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Aborto humanitário: uma análise à luz da Constituição

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10/06/2020 às 14:55
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CAPÍTULO 4. O ABORTO HUMANITÁRIO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO

4.1 Estado de necessidade ou inexigibilidade de outra conduta?

  4.1.1 Estado de necessidade

Ao estudarmos o instituto do aborto terapêutico, previsto no inciso I do art. 128 do Código Penal, vimos que a doutrina é unânime ao afirmar que se trata de excludente de ilicitude por estado de necessidade. No tocante ao aborto humanitário, no entanto, há controvérsias sobre a natureza jurídica. Parte da doutrina entende que essa excludente também se aplica a este instituto, porém, a corrente majoritária se manifesta de forma contrária a este entendimento.

Conforme já estudado, o artigo 24 do Código Penal dispõe que o estado de necessidade se configura quando o agente pratica o fato típico para salvar direito próprio ou alheio cujo sacrifício, nas circunstâncias, não é razoável exigir. A disposição exige ainda que o perigo seja atual, não provocado pela vontade do agente e impossível de por ele ser evitado.

Assim, vemos que o estado de necessidade é marcado pelo confronto de bens jurídicos protegidos pelo ordenamento. Cabe ao aplicador do direito ponderar qual deles deve prevalecer em relação ao outro. Podemos afirmar que essa ponderação deve ser feita a partir da indisponibilidade de cada direito, tendo como parâmetro sempre os preceitos contidos na Constituição Federal, que é a Lei orientadora de toda a ordem jurídica. Ou seja, se houver conflito entre o direito à liberdade e algum direito patrimonial, por exemplo, podemos perfeitamente afirmar que não seria razoável sacrificar à liberdade, que é direito fundamental e inviolável segundo disposição do artigo 5º da Carta Republicana. Segundo Rogério Greco, o operador do direito deverá colocar os bens jurídicos em uma espécie de balança imaginária para realizar a ponderação. Vejamos sua lição sobre essa excludente:

Quando os bens estão acondicionados nos pratos desta “balança”, inicia-se a verificação da prevalência de um sobre o outro. Surge como norteador do estado de necessidade o princípio da ponderação dos bens. Vários bens em confronto são colocados nessa balança, a exemplo da vida e do patrimônio. A partir daí, começaremos a avaliá-los, a fim de determinar sua preponderância, ou mesmo a sua igualdade de tratamento, quando tiverem o mesmo valor jurídico. (GRECO, 2010, p. 307, grifos originais)

Assim, percebemos que é necessário ponderar sobre qual bem deve prevalecer no caso concreto, para que se possa invocar a excludente do estado de necessidade. Acerca dessa ponderação, existem duas teorias que são indispensáveis que conheçamos: a teoria unitária e a teoria diferenciadora.

Segundo a teoria unitária, para estar caracterizado o estado de necessidade é preciso que o bem que se queira proteger tenha valor jurídico superior ou igual àquele que será sacrificado. É o que se chama de estado de necessidade justificante. Já a teoria diferenciadora traça uma distinção entre esse estado de necessidade justificante e uma outra modalidade: o estado de necessidade exculpante, que poderia ser alegado quando o bem sacrificado tivesse valor menor que o bem protegido. Nessa hipótese, não se afasta a ilicitude da conduta (como na modalidade justificante), mas sim a culpabilidade.

A doutrina majoritária entende que o Código Penal brasileiro, devido à redação do dispositivo contido no artigo 24, adotou a teoria unitária. Vejamos entendimento de Heleno Cláudio Fragoso:

A legislação vigente, adotando a fórmula unitária para o estado de necessidade e aludindo apenas ao sacrifício de um bem que, ‘nas circunstâncias, não era razoável exigir-se’, compreende impropriamente também o caso de bens de igual valor (é o caso do naufrago que, para reter a única tábua de salvamento, sacrifica o outro). Em tais casos subsiste a ilicitude da culpa (inexigibilidade de outra conduta), que a seu tempo examinaremos. (FRAGOSO, 1993, p. 189)

Assim, percebemos que Fragoso descarta se tratar de estado de necessidade a situação em que o bem que se quer proteger for menor que aquele que será violado. Para o jurista, assim como para a maioria da doutrina, a única possibilidade de não haver punição nesses casos é a exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta, que também abordaremos mais adiante.

Dessa maneira, podemos afirmar que a lei penal adotou a teoria unitária no que diz respeito ao estado de necessidade. Assim, essa excludente de ilicitude só estaria configurada quando o bem protegido fosse igual ou mais valioso que o bem violado. Retornando ao aborto humanitário, já vimos que se trata de uma hipótese onde a legislação admite que a vida do nascituro seja violada para preservar a honra e a integridade psíquica da mãe. Fica claro, portanto, que não se tratam de bens iguais. Tampouco aquele bem que se quer proteger é mais valioso do que o que será sacrificado. Em razão disso, a grande maioria da doutrina proclama ser impossível falar em estado de necessidade quando se tratar de aborto em casos de gravidez decorrente de estupro.

Assim sendo, o aborto humanitário não cumpre o requisito objetivo da razoabilidade estampado no artigo 24 do Código Penal, portanto, não há possibilidade de se falar em estado de necessidade, pois, como já vimos neste trabalho, a vida é o principal direito garantido pela Constituição e premissa elementar de todos os outros direitos. Por essa razão, não podemos nunca admitir que uma vida seja sacrificada para preservar outro direito que não seja também direito à vida. É este também o posicionamento defendido por Cezar Roberto Bitencourt, que assim nos ensina:

O princípio da razoabilidade nos permite afirmar, com segurança, que quando o bem sacrificado for de valor superior ao preservado, será inadmissível o reconhecimento do estado de necessidade. No entanto, como já referimos, se as circunstâncias o indicarem, a inexigibilidade de outra conduta poderá excluir a culpabilidade. (BITENCOURT, 1997 p. 279-280)

Assim como Fragoso, Bitencourt afirma que o sacrifício de bem maior para preservar bem menor impede a invocação do estado de necessidade, mas pode, dependendo das circunstâncias, configurar excludente de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta, hipótese que abordaremos em breve.

