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Aborto humanitário: uma análise à luz da Constituição

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10/06/2020 às 14:55
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CAPÍTULO 3. ABORTO: CRIME CONTRA A VIDA DO NASCITURO

3.1. O Nascituro: conceito e natureza jurídica

  Como já visto, o aborto é um crime praticado contra a vida do nascituro, de modo que, antes de mais nada, se faz extremamente necessário assimilarmos alguns conceitos sobre essa figura.

Segundo o ilustre professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, a palavra nascituro se origina do latim nascituru, que significa “aquele que está por nascer” ou “aquele que há de nascer”. É, portanto, aquele que foi gerado e ainda não nasceu.

O Código Civil brasileiro, em seu artigo 2º, dispõe da seguinte forma: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Assim sendo, fica claro que a lei civil define o nascituro como sujeito possuidor de direitos, mas não delimita que direitos são esses.

Apesar do diploma civil não especificar quais são os direitos garantidos ao nascituro, é perfeitamente possível afirmar que seriam os previstos na Constituição Federal, especialmente em seu artigo 5º, visto que, conforme já estudado neste trabalho, a Carta Magna é o fundamento de validade de toda norma jurídica e possui caráter orientador de todo o ordenamento, o que obriga o aplicador do direito a sempre interpretar qualquer legislação infraconstitucional à luz das disposições da lei maior.

Não obstante, a doutrina também proclama o entendimento de que o nascituro é destinatário dos direitos garantidos pela Constituição. Como exemplo, citaremos a questão do alcance do direito constitucional à vida, segundo valiosa lição do constitucionalista e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes:

A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência. O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão somente, dar-lhe o enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando um ovo ou zigoto. Assim a vida viável, portanto, começa com a nidação, quando se inicia a gravidez. Conforme adverte o biólogo Botella Lluzia, o embrião ou feto representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe. A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina. (MORAES, 2009, p. 36, grifos nossos)

Dessa forma, podemos dizer que os direitos garantidos ao nascituro pelo Código Civil seriam realmente aqueles previstos na Constituição Federal. Assim, sendo sujeito dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna, ele tem garantidos, desde sua concepção, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, conforme manda o art. 5º do diploma orientador. Esses direitos, por sua vez, deverão ser observados sob o prisma da dignidade da pessoa humana, princípio positivado no artigo primeiro da Carta Magna.

É possível percebermos no ordenamento jurídico alguns mecanismos utilizados para efetivar esses direitos do nascituro, como, por exemplo, os alimentos gravídicos concedidos à gestante, que seriam uma forma de garantir tanto o direito patrimonial daquele que está por nascer, quanto sua dignidade. Da mesma maneira, temos o direito de toda mulher grávida se submeter a acompanhamento pré-natal gratuito, obedecendo ao direito social à proteção à maternidade, previsto no artigo 6º da Constituição e efetivando para o nascituro as garantias da segurança e da igualdade dispostas no artigo 5º.

A inviolabilidade do direito à vida, por sua vez, é efetivada através do Código Penal, que criminaliza a conduta abortiva e a inclui no rol dos crimes contra a vida, garantindo, assim, mais um comando constitucional, conforme veremos detalhadamente a partir de agora.

 3.2. Aborto: algumas breves considerações

3.2.1. Conceito

 O aborto é caracterizado pela interrupção da gravidez com destruição do produto da concepção. Trata-se, portanto, da eliminação da vida intra-uterina. O Código Penal não faz menção a nenhuma etapa específica da gestação, o que nos leva a concluir que, desde a concepção até o início do parto, a conduta que atentar contra a vida do nascituro se adequará ao tipo penal do aborto.

 Vejamos o entendimento do penalista Fernando Capez:

A lei não faz distinção entre óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros meses) ou feto (a partir de 3 meses), pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer, entre a concepção e o início do parto, pois após o início do parto poderemos estar diante do delito de infanticídio ou homicídio. (CAPEZ, 2007, p. 110).

Assim, qualquer ato que viole a vida do produto da concepção antes do início do parto será considerado aborto. Após iniciado o parto, poderá ser considerado infanticídio ou homicídio, dependendo do caso concreto. Vejamos que há uma linha temporal tênue que separa o delito do aborto do homicídio: o início do trabalho de parto. Se a parturiente já tiver começado a dar a luz, mesmo que o dolo do agente seja de provocar o aborto, nesse momento ele já estará em seara de homicídio (ou infanticídio, se for a própria mãe o agente violador), o que nos leva a concluir que a intenção do legislador foi a mesma ao tipificar os delitos de homicídio, infanticídio e aborto: proteger a vida humana.

  Seguindo essa mesma linha de raciocínio, preleciona Rogério Greco:

O problema no delito de aborto é que não percebemos a dor sofrida pelo óvulo, pelo embrião ou mesmo pelo feto. Como não presenciamos, não enxergamos, não ouvimos o seu sofrimento, aceitamos a morte dele com tranqüilidade. A vida, independentemente do seu tempo, deve ser protegida. Qual a diferença entre causar a morte de um ser que possui apenas 10 dias de vida, mesmo que no útero materno, e matar outro que já conta com 10 anos de idade? Nenhuma, pois vida é vida, não importando a sua quantidade de tempo. (GRECO, 2007, p. 239).

  Dessa forma, não nos resta dúvidas de que o bem jurídico que se quer proteger é a vida humana intra-uterina, pois, ainda que existente apenas dentro do útero materno, é vida humana e, em razão disso, está protegida pelas disposições da Constituição da República.

