostituição, por exemplo, já que aí não é a inviolabilidade da vida que está em jogo.

Nesse sentido, afirma Rogério Greco:

Assim, se alguém, mediante violência ou grave ameaça, mesmo que no intuito de ajudar a vítima, a impede de prostituir-se, estaria praticando a infração penal tipificada no art. 146 do estatuto repressivo, vale dizer, o delito de constrangimento ilegal. Ao contrário, se o agente, por exemplo, mediante o emprego de violência impede que a vítima extermine a própria vida não pratica qualquer delito pois que, nesse caso, própria lei penal entendeu por bem afastar a tipicidade desse comportamento. (GRECO, 2007, p. 201).

Dessa forma, cada vez nos fica mais claro que o legislador penal atua sempre no intuito de utilizar todos os mecanismos possíveis para garantir a máxima proteção à vida humana, admitindo até mesmo a não culpabilidade de conduta tipificada como crime se ela for cometida para salvar uma vida, conforme demonstrado nessa curta exposição sobre o delito de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Trata-se, mais uma vez, do Código Penal cumprindo a missão de preservar a inviolabilidade do principal direito garantido pela Constituição.

2.1.3 Infanticídio

  Infanticídio é o delito previsto no artigo 123 do Código Penal, que assim dispõe: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após. Pena – detenção de dois a seis anos.” Ou seja, trata-se de crime cometido contra a vida do recém nascido. O sujeito ativo, nesse caso, é a mãe sob efeito do estado puerperal. Para conceituarmos essa condição, utilizaremos da definição médica do obstetra Jorge de Rezende:

Puerpério, sobreparto ou pós-parto, é o período cronologicamente variável, de âmbito impreciso, durante o qual se desenrolam todas as manifestações involutivas e de recuperação da genitália materna havidas após o parto. Há, contemporaneamente, importantes modificações gerais, que perduram até o retorno do organismo às condições vigentes antes da prenhez. A relevância e a extensão desses processos são proporcionais ao vulto das transformações gestativas experimentadas, isto é, diretamente subordinadas à duração da gravidez. (REZENDE, 1998, p. 373).

Estamos diante, portanto, de um período em que a parturiente está acometida por fortes abalos psicológicos que acabam a levando a matar o próprio filho. O penalista Paulo José da Costa Júnior assim escreve sobre o estado puerperal e o delito de infanticídio:

A mulher, abalada pela dor obstétrica, fatigada, sacudida pela emoção, sofre um colapso do senso moral, uma liberação de instintos perversos, vindo a matar o próprio filho. (COSTA JÚNIOR, 1991, p. 18)

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Ou seja, temos uma situação em que o sujeito ativo do delito encontra-se com a capacidade psicológica abalada, não possuindo condições suficientes para distinguir o certo do errado. Sob influência desse estado, a mãe acaba eliminando a vida do próprio filho que acabara de nascer.

Devido a essa condição psicológica da parturiente, poderíamos estar diante de uma excludente de culpabilidade. No entanto, não é o que ocorre, pois ainda que haja uma deturpação do senso moral da mãe, o direito à vida do recém-nascido é inviolável e deve ser garantido pelo ordenamento jurídico. Dessa maneira, o legislador penal adotou a criminalização dessa conduta, surgindo assim o delito de infanticídio.

Assim, o estado puerperal que debilita a capacidade psicológica da mãe serve apenas para caracterizar o cometimento de um delito diverso do homicídio, com previsão de pena menor, detenção de dois a seis anos. Ainda que a pena seja menor, devido a essa debilidade emocional do sujeito ativo, a conduta é criminosa e haverá a responsabilização criminal da agente, uma vez que a vida humana é bem jurídico inviolável, seja ela do recém-nascido, da criança, do adulto, do idoso ou do nascituro, conforme será estudado a seguir.

2.1.4 Aborto

  O aborto é, indiscutivelmente, um dos crimes que mais causam polêmica na doutrina e em toda a sociedade de modo geral. Sua previsão legal encontra-se entre os artigos 124 e 128 do Código Penal brasileiro. Trataremos agora, resumidamente, sobre cada um destes artigos, para, nos capítulos seguintes, finalmente nos aprofundarmos sobre o aborto humanitário, tema central deste trabalho.

Assim dispõe o artigo 124: “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque. Pena – detenção de 1 a 3 anos”. Temos, na primeira parte desse artigo, o chamado auto-aborto, que é aquele provocado pela própria gestante. É um crime de mão própria, onde somente a gestante pode ser sujeito ativo. A grávida, segundo disposição da segunda parte do artigo, também incorre na prática delituosa ao permitir que um terceiro pratique a conduta abortiva.

Nos artigos 125 e 126, temos as hipóteses de criminalização deste terceiro que provoca o aborto na gestante. Para aquele que provoca sem o seu consentimento (art. 125), temos previsão de pena de reclusão de 3 a 10 anos. Já o que provoca com a concordância da grávida (art. 126) está sujeito à pena de reclusão de 1 a 4 anos, exceto quando a gestante for menor de 14 anos, possuir debilidade mental, ou o consentimento for dado mediante fraude, grave ameaça ou violência, hipóteses em que a pena será a mesma do artigo 125, reclusão de 3 a 10 anos, conforme disposição do parágrafo único do artigo 126.

No artigo 127, temos a forma qualificada do aborto, quando, em consequência dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal grave (pena aumentada em um terço) ou morre (pena duplicada). Já no artigo 128, temos as hipóteses onde o aborto não é passível de punição, que serão estudadas mais adiante.

Indiscutivelmente, o bem jurídico que se quer proteger ao criminalizar o aborto é a vida humana intra-uterina, a vida do nascituro. Assim sendo, o Código Penal, ao inserir este delito no rol de crimes contra a vida, deixa claro que o nascituro já é possuidor de uma vida, que deve ser preservada em todos os seus estágios de desenvolvimento dentro do útero.

Para ilustrar este pensamento, nos valeremos da brilhante definição de Nelson Hungria:

O Código, ao incriminar o aborto, não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto: interrompida a gravidez antes do seu termo normal, há crime de aborto. Qualquer que seja a fase da gravidez (desde a concepção até o início do parto, isto é, o rompimento da membrana amniótica), provocar sua interrupção é cometer o crime de aborto. (HUNGRIA, 1955, p. 281).

Temos, portanto, o Código Penal atuando no sentido de preservar o direito à vida do nascituro. Dessa forma, fica claro e inequívoco que a inviolabilidade do direito à vida garantida pela Constituição alcança não só a vida extra-uterina, mas também àquela existente dentro do útero materno.

Assim, é possível chegarmos à conclusão de que todos os crimes estudados neste capítulo têm fundamento na inviolabilidade do direito fundamental à vida, seja ela do nascituro, do recém-nascido ou de qualquer pessoa. O delito do aborto, no entanto, é cercado de diversas controversas no mundo jurídico e, em razão disso, merece ser tratado em um capítulo a parte. É o que faremos a seguir.

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Sobre o autor
Davi de Lima Pereira da Silva

Procurador-Geral do Município de Areal/RJ; Especialista em Direito Administrativo; Fundador e sócio licenciado do Escritório "Lima, Pacheco & Arruda Advogados Associados"; Pós-Graduando em Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Ambiental, Gestão Pública e Direitos Humanos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Davi Lima Pereira. Aborto humanitário: uma análise à luz da Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6188, 10 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82986. Acesso em: 24 nov. 2024.

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