Partindo, portanto, do princípio da razoabilidade como condição essencial para a aplicação do estado de necessidade, é possível concluir que não há essa excludente de ilicitude quando se tratar de aborto humanitário, pois em hipótese alguma seria razoável sacrificar uma vida para preservar a integridade emocional.

Podemos afirmar com convicção que o direito do nascituro à vida seria mais importante que a integridade psíquica/dignidade de sua mãe em razão de tudo que já estudamos no decorrer deste trabalho. Já vimos que a vida é o principal direito garantido pelo ordenamento jurídico e premissa fundamental de todos os outros direitos. Vimos também que esse direito alcança tanto o individuo já nascido quanto a vida intra-uterina, e vimos que o legislador penal buscou, na criminalização do aborto, uma forma de efetivar esse direito inviolável. Dessa maneira, não é razoável sacrificar a vida humana para preservar outro direito menor, o que impede a invocação do estado de necessidade para excluir a ilicitude do aborto humanitário. É este o entendimento proclamado pela grande maioria da doutrina, conforme demonstra a seguinte lição de Rogério Greco:

Pela redação do art. 24 do Código Penal, somente se pode alegar o estado de necessidade quando o sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. (...) Não entendemos razoável no confronto entre a vida do ser humano e a honra da gestante estuprada optar por este último bem. (GRECO, 2007, p. 254-255)

Assim, não nos resta dúvidas de que não há estado de necessidade nas situações de aborto em casos de estupro. Conforme entendimento de todos os penalistas já citados, a situação em que se viola um bem mais valioso para preservar um bem menor só pode escapar da punibilidade se restar comprovada a inexigibilidade de outra conduta. Seria essa a natureza jurídica do aborto humanitário? É o que estudaremos agora.

 4.1.2 Inexigibilidade de conduta diversa

A inexigibilidade de conduta diversa (ou inexigibilidade de outra conduta) é um instituto caracterizado pela exclusão da culpabilidade pela prática de um fato típico, em virtude de, pelas circunstâncias, não haver possibilidade de atuar de outra maneira.

Essa excludente de culpabilidade é muito complicada de ser aferida, em razão de depender de aspectos intrínsecos de cada pessoa. Uma conduta que, para um, seria perfeitamente exigível, para outro pode ser inexigível devido a alguma condição pessoal especial.

Compete acrescentar, outrossim, que a inexigibilidade de conduta diversa é uma excludente de culpabilidade supralegal, visto que sua definição não está prevista de forma expressa no Código Penal, ao contrário das excludentes de ilicitude, como a legitima defesa e o estado de necessidade, que são conceituadas nos artigos 24 e 25 do estatuto repressivo. Assim, embora não haja definição expressa acerca desse instituto, o certo é que o ordenamento jurídico dita parâmetros a serem observados, e, a partir desses parâmetros, devem ser feitos juízos de valoração de cada caso concreto para se chegar a uma conclusão sobre a culpabilidade ou não de determinada conduta.

Este é um instituto, portanto, que atua no campo da culpabilidade, enquanto o estado de necessidade, já estudado, atua no campo da ilicitude. Quem alega inexigibilidade de conduta diversa tem plena consciência de que praticou fato tipificado como crime, no entanto busca a exclusão de sua culpabilidade em razão dos fatores que o influenciaram a agir de tal forma.

Vejamos a definição do jurista Leonardo Isaac Yarochewsky:

Sendo a exigibilidade de comportamento conforme o Direito um dos elementos da culpabilidade, a sua ausência manifestada pela inexigibilidade exclui, portanto, a culpabilidade, do mesmo modo que a inimputabilidade e a falta da consciência da ilicitude também a excluem. Assim, o agente pode praticar uma ação típica, ilícita, sem conduto ser culpável por estar amparado por uma das causas que excluem a culpabilidade, dentre elas a inexigibilidade de outra conduta. (YAROCHEWSKY, 2000, p. 46)

Assim, uma conduta criminosa pode ser justificada mediante a invocação da inexigibilidade de conduta diversa. Nesse cenário, estando comprovado que não havia mesmo a possibilidade de agir de outra forma, fica afastada a culpabilidade e não há que se falar em responsabilidade criminal.

A maioria da doutrina proclama que o aborto em casos de estupro se configura como uma situação de inexigibilidade de outra conduta, visto que seria inaceitável que o Estado obrigasse a mulher a carregar em seu ventre um feto oriundo de uma relação sexual forçada. Assim, a única conduta esperada por essa mulher seria autorizar que o médico realizasse o procedimento abortivo, não podendo haver culpabilidade diante de situação tão delicada.

É este o entendimento da grande maioria dos doutrinadores penalistas. Fernando Capez, por exemplo, afirma que o Estado não poderia obrigar a mulher a gerar um filho que é fruto de um a violência sexual, uma vez que isso lhe pode causar graves danos psicológicos. Julio Mirabete vai além e conclui que, além dos danos que a gestação por si só acarretaria, frequentemente o autor do estupro é uma pessoa degenerada e anormal, o que pode provocar problemas ligados à hereditariedade.

Por mais assustador que possa parecer o argumento de Mirabete, ele tem o intuito de deixar claro que não se pode exigir da mulher violentada outra conduta que não o aborto, assim como Capez faz ao invocar os danos psicológicos que essa gestação traria a grávida. Nelson Hungria, por sua vez, afirma que nada pode justificar que se obrigue uma mulher violentada a aceitar uma maternidade que, segundo suas palavras, seria odiosa e daria vida a um ser que lhe fará sempre lembrar do estupro.