3.2.2. Evolução histórica

Nos primórdios do direito romano, o produto da concepção não era considerado ser dotado de vida, e sim mera extensão do corpo da mulher, razão pela qual não havia previsão do delito de aborto, o que fazia com que as praticas abortivas fossem constantes. O primeiro registro da criminalização desta conduta em Roma data do reinado do imperador Septimius Severus (193-211 dC), quando o aborto passou a ser considerado crime contra os direitos do pai, por frustrar suas expectativas quanto a sua descendência, podendo ser punido inclusive com pena de morte, se praticado visando lucro.

O entendimento romano quanto à condição do ser que está por nascer só foi modificado a partir da expansão do Cristianismo, o que levou os imperadores Adriano, Constantino e Teodósio a implementarem reformas na legislação sobre o aborto, passando a considerá-lo crime contra a vida do produto da concepção, o que equiparou este delito ao do homicídio. Nesse momento, o nascituro passa a ser considerado possuidor de vida humana, assim como o ser já nascido.

Na idade média, surgiu a ideia defendida por alguns teólogos, entre eles Santo Agostinho (baseado em doutrina de Aristóteles), de que o aborto só seria crime se o feto já tivesse recebido uma alma, o que acreditavam ocorrer de 40 a 80 dias após a concepção. Era o chamado feto animado. Esse entendimento, no entanto, não era unânime entre os pensadores cristãos. São Basílio, por exemplo, defendia que o aborto fosse considerado sempre crime, independente do estágio do feto.

  Essa controvérsia durou até 1869, quando o Papa Pio IX aboliu a distinção entre feto inanimado e animado, estabelecendo a criminalização da conduta abortiva em qualquer caso. Esse posicionamento acabou por orientar a formação de diversos ordenamentos jurídicos em nações com grande influência do catolicismo. Equipara-se, portanto, o delito de aborto ao homicídio.

  Essa equiparação entre esses crimes durou até o iluminismo, quando se achou por bem aplicar uma pena menor para o delito do aborto, especialmente nas hipóteses praticadas pela gestante por motivo de honra (causa honoris). Esse entendimento ganhou vários adeptos, repercutindo de forma considerável na elaboração das legislações modernas. Notem que há apenas uma distinção de penas, não deixando, portanto, de considerar que a prática abortiva configura crime contra a vida do nascituro.

No Direito brasileiro, o Código Criminal de 1830 considerava crime o aborto praticado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante. O fornecimento de meios abortivos também era incriminado, mesmo quando o aborto não se consumava. O auto-aborto só foi tipificado no Código Penal de 1890, no entanto, com previsão de atenuante de pena quando praticado para ocultar desonra própria. Este diploma fazia ainda a distinção entre aborto com e sem expulsão do feto, atribuindo pena mais grave ao primeiro caso.

No nosso estatuto repressivo atual, temos a criminalização do auto-aborto e do aborto praticado por terceiro (com ou sem o consentimento da gestante) e independente de expulsão ou não do feto. Nosso código, aliás, segue a tendência adotada pela maioria das legislações penais contemporâneas, que consideram o nascituro como ser possuidor de vida e, em razão disso, tipificam a prática abortiva.

  Tendo em vista esses aspectos históricos, podemos perceber que a criminalização do aborto no Brasil varia de acordo com a percepção da nossa sociedade sobre a condição do ser intra-uterino. Nesse sentido, é importante destacar valiosa lição do jurista Aníbal Bruno:

À proporção que as ideias filosóficas, com os seus reflexos sociais e jurídicos, iam acentuando a importância a ser concedida ao homem em atenção a eles mesmo, mudava a opinião sobre a natureza do feto, passando da concepção de simples porção do corpo da gestante à posição de um ser autônomo, com vida própria, apenas transitoriamente ligado, pelas deficiências de uma fase de sua evolução, ao organismo materno. É como a um ser humano que as legislações penais estendem hoje a sua proteção sobre o feto. (BRUNO, 1976, p. 157).

 Ou seja, a criminalização do aborto no nosso ordenamento está sempre relacionada ao modo como a sociedade brasileira enxerga o nascituro. Ao admitirmos que o ser intra-uterino é dotado de vida humana, assim como o ser já nascido, a consequência lógica é a tipificação da prática abortiva como crime.

Em sentido oposto ao nosso, alguns sistemas jurídicos de outros países descriminalizaram a prática abortiva, como, por exemplo, os Estados Unidos, que, desde 1973, a partir do precedente firmado pela Suprema Corte no julgamento do caso Roe vs Wade, passaram a autorizar a prática abortiva em todos os seus estados.

O paradigma norte-americano se baseia na ideia de que a proibição do aborto violaria os direitos à privacidade da gestante, e, por isso, a conduta foi descriminalizada quando realizada no primeiro trimestre da gestação.

Esse entendimento, no entanto, não cabe em nosso sistema jurídico, pois, no ordenamento normativo dos Estados Unidos, percebe-se uma relativização do direito à vida que não encontra espaço no Brasil, tanto que, no sistema norte-americano, a pena de morte é aplicada em alguns estados, enquanto nossa Constituição veda esta prática, com exceção feita somente aos tempos de guerra.

Ou seja, no direito norte-americano a liberdade da mulher seria um valor jurídico com maior expressão do que a vida do nascituro, entendimento que não é acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro, embora seja defendido por algumas correntes doutrinárias e por movimentos feministas.