Por fim, concluímos com Rogério Greco:

Entendemos, com a devida vênia das posições em contrário, que, no inciso II do art. 128 do Código Penal, o legislador cuidou de uma hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, não podendo exigir da gestante que sofreu a violência sexual a manutenção de sua gravidez, razão pela qual, optando-se pelo aborto, o fato será típico e ilícito, mas deixará de ser culpável (GRECO, 2010, p.399)

Assim, a mulher que engravida ao ser vítima de estupro, ao optar por interromper a gravidez, estaria, na opinião da doutrina majoritária, acobertada pela excludente de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta. Seria essa, portanto, a natureza jurídica do aborto humanitário.

No entanto, já vimos no início deste estudo que qualquer construção jurídica deve obediência aos comandos da Constituição Federal. Assim sendo, à luz dos preceitos da Carta Magna, será que esta seria realmente uma situação onde não se pode exigir outra conduta? É isso que estudaremos a partir de agora.

4.2 Uma análise à luz da Constituição Federal

 4.2.1. O instituto da Recepção e a Constituição do Estado Novo

Conforme já introduzido neste estudo, o fenômeno da recepção ocorre quando uma norma infraconstitucional, editada sob a vigência de uma Constituição que já não está mais em vigor, apresenta compatibilidade material com a Constituição atual. Nessa situação, a norma em questão permanece válida, por ter sido recepcionada. Por consequência, se a referida disposição legal for incompatível com a Carta Federal vigente, não terá ocorrido a recepção e a norma deve ser afastada do mundo jurídico.

Essa norma não recepcionada pode ser afastada simplesmente por deixar de ser aplicada, sem a necessidade da intervenção do poder judiciário, ou então através do controle judicial de constitucionalidade, que pode ocorrer pela via difusa, com a declaração de inconstitucionalidade sendo proferida por qualquer magistrado que se deparar com uma situação fática a ele submetida que enseje a aplicação da referida norma, ou pela via concentrada, quando a inconstitucionalidade é declarada pelo Supremo Tribunal Federal, no bojo de ações próprias para esse fim, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade, ambas previstas no artigo 102, inciso I, alínea “a”, da Carta Federal de 1988.

Entender o instituto da recepção é fundamental para este trabalho, visto que seu objetivo central é realizar uma análise sobre a constitucionalidade do artigo 128, inciso II, do Código Penal, que é uma legislação datada de 07 de dezembro de 1940, época em que vigorava em nosso ordenamento a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, também chamada de Constituição do Estado Novo, que vigorou até 1946.

A Constituição de 1937 foi uma carta outorgada, com claras inspirações totalitárias e sem maiores preocupações com os direitos fundamentais, conforme nos ensinam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:

Como se vê, foi uma carta outorgada, fruto de um golpe de Estado. Era Carta de inspiração fascista, de caráter marcadamente autoritário e com forte concentração de poderes nas mãos do Presidente da República. A Constituição de 1937, frequentemente chamada de “Constituição Polaca” (alusão à Constituição polonesa de 1935, que a teria inspirado), embora contivesse um rol de pretensos direitos fundamentais, não contemplava o princípio da legalidade, nem o da irretroatividade das leis. Não previa o mandado de segurança. Possibilitava a pena de morte para crimes políticos e previa a censura prévia da imprensa e demais formas de comunicação e entretenimento, dentre outras disposições restritivas inteiramente incompatíveis com um verdadeiro Estado Democrático de Direito. (PAULO e ALEXANDRINO, 2011, p.28-29, grifos nossos).

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Além da lição acima, compete destacar que, no tópico referente aos direitos e garantias individuais da Carta de 1937, não se encontrava a previsão de proteção do direito à vida, mas tão somente à liberdade, à segurança individual e à propriedade, como se percebe pela redação de seu artigo 122:

Art, 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes (...)

Ou seja, enquanto o caput do artigo 5º da atual Constituição elenca como fundamentais os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade e à segurança, o dispositivo correspondente da Constituição de 1937 não inseriu vida e igualdade neste rol, deixando claro que se tratava de um sistema normativo que não colocava a vida como principal bem jurídico a ser protegido, tanto que admitia a pena de morte para crimes políticos, algo inconcebível nos tempos atuais.  

Desse modo, considerando tratar-se de ordenamento completamente distinto do atual, que não atribua tanto valor a vida humana como agora, é natural que não tenha havido maiores preocupações com as proteções ao nascituro na ocasião de tipificar o delito do aborto, motivo pelo qual o artigo 128, inciso II, do Código Penal demonstra ser compatível com o sistema jurídico vigente em 1940, data em que o referido dispositivo entrou em vigor.

No entanto, com o advento da Constituição de 1988, toda a ordem legal preexistente precisou ser compatível com o novo ordenamento para permanecer válida. Assim, considerando que o sistema normativo instaurado em 1988 consagra a vida como principal bem jurídico tutelado pelo Direito, como demonstrado a exaustão nesse trabalho, buscamos compreender se o artigo 128, inciso II, do Código Penal foi ou não recepcionado pela Carta Vigente, o que, em breve, será esclarecido.

4.2.2. O alcance dos direitos fundamentais na Constituição de 1988

Vamos, nesse momento, relembrar alguns conceitos vistos no início deste trabalho que se fazem de extrema importância para que realizemos uma abordagem constitucional sobre o aborto humanitário, a partir de conceitos estabelecidos pela Constituição vigente

O título II da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais, que já vimos se tratar de cláusulas pétreas, visto que impossíveis de serem abolidos do ordenamento (não pode existir projeto de emenda constitucional que suprima essas disposições). Dessa maneira, não devemos ter receio algum em afirmar que os direitos fundamentais possuem um caráter diferenciado na nossa ordem jurídica.