Nesse sentido, como o presente estudo busca realizar uma análise do sistema jurídico vigente em nosso país, a partir das regras e princípios da nossa Constituição, a menção ao sistema norte-americano é feita apenas para ilustrar, sendo irrelevante para o fim proposto neste trabalho, que busca analisar um tipo penal previsto no Código Penal Brasileiro à luz das disposições previstas na Constituição que se encontra em vigor em nosso país.

3.2.3. Sujeitos do delito e objeto jurídico

Como já vimos, o aborto pode ser provocado pela própria gestante (auto-aborto, Código Penal, artigo 124, primeira parte), por terceiro com consentimento da gestante (art. 124, segunda parte, e art. 126) ou por terceiro sem o seu consentimento (art. 125). Assim, o bem jurídico tutelado depende de cada caso, sendo certo apenas que a vida do nascituro está protegida por todos esses tipos penais. O óvulo, embrião ou feto implantado no útero materno é também o objeto material do delito, aquele sob o qual recai a conduta delitiva.

No auto-aborto, estamos diante de uma situação em que o único bem jurídico tutelado é a vida do nascituro, que é, portanto, o sujeito passivo do delito, enquanto a gestante é o único sujeito ativo possível, pois se trata de um crime de mão própria.

No aborto praticado por terceiro sem o consentimento da gestante, além da vida intra-uterina, procura-se tutelar também a integridade física e psíquica da mulher. Nesse caso, o sujeito ativo é o terceiro que executa a prática abortiva (que pode ser qualquer pessoa, o que configura crime comum), enquanto a grávida e o nascituro são sujeitos passivos.

Já no aborto praticado por terceiro com consentimento da gestante, esta e o terceiro são os sujeitos ativos, enquanto o nascituro é o único sujeito passivo. O bem jurídico tutelado nesse caso volta a ser apenas a vida humana do ser que ainda está por nascer.

Por fim, é importante destacar que, conforme prevê o artigo 127 do Código Penal (aborto qualificado), se, no abortamento provocado por terceiro (mesmo que consentido), a gestante morrer ou sofrer lesão corporal grave, ela também se torna sujeito passivo do delito.

  Vejamos ensinamento de Luiz Régis Prado:

É, pois, o nascituro portador do bem jurídico vida humana dependente. A mãe somente figurará como sujeito passivo do delito quando se atente também contra sua liberdade (aborto não consentido) ou contra a sua vida ou integridade pessoal (aborto qualificado pelo resultado), como bens jurídicos mediatos. Nos demais casos (auto-aborto/aborto consentido/aborto consensual), porém, não será a mulher, a um só tempo, sujeito ativo e passivo, pois não há crime na autolesão. (RÉGIS PRADO, 2002, p. 95).

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 Assim, conforme mencionado anteriormente, a criminalização da conduta abortiva se relaciona sempre com a percepção que uma determinada sociedade possui acerca do produto da concepção. Nosso ordenamento, claramente, considera o nascituro como ser possuidor de vida humana e, justamente em razão disso, o delito de aborto está elencado no rol de crimes contra a vida do Código Penal. Não obstante esta previsão topográfica no estatuto repressivo, ampla maioria da doutrina brasileira também comunga do mesmo entendimento, como podemos perceber na lição de Luiz Régis Prado transcrita acima.

Para ilustrar, vejamos também o entendimento de Fernando Capez:

No auto-aborto só há um bem jurídico tutelado que é o direito à vida do feto. É, portanto, a preservação da vida humana intra-uterina. No abortamento provocado por terceiro, além do direito à vida do produto da concepção, também é protegido o direito à vida e a incolumidade física e psíquica da própria gestante. (CAPEZ, 2007, p. 111, grifos nossos)

Assim, não há que se falar em outra condição para o nascituro que não a de possuidor de vida humana. Uma vida que, apesar de existente apenas no útero materno ainda, deve gozar da mesma proteção que a do ente já nascido, uma vez que o Código Penal protege ambas no mesmo capítulo, que dispõe sobre os crimes contra a vida.

Como já vimos no decorrer deste estudo, a criminalização das condutas que atentam contra a vida humana se configura como um mecanismo de garantia da inviolabilidade do direito à vida, prevista no art. 5ª da Constituição Federal. Dessa maneira, ao considerar que o nascituro goza do mesmo direito que o já nascido possui de ter sua vida preservada, a legislação penal consagra o entendimento de que a Constituição Federal garante, em seu rol de direitos individuais, o direito à vida em qualquer estágio, independente de intra ou extra-uterina.

Conforme demonstrado no início deste trabalho, a Constituição da República possui caráter norteador de todo o ordenamento jurídico e deve orientar o legislador, o intérprete e o aplicador do direito a sempre obedecerem suas disposições. É exatamente por isso que a vida humana (e agora já sabemos que não somente a do ente nascido, como também a do nascituro) se configura como direito inviolável, uma vez que sua inviolabilidade é garantida por uma cláusula pétrea da Lei Maior. É essa garantia que o Código Penal vem assegurar ao tipificar os delitos de homicídio; instigação, induzimento e auxílio a suicídio; infanticídio e aborto.

Tudo isso que defendemos nestes últimos parágrafos se confirma em brilhante manifestação de Luiz Régis Prado, que não poderíamos deixar de citar:

O direito a vida, constitucionalmente assegurado (art. 5º, caput, CF), é inviolável, e todos, sem distinção, são seus titulares. Logo, é evidente que o conceito de vida, para que possa ser compreendido em sua plenitude, compreende não somente a vida humana independente, mas também a vida humana dependente (intra-uterina). (RÉGIS PRADO, 2002, p. 94).

Tendo em vista tudo o que foi demonstrado, acrescido do entendimento de renomados juristas, é possível que afirmemos que o nascituro possui o mesmo direito à vida que o ente já nascido, em virtude da obediência que toda legislação infraconstitucional deve aos preceitos da Carta Magna. No entanto, o tipo penal aborto apresenta situações em que não há previsão de pena para o agente que o pratica. São as chamadas hipóteses de aborto legal, que serão abordadas a partir de agora.

3.3 Quando o aborto não é passível de punição

  Assim dispõe o artigo 128 do Código Penal: “Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

Segundo essa disposição, temos, no inciso I, o chamado aborto necessário ou terapêutico, enquanto o inciso II nos traz o aborto chamado pela doutrina de sentimental ou humanitário (ou ainda ético, para alguns autores). São as hipóteses onde o agente que pratica a conduta abortiva não está sujeito a pena. É o que se chama de aborto legal. Veremos agora algumas considerações sobre a primeira possibilidade.

 3.3.1 Aborto terapêutico

Conforme entende a doutrina brasileira majoritária, o aborto terapêutico se configura como uma excludente de ilicitude por estado de necessidade, pois a conduta do médico visa afastar do perigo a vida da gestante.

Vejamos o entendimento de Julio Mirabete:

No primeiro caso está previsto o aborto necessário (ou terapêutico) que, no entender da doutrina, caracteriza estado de necessidade (...) cabe ao médico decidir sobre a necessidade do aborto a fim de ser preservado o bem jurídico que a lei considera importante (a vida da mãe) em prejuízo do bem menor (a vida do feto). (MIRABETE, 2004, p. 99).

 Assim, temos um conflito entre o bem jurídico “vida da gestante” e o bem “vida do nascituro”. Segundo Mirabete, o ordenamento considerou a vida da mãe como tendo mais relevância. Também é este o posicionamento de Luiz Régis Prado, que argumenta que, como o delito do homicídio tem previsão de pena maior que o aborto, a vida já consolidada da grávida teria proteção jurídica maior que a do ser que ainda não nasceu.

O estado de necessidade encontra-se previsto no artigo 24 do Código Penal, que assim dispõe: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias não era razoável exigir-se”. Antes disso o artigo 23, inciso I, já previa o seguinte: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade.”

Assim, quando a gravidez trouxer riscos para a vida gestante, o médico estará acobertado por essa excludente de ilicitude para executar a prática abortiva, visto que estará agindo para garantir direito alheio que, de acordo com a circunstância, não era razoável exigir que fosse sacrificado.

O sacrifício do direito à vida, aliás, nunca é razoável exigir. Por essa razão, o aborto terapêutico realmente configura excludente de ilicitude por estado de necessidade. Nessa situação, o Estado opta por preservar a vida da mãe em detrimento da vida do nascituro pela simples razão de que a primeira já estava consolidada e independente, enquanto a segunda, embora seja uma vida diferente, quando existente apenas dentro do útero materno se torna extremamente dependente da saúde da mãe para sobreviver.

Não obstante, não seria razoável preservar a vida do nascituro e deixar a gestante morrer, já que, nesse cenário, nasceria uma criança sem mãe. Uma criança que, possivelmente, poderia ter problemas de saúde em razão da gravidez conturbada, e ainda teria que enfrentar as dificuldades do crescimento sem a companhia materna. Além disso, é possível também que essa mulher sacrificada tivesse outros filhos que dependessem dela, ou então pais, marido e amigos que sentiriam sua falta. Enfim, na hipótese em que somente uma das vidas poderia ser preservada, a escolha lógica do médico deve ser pela gestante. É por isso que, nessa situação, podemos afirmar que a vida da mãe se configura como um bem jurídico mais valioso que a do nascituro.

Essa escolha, no entanto, não quer dizer de forma alguma que a vida intra-uterina não tenha valor. Apenas trata-se de uma situação extrema, em que a gravidez irá ocasionar a morte da gestante, e não sabemos nem se o nascituro conseguirá sobreviver. Assim, o legislador optou pelo lógico: salvar aquela que tem mais chances de se manter viva. O aborto terapêutico garante, portanto, a inviolabilidade do direito à vida da gestante. Ou seja, é uma norma perfeitamente constitucional.

Este entendimento de que a escolha pela vida da gestante não quer dizer que a vida do nascituro seja desprovida de valor e proteção jurídica é confirmado pela doutrina, que se utiliza dos mesmos argumentos utilizados nos parágrafos anteriores para justificar a conduta abortiva. Ademais, os doutrinadores são categóricos em afirmar que o aborto deve ser a única forma de salvar a vida da mãe, sendo inadmissível a prática abortiva para evitar que a gestante venha a ter alguma complicação futura que não venha a acarretar sua morte, visto que a vida do nascituro é um bem jurídico mais importante que a saúde da grávida, por força do disposto no artigo 5º da Constituição Federal.