O artigo 5º da Carta Federal elenca como fundamentais os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade e à segurança. São direitos invioláveis, conforme demonstra a redação do dispositivo. Ademais, já sabemos que a Constituição Federal é fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, devendo ser encarada como diploma orientador de todo o direito. Assim, não pode haver norma alguma que contrarie preceito constitucional, quanto mais ainda preceitos que a Lei Maior elencou como fundamentais.

O Código Penal, em seu artigo 124, tipifica como crime a realização de conduta abortiva. Esse dispositivo, por sua vez, está elencado no título referente a crimes contra a vida do estatuto repressivo. Como vimos que toda a legislação infraconstitucional busca efetivar os direitos garantidos pela constituição, é lógica a conclusão de que os direitos fundamentais previstos na Carta Magna alcançam tanto o sujeito já nascido quanto o nascituro, visto que o direito o considera como possuidor de vida, que é um direito fundamental estampado no 5º artigo da Lei Maior.

Noutro giro, o próprio Código Civil consagra a tutela jurídica do nascituro, conforme se depreende de seu artigo 2º, que põe seus direitos a salvo desde o momento de sua concepção. Como é a Constituição que orienta toda a interpretação e aplicação dos demais ramos do direito, fica claro que as disposições constitucionais fundamentais alcançam a vida intra-uterina.

Assim, será premissa das próximas abordagens que são destinatários dos direitos fundamentais tanto o já nascido quanto o nascituro.

4.2.3 Quando a lei permite a violação da vida

Já sabemos que a vida é direito fundamental inviolável, que deve ser preservado por todos os ramos do Direito. O Código Penal, dessa forma, se configura como o principal meio de garantir este direito, ao criminalizar condutas atentatórias à vida humana, conforme positivado no capítulo I do título I da parte especial do referido diploma. Entretanto, esse mesmo estatuto repressivo admite, em alguns casos, que esse direito seja violado sem haver punição para o violador. São hipóteses onde há exclusão da ilicitude da conduta ou exclusão da culpabilidade do agente.

O artigo 23 da lei penal assim dispõe: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.” São as situações de excludente de ilicitude, em que o agente pratica fato definido como crime, mas, devido às circunstâncias, a lei considera lícita a conduta e exime o sujeito de responsabilidade criminal.

Sobre o estado de necessidade, já discorremos algumas considerações. Sabemos, por exemplo, que é possível invocar essa excludente quando o bem jurídico protegido for de valor jurídico maior, ou no mínimo igual, ao bem violado. Assim, uma vida humana só poderia ser violada sob a guarita dessa excludente se fosse pra proteger outra vida humana. Respeita-se, dentro das circunstâncias, o disposto no 5º artigo da Constituição, que protege o direito à vida, visto que, no caso concreto, se salva apenas uma porque não há possibilidade de salvar as duas. Já vimos também que essa excludente é a natureza jurídica do aborto terapêutico, conduta prevista no inciso I do art. 128 do Código Penal.

A hipótese prevista no inciso III do supracitado artigo 23, que se refere a estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito, exclui a ilicitude apenas de conduta que não atentem contra a vida humana. Ninguém poderá matar alguém e invocar esta excludente, pois não existe profissional algum em nosso Estado Democrático de Direito que tenha o dever legal de matar. Vejamos, para ilustrar, trecho de decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Espírito Santo:

Não age ao abrigo da excludente do estrito cumprimento do dever legal o policial que, a título de fazer averiguação, atira na vítima pelas costas quando esta, temerosa de uma possível detenção, se afastava a correr (Rel. Desembargador José Eduardo Grandi Ribeiro: RT 644/311)

Justamente por ser o direito à vida inviolável, por força da disposição imutável do artigo 5º da Constituição, é que nosso ordenamento veda a pena de morte. Dessa forma, na nossa ordem jurídica não existe o dever legal de matar. Por essa razão, a excludente prevista no inciso III do art. 23 só incidirá sobre outros delitos, que não atentem contra a vida humana.

A outra excludente prevista no artigo 23 é a legitima defesa, assim definida pelo Código Penal em seu artigo 25: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente os meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”

Dessa forma, o agente que praticar fato definido como crime poderá se eximir da responsabilidade criminal se comprovar que agiu nas condições previstas no artigo 25. Conforme se depreende da disposição legal, a agressão que se vai repelir deve ser atual ou iminente, e os meios utilizados devem ser moderados.

Percebemos a existência do requisito objetivo “moderação”, o que quer dizer que o agente não pode se utilizar de meios desproporcionais para se defender, sob pena de responder pelo excesso, conforme disposição do parágrafo único do artigo 23, que assim determina: “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.”

Dessa definição, concluímos ser impossível alegar legitima defesa aquele que repele a agressão de maneira desproporcional. Vejamos lição do jurista Assis Toledo:

O requisito da moderação exige que aquele que se defende não permita que sua reação cresça em intensidade além do razoavelmente exigido pelas circunstâncias para fazer cessar a agressão. Se, no primeiro golpe, o agredido prostra o agressor tornando-o inofensivo, não pode prosseguir na reação até matá-lo. (ASSIS TOLEDO, 1994, p.204)

Assim, percebemos que a legítima defesa é mais uma das possibilidades em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida humana. No entanto, a redação legal é clara ao dispor que a reação à agressão não pode ser desproporcional. Assim sendo, e conforme manifestação doutrinária de Assis Toledo, podemos afirmar que o agente só poderá matar em legítima defesa se acreditar fielmente que a agressão que lhe é imposta coloca a sua vida em perigo.