Para ilustrar o posicionamento doutrinário, vejamos a lição de Fernando Capez:

Observe-se que não se trata tão-somente de risco para saúde da gestante; ao médico caberá avaliar se a doença detectada acarretará ou não risco de vida para a mulher grávida. Ele, médico, deverá intervir após o parecer de dois outros colegas, devendo ser lavrada ata em três vias, sendo uma enviada ao Conselho Regional de Medicina e outro ao diretor clínico do nosocômio onde o aborto foi praticado. (CAPEZ, 2007, p. 125, grifos nossos)

Assim, vemos que não basta mero risco à saúde da gestante. O risco tem que ser de morte, e é necessário ainda o parecer de outros dois médicos, o que demonstra mais uma vez que o aborto terapêutico só deve ser utilizado em caso extremo, quando não houver outro meio de salvar a vida da mulher grávida. O médico deve, até o último instante, buscar preservar as duas vidas. Quando não houver mais possibilidade, aí sim fará o procedimento para salvar a mãe, devido a todos os motivos já elencados.

Dessa maneira, podemos afirmar que a modalidade prevista no inciso I do artigo 128 do Código Penal busca garantir a inviolabilidade do direito à vida da gestante, que corre risco devido à gravidez. Atende-se, portanto, ao mandamento constitucional do artigo 5º da Carta republicana.

A outra modalidade de aborto legal é a prevista no inciso II do mesmo artigo 128, o chamado aborto humanitário, realizado em casos de gravidez que se originam a partir de um estupro. Como podemos perceber, nessa situação a vida da gestante não está em risco. Ou seja, o bem jurídico que o ordenamento busca preservar é outro, que não a vida humana. Por ser um instituto cercado de controvérsias, merece tratamento especial, que será dado mais adiante. Antes, porém, falaremos um pouco sobre uma nova espécie de aborto, recentemente considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal: o aborto de fetos anencéfalos.

3.3.2 Aborto de fetos anencéfalos: a decisão do STF na ADPF 54/2004

Segundo a literatura médica, a anencefalia é definida como a má-formação do cérebro e do córtex do feto, havendo apenas um "resíduo" do tronco encefálico. Segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), esta anomalia provoca a morte de 65% dos bebês ainda dentro do útero materno e, quando conseguem chegar ao nascimento, há sobrevida de apenas algumas horas, ou, no máximo, alguns poucos dias.

Nesse cenário, estamos diante de uma gravidez em que não há a menor expectativa de vida para o produto da concepção, situação em que levar a gestação até o fim serviria apenas para provocar um sofrimento irreparável na gestante. Em razão disso, a CNTS ajuizou, no ano de 2004, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, provocando o Supremo Tribunal Federal a manifestar-se sobre a descriminalização da prática abortiva em situações de gestação de feto anencéfalo.

A ADPF é uma ação constitucional proposta exclusivamente perante o Supremo Tribunal Federal, que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental estabelecido pela Constituição, resultante de ato do poder publico, ou então questionar a constitucionalidade de alguma norma que, supostamente, desrespeite tal preceito.

Assim, a confederação dos trabalhadores da saúde buscou, através da ADPF 54, questionar os artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, que criminalizam a conduta abortiva e dispõe como únicas possibilidades de excludentes de ilicitude os casos de gravidez com risco de vida para a gestante e gravidez decorrente de estupro. Pleiteava a ação que o aborto do anencéfalo fosse descriminalizado, passando a ser considerado como antecipação terapêutica do parto, visto que a tipificação desta conduta como crime descumpriria os preceitos fundamentais da dignidade humana e da proteção à maternidade. No entendimento da CNTS, não há que se falar em aborto conforme o regulado na lei penal, visto que não se trata de eliminação da vida intra-uterina, uma vez que o anencéfalo não possui nenhuma expectativa de sobreviver.

Outra argumentação utilizada foi a invocação do princípio da legalidade, estampado no inciso II do artigo 5º da Constituição, que determina que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude da lei. Ora, se, conforme o alegado pela CNTS, não podemos falar em aborto quando se tratar de feto anencéfalo, visto que o aborto é um crime contra a vida e nesse cenário não há expectativa alguma de sobrevivência, não pode haver criminalização de uma conduta que não estaria prevista, uma vez que a lei penal se refere a aborto e a conduta objeto da ADPF seria antecipação terapêutica do parto, segundo entendimento dos proponentes.

Em suma, a CNTS alegava que o anencéfalo não tem condições nenhuma de sobreviver, e como o Código Penal, ao criminalizar o aborto, busca a preservação da vida humana, a interrupção da gestação de feto anencefálico não poderia de forma alguma ser considerada crime.  

Embora a ADPF tenha sido proposta em 2004, o processo teve seu julgamento iniciado apenas no dia 11 de abril de 2012, sendo encerrado no dia seguinte, com a vitória da tese levantada pela CNTS, por oito votos a dois. Na ocasião, a Corte era formada pelos Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio de Mello, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia, Rosa Maria Webber, Luiz Fux e Dias Toffoli.

A manifestação favorável de grande maioria da Corte demonstrou que o Supremo compartilha do entendimento de que o aborto de feto anencéfalo sequer pode ser considerado aborto, visto que este é um crime contra a vida e o anencefálico jamais terá vida em potencial. Assim, prevaleceu a teoria de que a interrupção da gestação em casos de anencefalia não é conduta abortiva, e sim antecipação terapêutica do parto.

O foco central do voto de todos os ministros foi o direito constitucional à vida garantido ao nascituro. Os oito que votaram a favor da tese levantada pela CNTS alegaram que a descriminalização da interrupção antecipada do parto em casos de anencefalia não viola este preceito, visto que o feto anencéfalo não tem expectativa alguma de vida e a morte ocorre em 100% dos casos, sendo a maioria dentro ainda do útero materno.