Esse entendimento da doutrina também se manifesta na lição de Rogério Greco:

Raciocinemos com a legítima defesa: se alguém está sendo agredido por outrem, a lei penal faculta que atue em sua própria defesa. Para tanto, isto é, para que o agente possa afastar a ilicitude da sua conduta e ter ao seu lado a causa excludente, é preciso que atenda, rigorosamente, aos requisitos de ordem objetiva e subjetiva previstos no art. 25 do Código Penal. (GRECO, 2010, p.343)

Assim, tal qual no estado de necessidade, a legitima defesa é um instituto onde o ordenamento, em caráter excepcional, permite que a vida de uma pessoa (o agressor) seja violada sem haver punição para o agente violador (agredido inicialmente). No entanto, conforme posicionamento doutrinário demonstrado e segundo a regra inserida no parágrafo único do artigo 23 do estatuto penal, podemos afirmar que o agredido só pode matar o agressor se julgar que sua vida corre risco em razão da agressão, e se essa for a única forma de se defender, sob pena de ser responsabilizado por atuar de forma desproporcional.

Desse modo, percebemos novamente que há confronto entre bens jurídicos iguais, a vida do agredido e a vida do agressor, situação em que o ordenamento opta por preservar aquele que não deu causa à situação inicial de violência. Portanto, da mesma forma que no estado de necessidade, a ordem legal permite a violação da vida para preservar justamente o direito à vida, inviolável segundo preceito constitucional do 5º artigo da Carta Federal.

Em seara de exclusão de ilicitude, são essas as possibilidades em que a lei permite a não punição da conduta atentatória à vida. Há, ainda, as situações de exclusão de culpabilidade, em que a doutrina insere o aborto humanitário. São os casos onde se entende que, devido às circunstâncias do caso concreto, não é possível culpar o agente que praticou o ato ilícito.

A culpabilidade é definida pela doutrina como o juízo de reprovação pessoal realizado sobre uma conduta típica e ilícita praticada pelo agente, ou seja, uma conduta definida como crime pelo Código Penal. Segundo ensina Rogério Greco, esse juízo de censura deve ser realizado de forma individual, visto que cada pessoa tem seus aspectos individuais que devem ser levados em conta para aferir sua culpabilidade.

Considera-se como elementos da culpabilidade os seguintes: imputabilidade, potencial consciência sobre a ilicitude do fato, e exigibilidade de conduta diversa. Os dois primeiros requisitos se referem às condições pessoais do agente, o que quer dizer que o sujeito definido pela lei como inimputável (como os menores de 18 anos) e aquele sem condições psíquicas de entender que está praticando crime (doentes mentais, por exemplo) serão beneficiados pela exclusão da culpabilidade de suas condutas criminosas.

Já a exigibilidade de conduta diversa depende de uma avaliação que deverá conjugar aspectos pessoais do agente com as particularidades do caso concreto em questão. Segundo entende a maioria da doutrina, o aborto humanitário seria um exemplo em que resta caracterizada a inexigibilidade de outra conduta.

Dessa maneira, essa excludente de culpabilidade se diferencia das excludentes de ilicitude já estudadas, uma vez que, nesta, o bem jurídico preservado pode ser menor que o violado, enquanto naquelas vimos que isso não é possível. A Constituição Federal preceitua que o direito à vida é inviolável, o que nos leva, portanto, a indagar se seria constitucional extinguir a culpabilidade de alguém que elimine uma vida para salvar bem jurídico de menor valor. Esperamos encontrar a resposta nos próximos parágrafos.

4.2.4 O aborto humanitário contraria a Constituição?

Alexandre de Moraes, conforme já visto neste trabalho, nos ensina que o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, uma vez que é pré-requisito de todos os outros. No mesmo sentido, o professor Cleber Francisco Alves preceitua que, sem a vida, nenhum outro direito chega a existir. Esses entendimentos se fundamentam no texto do 5º artigo da Constituição Federal, que determina que a vida humana é direito inviolável, garantido a todos aqueles que residem em nosso país.

Nessa mesma linha, se posiciona André Ramos Tavares:

Prevê a Constituição Federal, no art. 5º, caput, expressamente, a inviolabilidade do direito à vida. É o mais básico de todos os direitos, no sentido de que surge como verdadeiro pré-requisito de existência dos demais direitos consagrados constitucionalmente. É, por isto o direito humano mais sagrado. (TAVARES, 2008, p.343)

Assim, por ser o topo da pirâmide jurídica e fundamento de validade de todo o direito, a Constituição se configura como o diploma orientador de todo o ordenamento jurídico, sendo vedada a existência de qualquer previsão legal contrária à Lei Maior. As leis infraconstitucionais devem, seguindo os comandos da Carta Republicana, estabelecer mecanismos que assegurem o pleno exercício dos direitos fundamentais contidos no texto constitucional.

O Código Penal, ao criminalizar as condutas atentatórias à vida humana, busca obedecer ao comando do 5º artigo da Constituição: garantir a inviolabilidade do direito à vida. Segundo entendimento já visto de Fernando Capez, um tipo penal que contrariar preceito constitucional deve ser expurgado do ordenamento jurídico.

Diante do exposto, faremos agora uma análise do artigo 128, inciso II, do Código Penal brasileiro, que determina a não punibilidade do aborto praticado em casos de gravidez decorrente de estupro. Essa disposição, batizada pela doutrina de aborto humanitário ou sentimental, teria natureza jurídica de excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa.

Podemos afirmar, sem a menor dúvida, que a violência sexual é algo monstruoso para a saúde física e psíquica da mulher. Diante de tal situação odiosa, permite o Direito que a gravidez originada desse estupro seja interrompida, mediante intervenção médica. Como ficam, no entanto, os direitos que o ordenamento jurídico garante ao nascituro? É óbvio que o Estado tem a obrigação de preservar a dignidade dessa gestante vítima de abuso, mas, como tudo na vida, essa situação também comporta outro lado: o lado da vida humana existente dentro de seu útero.