O relator do processo, ministro Marco Aurélio de Mello, considerou que “anencefalia e vida são termos antitéticos”. Segundo ele, não há conflito entre direitos fundamentais, uma vez que não há qualquer possibilidade do feto anencéfalo sobreviver fora do útero. Em seu voto, o relator sustentou que a arguição proposta pela CNTS não se refere à descriminalização do aborto, uma vez que existe uma clara distinção entre este e a antecipação de parto no caso de anencefalia. Nas palavras do ministro, “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível”. Ele destacou ainda que não se trata realmente de um nascituro, mas sim de um natimorto.

 Na mesma linha se posicionou Celso de Melo, que afirmou o seguinte: “Se não há, na hipótese, vida a ser protegida, nada justifica a restrição aos direitos da gestante”. O ministro mencionou em seu voto a Lei 9.434/97 e a Resolução 1.752/97 do Conselho Federal de Medicina, que consideram a morte do ser humano como o momento em que se encerra completamente sua atividade cerebral, ou seja, a morte encefálica. Segundo ele, seria perfeitamente possível fazer uma analogia no sentido de afirmar que o anencéfalo não é um ser humano vivo, pois não possui cérebro e jamais desenvolverá atividade cerebral. Dessa maneira, não existe crime de aborto possível, pois este é um delito contra a vida e, segundo suas palavras, “se não há vida a ser protegida, não há tipicidade”.

Seguindo a mesma tendência, a ministra Rosa Maria Weber afirmou que a anencefalia não é compatível com as características de compreensão de vida para o Direito e por isso a interrupção de gravidez de feto anencéfalo não pode ser considerada aborto, visto que não é crime contra a vida. A ministra, assim como Celso de Mello, fez alusão à questão da falta de atividade cerebral do feto, relembrando o conceito de morte para o Conselho Federal de Medicina. Carmem Lúcia, por seu turno, fez a seguinte afirmação: “Considero que na democracia a vida impõe respeito. Neste caso, o feto não tem perspectiva de vida e, de toda sorte, há outras vidas que dependem, exatamente, da decisão que possa ser tomada livremente por esta família [mãe, pai] no sentido de garantir a continuidade livre de uma vida digna”.

E essa foi a tendência da maioria dos ministros. Os únicos a votarem contra o requerido pela CNTS foram Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso. O primeiro, argumentou que o Supremo não pode criar uma nova possibilidade jurídica, uma vez que isto é atribuição do legislativo. Já o segundo, defendeu a tese que o anencéfalo também é sujeito de direitos, e, por isso, destinatário do direito constitucional à vida. Segundo suas palavras, “A vida não é um conceito artificial criado pelo ordenamento jurídico para efeitos operacionais. A vida e a morte são fenômenos pré-jurídicos das quais o direito se apropria para determinado fim”.

No mais, Luiz Fux, Ayres Britto e Joaquim Barbosa votaram favoravelmente a tese da CNTS, afirmando que não se trata de aborto, e sim de interrupção antecipada do parto, visto que o anencéfalo não tem chance alguma de ter vida viável. Gilmar Mendes também se posicionou a favor da descriminalização da conduta, no entanto entendeu que se trata de aborto sim, porém deve ser enquadrado como hipótese de excludente de ilicitude. Assim foi construído o placar de 8 a 2. O ministro Dias Toffoli não votou, pois se declarou impedido em razão de ter trabalhado no parecer da Advocacia-Geral da União em favor do pleiteado, na época em que era o advogado-geral.

Outro ponto que merece destaque neste julgamento é a sustentação do então advogado Luís Roberto Barroso, atual Ministro do Supremo e patrono da CNTS naquele feito. Na ocasião, Barroso que afirmou não se tratar de caso de aborto, uma vez que este tipo penal pressupõe vida, o que é impossível em casos de ancenfalia. Nesse cenário, só estão em jogo os direitos fundamentais da gestante. Segundo suas palavras, “A mulher não sairá da maternidade com um berço. Sairá da maternidade com um pequeno caixão. E terá de tomar remédios para cessar o leite que produziu para ninguém. É uma tortura psicológica”. Ele afirmou ainda que todas as autoridades médicas garantem que o diagnóstico de anencefalia é 100% certo e a letalidade ocorre em 100% dos casos, conforme documentos anexados aquele processo.

Ou seja, todo o julgamento se pautou pela questão do direito constitucional à vida. A tese levantada pela CNTS foi de que não há vida viável para o nascituro, e foi essa a argumentação de todos os ministros que votaram a favor da descriminalização. O Código Penal protege a vida, é um verdadeiro mecanismo de efetivação deste direito fundamental positivado no 5º artigo da Lei Maior. Assim, não estando esse bem tão valioso em jogo, não há porque haver incidência do instituto do aborto, que, conforme regula o estatuto repressivo, é crime contra a vida humana.

Para alguns ministros, este foi o julgamento mais importante da história da Corte. Um julgamento que, ao descriminalizar a interrupção antecipada do parto em casos de fetos anencéfalos, reafirmou para toda a sociedade que a Constituição Federal e todo o ordenamento que por ela é comandado protegem a vida humana, que, nesse caso, não estava em jogo. O Supremo, na verdade, não criou uma nova excludente de ilicitude para o aborto, e sim confirmou que este é um crime contra a vida, e como não há vida a ser protegida em casos de anencefalia, a antecipação do fim da gestação não pode ser definida como conduta criminosa.

Já conhecemos, portanto, duas possibilidades em que a gravidez pode ser interrompida antes do termo final sem que haja punição para o agente que praticou o procedimento: o aborto terapêutico, quando a gestação traz risco de morte para a gestante, e os casos de fetos anencéfalos, porque nessa situação não há vida a ser protegida (logo, não há aborto). Veremos a partir de agora a outra hipótese prevista em nosso ordenamento jurídico: o aborto humanitário, tema central deste trabalho.

3.3.3. Aborto humanitário

Previsto no inciso II do artigo 128 do Código Penal, o aborto humanitário também é chamado pela doutrina de sentimental ou ético. É a possibilidade da realização de aborto sem punição quando a gravidez se origina a partir de um estupro. É mister que o procedimento seja realizado por médico e precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal, nos casos de incapacidade.

Neste dispositivo, o legislador buscou preservar a gestante de ter que levar adiante uma gestação oriunda de uma violência por ela sofrida. Para a maioria da doutrina, trata-se de uma norma penal não incriminadora excepcional, o que impede a utilização de analogia. Ou seja, o inciso traz requisitos que são de observância obrigatória. Não pode, por exemplo, a própria mulher estuprada praticar o aborto, pois estaria incorrendo na conduta criminosa descrita no artigo 124 da lei penal. Portanto, para os doutrinadores filiados a essa corrente, é indispensável que a prática abortiva seja realizada pelo médico. Como exemplo de adeptos deste entendimento, citaremos o posicionamento de José Frederico Marques:

Aceita que foi, porém, a impunidade dessa forma de aborto, deve-se aplicar a lei, no que diz respeito às exigências nela contidas, com o mais absoluto rigor, só admitindo a licitude da ação, quando preenchidos, irrestritamente, os pressupostos exarados na norma permissiva. Em primeiro lugar, nem a gestante, e muito menos parteiras ou pessoas sem habilitação profissional, podem provocar o aborto para interromper gestação oriunda de estupro. Em segundo lugar, indeclinável é o consentimento da gestante ou de seu representante legal, como antecedente ou prius da operação abortiva. Por fim, indispensável é que o médico tenha elementos seguros sobre a existência do estupro. Faltando um desses requisitos, que seja, o aborto será criminoso. (MARQUES, 1999, p. 219).

Em sentido contrário, temos o entendimento de Rogério Greco, que defende ser possível a realização da conduta por outra pessoa que não o médico, sem que haja responsabilidade criminal. Em sua opinião, é perfeitamente cabível a aplicação de analogia in bonam partem no sentindo de excluir a ilicitude de alguns agentes que venham a praticar o aborto em uma mulher estuprada, quando se tratar de situação extrema. Vejamos exemplo mencionado pelo ilustre autor:

Imagine-se a seguinte hipótese: uma mulher que reside em uma aldeia de difícil acesso, no interior da floresta amazônica, por exemplo, é vítima de um delito de estupro. Não tendo condições de sair de sua aldeia, tampouco existindo possibilidade de receber, em sua residência, a visita de um médico, solicita à parteira da região que realize o aborto, depois de narrar-lhe os fatos que a motivaram ao ato extremo. Pergunta-se: Não estaria também a parteira acobertada pelo inciso II do art. 128 do Código Penal, ou, em decorrência do fato de não haver médicos disponíveis na região, a gestante, por esse motivo, deveria levar sua gravidez a termo, contrariamente à sua vontade? Entendemos, aqui, perfeitamente admissível a analogia in bonam partem, isentando a parteira de qualquer responsabilidade penal. (GRECO, 2007, p. 257)

Ou seja, para Greco é possível, apenas em casos extremos, que outra pessoa diferente do médico realize o aborto. No entanto, a corrente majoritária compartilha do mesmo entendimento que José Frederico Marques: o aborto humanitário é norma penal não-incriminadora excepcional, e por isso não podemos falar em analogia, apenas cumprir os requisitos legais.

Se há entendimentos contrários quanto à obrigatoriedade da conduta ser realizada unicamente por médico, no tocante ao segundo requisito previsto no inciso, referente consentimento da gestante ou de seu representante legal, não há quaisquer controvérsias. Toda a doutrina se manifesta no mesmo sentido: o consentimento é essencial para que o médico possa praticar a conduta abortiva.

Não são raras as hipóteses em que a gestante, mesmo tendo sido estuprada, opta por levar a gravidez até o final. Em muitos casos, o amor por esse filho acaba fazendo a mãe superar o trauma pela violência sofrida. Por outro lado, também não é incomum que a gestante queira realizar o aborto, por entender que não teria condições psicológicas para suportar a gestação. Por essa razão, é de suma importância que essa mulher manifeste sua opinião quanto à interrupção ou não da gravidez. Não pode, de maneira nenhuma, o médico praticar a conduta abortiva sem autorização, pois incorrerá na prática do crime previsto no artigo 125 do Código Penal e estará sujeito a pena de reclusão de 3 a 10 anos.

O consentimento é, portanto, sempre necessário. Quando a gestante for incapaz, quem deverá autorizar a prática do procedimento é seu representante legal. Acerca dessa possibilidade, a doutrina costuma indagar o que fazer quando uma menina incapaz em razão de sua idade deseja prosseguir com a gravidez, enquanto seu representante quer o aborto. Embora haja algumas opiniões contrárias, a maioria dos doutrinadores entende que deve prevalecer o raciocínio pela vida do feto, uma vez que, nesse caso, a própria gestante assume que os danos psicológicos gerados em razão do estupro não são suficientes para justificar a interrupção da gravidez. Assim, segundo Rogério Greco, o consentimento do representante legal deve ser interpretado apenas como uma forma de legitimar a vontade já manifestada pela grávida.