Como já vimos, o ordenamento jurídico garante direitos ao nascituro desde sua concepção, conforme se depreende do artigo 2º do Código Civil, citado há pouco. O Código Penal, por sua vez, faz nascer a presunção absoluta que o nascituro é destinatário do direito fundamental à vida, uma vez que o delito do aborto está elencado justamente no rol dos crimes contra a vida do estatuto repressivo.

A Constituição garantiu a inviolabilidade deste direito fundamental, mas não fez nenhuma menção a respeito de quando ele começa. A lei penal, no entanto, ao tipificar o aborto como crime contra a vida, deixa claro que a preservação deste preceito constitucional se inicia no útero materno. Se a prática abortiva estivesse prevista em outro título do Código Penal, talvez esse trabalho perdesse o sentido. Como não é isso que acontece, não podemos falar em outra condição para o nascituro que não a de destinatário do direito constitucional à vida, por força do disposto nas legislações civil e penal.

Sendo, portanto, destinatário deste direito fundamental, o nascituro merece de nosso ordenamento a máxima proteção possível, assim como o sujeito já nascido. Causa estranheza, então, que possa existir uma construção jurídica que permita a violação deste direito em benefício de outro que, ainda que muito importante, possui menor valor jurídico, já que o direito à vida é o mais importante de todos os direitos, como já estudamos.

No julgamento da ADPF 54, que buscava descriminalizar a interrupção antecipada do parto em casos de fetos anencéfalos, o Ministro Luiz Fux fez uma brilhante observação nesse mesmo sentido, que se torna muito valiosa para nosso trabalho. Segundo suas palavras, “causa espécie, ainda, o fato de o legislador ter previsto, no art. 128, II, do atual Código, a permissão do aborto sentimental, na qual se admite a supressão da vida de um feto sadio como forma de tutelar a saúde psíquica da mulher”.

De fato, a previsão legal do aborto humanitário é, no mínimo, juridicamente estranha. Já abordamos aqui as possibilidades onde o direito prevê a violação da vida humana, e chegamos a conclusão de que em todas elas havia, ao menos presumidamente, outra vida em jogo, o que configura conflito de bens iguais. No aborto em casos de gravidez decorrente de estupro se confrontam bens distintos, e sabemos que a vida é o principal direito garantido pelo ordenamento constitucional. De tal maneira, há fortes indícios de inconstitucionalidade dessa previsão.

A inexigibilidade de conduta diversa, natureza jurídica que a doutrina atribui ao aborto humanitário, não nos parece argumento forte o bastante para permitir a violação da vida, que é o bem maior do nosso Direito. Devido a essa graduação de bens jurídicos, é possível afirmar que um agente poderia invocar exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa apenas quando praticasse delito que não fosse atentatório à vida humana. Não nos parece razoável que matar seja à única conduta possível em qualquer caso que seja, uma vez que a vida é direito constitucional fundamental e inviolável.

 No caso específico da gravidez decorrente de estupro, entendemos que se trata de uma situação extremamente delicada, que pode acarretar sérios danos psicológicos para a gestante. No entanto, a Constituição garante a inviolabilidade da vida, a lei civil coloca o nascituro como destinatário desse direito, e o Código Penal criminaliza o aborto. O conflito de bens jurídicos é claro, mas no Direito é a Constituição que dita as regras, e a regra é a inviolabilidade da vida humana.

A doutrina que se posiciona a favor da constitucionalidade do aborto humanitário costuma invocar o princípio da dignidade humana da gestante, argumento devidamente quebrado no início deste trabalho, quando vimos que o direito à vida é premissa do princípio da dignidade. Ademais, concordamos que a dignidade da gestante será ferida por ter de suportar uma gestação originada de violência sexual, no entanto, apesar de ferida, ela ainda existirá, enquanto o nascituro teria sua dignidade aniquilada ao ter sua vida eliminada pela prática abortiva.

O professor Cleber Francisco Alves, ao comentar a dissertação de mestrado do jurista Fernando Ferreira dos Santos, faz alusão a esse enfoque sobre a dignidade da pessoa humana. Vejamos:

O autor estuda de maneira aprofundada o problema concreto do aborto, partindo da premissa de que existe um conflito entre princípios constitucionais, seja o que assegura à honra da gestante, vítima de estupro, seja o direito à vida do nascituro, ambos em última análise vinculados à dignidade da pessoa humana. Partindo para um critério de proporcionalidade, afirma que a opção do legislador pelo direito à honra da gestante implica na eliminação – pura e simples – do direito à vida do nascituro, daí porque configura solução desmedida, desajustada, excessiva, desproporcional. (ALVES, 2001, p.168, grifos nossos)

Assim, não é juridicamente possível permitir a eliminação de uma vida alegando preservação da dignidade, pois o ser violado também tem uma dignidade a ser preservada. Aliás, somente a preservação da vida pode justificar a eliminação de outra vida, pois não há bem jurídico mais valioso que este em nosso ordenamento. Ademais, no aborto humanitário a eliminação do ser vivo existente no útero tem como fundamento o crime que seu pai cometeu, o que configura uma situação absurdamente desproporcional.

Imaginemos a seguinte hipótese: Uma mulher é violentada, engravida a partir dessa violência e aborta, acobertada pela disposição do art. 128 II do Código Penal. Meses depois, ela reconhece seu agressor na rua, decide se vingar e o mata. Nessa situação não há incidência do instituto da legitima defesa, visto que não se trata de reação à agressão atual ou iminente. Também não há que se falar em estado de necessidade, pois ela não o matou para se salvar de perigo. Ou seja, não há excludente alguma da qual essa mulher possa se beneficiar, o que a fará responder pelo delito de homicídio e ser processada criminalmente. Ou seja, a lei penal não permitiria nesse caso que ela eliminasse à vida do agressor, mas permitiu a morte do nascituro, que nada teve a ver com a agressão.

Não defendemos aqui, de forma nenhuma, a pena de morte. Pelo contrário, nossa defesa é do direito à vida, por ser o principal bem jurídico garantido pela Constituição Federal. O exemplo citado teve o único intuito de mostrar a incoerência jurídica da previsão contida no artigo 128 inciso II, que, na verdade, se trata de permitir a eliminação de uma vida inocente, em razão do crime cometido pelo seu genitor.

Esse raciocínio nos leva a perceber o desrespeito à outra previsão constitucional: a do princípio da responsabilidade pessoal, positivado no inciso XLV do artigo 5º da Carta Republicana, que dispõe que nenhuma pena passará da pessoa do condenado. Vejamos lição de Rogério Greco acerca deste instituto:

Quer o princípio constitucional dizer que, quando a responsabilidade do condenado é penal, somente ele, e mais ninguém, poderá responder pela infração praticada. (GRECO, 2010, p.75)

Ou seja, o ordenamento veda que a pena ultrapasse a figura do condenado. Assim, na situação específica do aborto humanitário, o legislador acabou impondo ao nascituro pena de morte em decorrência de um crime que seu pai cometeu. Desse modo, há clara violação ao princípio da responsabilidade pessoal. O Estado tem a obrigação de punir o estuprador com todo o rigor da lei, mas não pode, de forma alguma, responsabilizar seu filho.

A doutrina que defende a constitucionalidade do aborto humanitário costuma confrontar essa tese alegando que nosso ordenamento não prevê pena de morte (salvo em casos de guerra declarada), razão pela qual não há, no caso do aborto humanitário, pena passando da pessoa do condenado. Ou seja, não há ofensa ao princípio da responsabilidade pessoal, porque morte não é pena.

Ora, estamos diante então de uma situação juridicamente mais desproporcional ainda, pois o Estado está imputando ao nascituro, em decorrência do crime cometido pelo seu pai, uma conduta mais cruel que a pena mais severa prevista em nosso ordenamento. Salvo em casos de guerra, a Constituição realmente veda a pena de morte (art. 5º XLVII “a”), o que configura a desproporcionalidade da previsão contida no art. 128 II do Código Penal, que autoriza a morte de um ser em virtude de delito que seu pai cometeu.

Não estamos neste trabalho, de forma alguma, afirmando que suportar uma gestação oriunda de um estupro seja algo simples. Muito pelo contrário, sabemos que será algo odioso e quase insuportável. No entanto, existe uma ordem jurídica estabelecida pela Constituição Federal, que não admite violação por parte de legislação infraconstitucional. Conforme já mencionamos aqui neste trabalho, a Carta Magna garante o direito à vida sem mencionar quando ela começa. É o próprio Código Penal, ao inserir o aborto no rol dos crimes contra a vida, que faz nascer a presunção absoluta que este direito inviolável começa dentro do útero materno. Entendimento este compartilhado pela maioria esmagadora da doutrina, o que inclui tanto autores penalistas quanto constitucionalistas, conforme já demonstramos nas lições de Alexandre de Moraes, Nelson Hungria, Rogério Greco e outros.

Imaginemos, então, outra hipótese: Um jovem, de 18 anos, observa seu padrasto violentar, todos os dias, sua irmã, de apenas 12 anos. Não suportando mais a situação, ele se aproveita de um momento em que o estuprador está dormindo e o mata. O que acontecerá? Esse jovem responderá, assim como a mulher estuprada do exemplo anterior, pelo delito de homicídio, pois a vida humana do criminoso que ele matou é direito inviolável, constitucionalmente garantido pelo artigo 5º da Carta Magna. Se a lei penal garante a indisponibilidade da vida do ser humano em sua face mais horrenda, como pode desrespeitar a Constituição para permitir a morte de alguém que ainda nem teve chance de cometer delito algum?

A vida é a premissa de todos os direitos, e dela decorre o direito do nascituro existir, nascer, crescer, e viver todas as fases dessa existência. O filho do estuprador já possui vida e, por consequência, é destinatário de todos os direitos que lhe garantam o direito de viver. Por ter vida, ele já existe dentro do útero materno, cabendo ao Estado garantir que seja respeitado seu direito de existir também fora do útero, como manda a Constituição.

Com a maestria que lhe é costumeira, José Afonso da Silva assim nos ensina sobre o direito de existir:

Consiste no direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. (SILVA, 1998, p.201)

Assim, não nos parece ser possível vislumbrar qualquer possibilidade de constitucionalidade no aborto humanitário. O nascituro, a partir do momento em que a lei o considera como ser dotado de vida, se torna possuidor de todos os outros direitos, razão pela qual o ordenamento jurídico deve garantir sua total proteção, obedecendo ao comando da Constituição Federal. É justamente por isso que o Código Penal criminaliza todas as formas de interrupção do processo vital, o que caracteriza uma incoerência jurídica a previsão legal do aborto em casos de gravidez originada a partir de estupro.

Desse mesmo entendimento, compartilhou o Magistrado Levine Raja Gabaglia Atiaga, da 4ª Vara Criminal da Comarca de Rio Verde – GO, ao negar autorização para realização de aborto humanitário. Segundo o Juiz, tal previsão do Código Penal fere o “bem juridico mais protegido no ordenamento constitucional, decorrente do próprio direito natural”, o que torna a prática contrária à Constituição Federal. Em suas palavras, a norma também “viola as garantias esculpidas no Código Cívil e usurpa os direitos dispostos no Estatuto da Criança e do Adolescente, que confere ao nascituro alguns direitos personalíssimos, como o direito à vida, proteção pré-natal, entre outros.”