Ainda sobre o consentimento, há na doutrina quem defenda que, embora a autorização seja condição essencial para a realização do aborto, ela não é justificativa jurídica suficiente para excluir a ilicitude da conduta do médico. É essa a posição sustentada por Luis Régis Prado, que não poderíamos deixar de expor:

Em que pese, porém, a exigência expressa do consentimento da gestante ou de seu representante legal para a realização do aborto sentimental ou humanitário, cabe advertir que a exclusão de ilicitude pelo consentimento do ofendido somente pode operar nos delitos em que o único titular do bem ou interesse juridicamente protegido é a pessoa que aquiesce e que pode livremente dispor. Embora o legislador tenha conferido relevância à liberdade de autodeterminação da mulher, o consentimento da gestante não conduz à exclusão da ilicitude do aborto provocado pelo médico, já que essa conduta implica a lesão de um bem jurídico de que ela não é titular e do qual, de consequência, não pode livremente dispor. Com efeito, é o nascituro o titular do bem jurídico tutelado (vida) e, ante a absoluta impossibilidade de obtenção de seu consentimento, não há que se cogitar da exclusão da ilicitude da conduta do médico com base em tal causa de justificação (consentimento de ofendido). (RÉGIS PRADO, 2002, p. 107)

Assim, Régis Prado sustenta que o consentimento da gestante, embora seja requisito indispensável, não pode por si só justificar a exclusão da ilicitude, pois a mulher não é detentora da vida do nascituro. É o mesmo posicionamento defendido por Aníbal Bruno:

A gestante não é o titular do bem jurídico protegido pela incriminação do aborto. O seu consentimento não pode mesmo ser objeto de apreciação para a justificação dessa espécie punível, tanto que uma das suas formas é aquela em que o agente é a própria gestante. (BRUNO, 1976, p. 165)

  Ou seja, se o bem jurídico que a lei penal busca preservar ao incriminar a conduta do aborto é justamente a vida do nascituro, não é razoável que a simples autorização da gestante seja suficiente para permitir a eliminação desta vida. Dessa maneira, se faz de extrema necessidade que haja comprovação que realmente houve estupro, o que não precisa necessariamente emanar de sentença condenatória do estuprador ou então de autorização judicial, podendo ser demonstrada através de boletim de ocorrência, declaração ou outros meios.

Essa comprovação, no entanto, deve ser oriunda de elementos sérios e inequívocos, não podendo haver qualquer dúvida quanto à existência do crime sexual. Quando os médicos não se sentirem seguros sobre a ocorrência do delito de estupro, aí se fará necessário que a gestante busque em juízo autorização para a realização do aborto. Vejamos, como exemplo, jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

PEDIDO DE ABORTO. ESTUPRO. VIOLÊNCIA INDEMONSTRADA. DIREITO DO FETO À VIDA. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL. DIREITO NATURAL. Diante da ausência de elementos seguros de convicção acerca da ocorrência de violência sexual, não se mostra recomendável nem indicada a interrupção da gravidez pretendida, visto que maiores seriam os malefícios. Destaco que merece maior proteção o interesse do nascituro em viver, conforme o art. 227 da CF. O fato de existir e de permanecer vivo, enquanto as funções biológicas permitirem constitui direito natural inalienável de todo o ser humano e, em si mesmo, o ponto de partida para todos os demais direitos que o ordenamento jurídico possa conceber. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70001010446, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 03/05/2000)

Ou seja, os elementos apresentados sobre a ocorrência do estupro não podem permitir qualquer dúvida sobre sua veracidade, sob pena de impossibilidade de realização do procedimento abortivo, conforme se depreende da decisão acima transcrita. Apenas se estiver comprovado, de forma inequívoca, que realmente houve a violência sexual, o Estado permitirá que a gravidez seja interrompida mediante intervenção médica. Busca-se aí preservar a integridade psíquica e emocional da gestante, com a permissão para que seja eliminada a vida do feto.

Assim, no aborto humanitário, estamos diante de uma hipótese em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida do nascituro para garantir a dignidade de sua mãe. No aborto terapêutico, vimos que se confrontam bens jurídicos iguais (vida da gestante e vida do nascituro) e o ordenamento opta por garantir a vida que, pelas circunstâncias, seria mais razoável preservar. Já na outra hipótese de interrupção antecipada de gravidez sem punição (casos de anencefalia), o Supremo entendeu que não há vida a ser protegida. Ou seja, o aborto humanitário é a única possibilidade em que o direito pátrio permite que a vida seja violada para preservar um bem jurídico menor, o que torna esse instituto muito mais complexo que os demais. Em razão disso, nos aprofundaremos mais sobre essa espécie de aborto no capítulo seguinte.

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Sobre o autor
Davi de Lima Pereira da Silva

Procurador-Geral do Município de Areal/RJ; Especialista em Direito Administrativo; Fundador e sócio licenciado do Escritório "Lima, Pacheco & Arruda Advogados Associados"; Pós-Graduando em Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Ambiental, Gestão Pública e Direitos Humanos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Davi Lima Pereira. Aborto humanitário: uma análise à luz da Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6188, 10 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82986. Acesso em: 29 mar. 2024.

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