Assim, em razão de tudo que estudamos até este momento, é perfeitamente possível vislumbrar a inconstitucionalidade do aborto humanitário. Sabemos o quão difícil seria para a mulher violentada levar uma gravidez originada de estupro adiante, mas, existem outras diversas situações onde uma pessoa é levada a enfrentar uma situação odiosa e mesmo assim o ordenamento não permite a violação da vida humana, como vimos no exemplo do jovem que assiste o padrasto estuprar sua irmã. Imaginemos ainda uma mãe que teve seu filho assassinado: Ela iria viver a vida inteira um trauma indescritível, mas não poderia matar o assassino sem ser responsabilizada conforme a lei penal, visto que a vida humana é direito constitucionalmente inviolável.

Ou seja, ainda que seja extremamente difícil e quase insuportável levar uma gravidez oriunda de violência adiante, é isso que a Constituição manda fazer ao garantir a inviolabilidade da vida do nascituro. Cabe ao Estado garantir todos os meios para que, na medida do possível, essa gestante tenha sua dignidade preservada ao máximo durante e após o processo gestacional, permitindo-lhe que após o nascimento a criança seja entregue para adoção, se a mãe julgar que não terá condições psicológicas de criá-la.

Assim, entendemos que, mesmo diante de uma situação monstruosa como é o estupro, não é razoável permitir a interrupção da vida gerada dessa violência, por ser o nascituro destinatário do direito fundamental à inviolabilidade de sua vida, que é o mais valioso de todos os direitos. A dignidade da gestante deve ser preservada ao máximo, tendo o Estado a obrigação de lhe prestar acompanhamento psicológico e financeiro durante e após a gestação, bem como facilitar uma futura adoção da criança se for essa sua vontade. Nos parece que essa é a única forma de obedecer aos comandos da Constituição Federal nesse conflito de bens jurídicos entre a vida do bebê e a honra da gestante, visto que a vida é o principal dos direitos e premissa de todos os outros. Qualquer solução jurídica diferente dessa, como é o aborto humanitário, caracteriza afronta a Lei Maior do nosso ordenamento jurídico e consequente inconstitucionalidade do dispositivo infraconstitucional.

Sendo o Código Penal anterior à Constituição Federal, podemos afirmar então que a previsão contida no artigo 128 II, que permite o aborto em casos de estupro, não teria sido recepcionada pela Carta Magna, por contrariar a previsão de seu artigo 5º, que garante a inviolabilidade da vida humana.

É dessa mesma forma que se manifestam Cleber Francisco Alves e Fernando Ferreira dos Santos:

Tendo em vista o dispositivo constitucional (art. 5 caput) que assegura a inviolabilidade do direito à vida, o artigo 128, do Código Penal, que admite o aborto dito “sentimental” – quando a mulher tenha sido vítima de estupro - não teria sido recepcionado pela Constituição de 1988 (ALVES, 2001 apud SANTOS, 2001, p. 167-168, grifos nossos).

Compete relembrar que, conforme já abordado neste estudo, a Constituição de 1937, que vigorava quando o atual Código Penal entrou em vigor, não inseriu a vida em seu rol de direitos individuais fundamentais, mostrando ser uma Carta que relativizava este direito, permitindo, inclusive, pena de morte para crimes políticos.

Assim, como o ordenamento normativo-constitucional vigente em 1940 não instituiu um sistema de proteção a vida nos moldes do que existe hoje, pode-se dizer que o aborto sentimental, embora fosse compatível com a Constituição de 1937, é materialmente incompatível com a Carta Republicana atual

Desse modo, após todos os argumentos elencados neste trabalho e toda doutrina e jurisprudência citadas, não nos resta duvidas que o artigo 128, inciso II, do Código Penal contraria mandamento constitucional. A Constituição de 1988 garante a inviolabilidade da vida e a legislação infraconstitucional nos mostra que essa proteção se inicia no útero materno. Sendo o nascituro destinatário desse direito fundamental, não há como encontrar brecha jurídica que indique constitucionalidade no abortamento em casos de estupro. Como estudamos, não é razoável a eliminação de uma vida em razão do crime cometido pelo seu pai. Aliás, nunca é razoável a eliminação de uma vida, exceto quanto existe outra em jogo, situação em que as circunstâncias indicarão qual deve ser preservada. Dessa maneira, se a gestação oriunda de estupro não trouxer riscos à vida da gestante, não há porque violar o direito fundamental à vida do nascituro, garantido por uma cláusula pétrea da Constituição Federal.

Assim, diante de tudo que foi exposto, entendemos que o aborto humanitário, conduta prevista no artigo 128 inciso II do Código Penal brasileiro, não foi recepcionado pela Constituição de 1988, por afrontar o disposto no caput de seu artigo 5º. A vida é o bem jurídico mais valioso de todos e o Estado, através da ordem jurídica estabelecida, deve zelar pela inviolabilidade deste direito fundamental e de todos os outros que dele decorrem, razão pela qual qualquer construção diferente disso será afrontosa a Carta Republicana e consequentemente inconstitucional.

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Sobre o autor
Davi de Lima Pereira da Silva

Procurador-Geral do Município de Areal/RJ; Especialista em Direito Administrativo; Fundador e sócio licenciado do Escritório "Lima, Pacheco & Arruda Advogados Associados"; Pós-Graduando em Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Ambiental, Gestão Pública e Direitos Humanos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Davi Lima Pereira. Aborto humanitário: uma análise à luz da Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6188, 10 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82986. Acesso em: 29 mar. 2024.

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