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Aborto humanitário: uma análise à luz da Constituição

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10/06/2020 às 14:55
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partimos, nesse trabalho, da seguinte indagação: o aborto humanitário contraria a Constituição Federal ao permitir a violação da vida do nascituro para preservar a integridade psíquica, honra e dignidade de sua mãe? Após uma pesquisa aprofundada, dedicada a um bom tempo de leitura da doutrina e da jurisprudência, acreditamos ter chegado a uma conclusão.

Começamos esse estudo fazendo uma abordagem sobre o caráter que as disposições da Constituição Federal possuem em nosso ordenamento jurídico, e concluímos que a Carta Republicana se configura como verdadeiro fundamento de validade de todas as normas, não podendo existir qualquer construção jurídica que a contrarie. Partindo dessa premissa, nos dedicamos a analisar os direitos e garantias fundamentais, positivados no título II da Lei Maior, dentre os quais se insere o direito à inviolabilidade da vida humana, no caput do artigo 5º. Descobrimos, conforme se verifica no entendimento de diversos doutrinadores apresentados neste trabalho, que o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, visto que é pré-requisito de todos os outros, pois, sem ele, nenhum outro direito sequer chega a existir.

A essa altura do trabalho, já tínhamos em mente duas premissas: lei nenhuma pode contrariar a Constituição Federal e a inviolabilidade da vida humana é o principal direito constitucionalmente garantido. A partir daí, passamos a analisar a parte especial do Código Penal brasileiro, que, em seu capítulo I do título I, define como crime as condutas que atentam contra a vida humana, o que caracteriza uma forma da legislação penal obedecer aos comandos da Constituição, no sentido de preservar o maior dos direitos constitucionalmente garantidos.

Vimos que são quatro os delitos que o Código Penal elencou como atentatórios à vida humana: homicídio (abarcando a forma qualificada, o feminicídio e a forma culposa); infanticídio; instigação, induzimento ou auxílio a suicídio; e aborto. Ao percebermos a prática abortiva no rol de crimes contra a vida, chegamos à óbvia conclusão de que a preservação deste direito fundamental garantido pela Constituição se inicia ainda no útero materno. Conforme entendimento de doutrinadores penalistas apresentados, qualquer que seja a fase intrauterina em que o nascituro se encontre, a eliminação da sua vida será classificada como crime de aborto. Assim, chegamos a uma terceira premissa: o direito constitucional à inviolabilidade da vida alcança tanto o já nascido quanto o que está por nascer.

Após, começamos a analisar aspectos do instituto do aborto e nos deparamos com as possibilidades previstas nos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal: as chamadas hipóteses de aborto legal, em que o estatuto repressivo dispõe que não será punido o procedimento abortivo praticado por médico quando a gravidez colocar em risco a vida da gestante (aborto terapêutico) ou então tiver se originado de um estupro (aborto humanitário ou sentimental). São hipóteses excepcionais em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida humana. Passamos então a analisar se tais previsões contrariam a Constituição Federal, que preceitua que o direito à vida é inviolável.

Ao estudarmos o aborto terapêutico, vimos que a doutrina atribui a este instituto natureza jurídica de estado de necessidade, excludente de ilicitude caracterizada por confronto de bens jurídicos no mínimo iguais, que é justamente o que ocorre na previsão do inciso I do Código Penal. Trata-se de uma situação onde não é possível salvar as duas vidas, e o médico acaba salvando a mãe, por ser a que tem mais chances de sobreviver. Ou seja, atende-se, dentro do possível, o comando da Constituição Federal que garante a inviolabilidade do direito à vida.

Antes de tratarmos da constitucionalidade do aborto humanitário, abordamos ainda as hipóteses em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida, e percebemos que, em todas elas, deve haver, ainda que presumidamente, outra vida em jogo, como ocorre no estado de necessidade e na legitima defesa. Vimos também detalhes da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre gravidez de fetos anencéfalos, na qual a Corte considerou que a interrupção antecipada da gestação nesses casos não pode ser caracterizada como aborto, visto que não há vida a ser protegida. Neste processo, todos os Ministros reafirmaram que o direito à vida é o mais precioso de todo o ordenamento, e a maioria entendeu que a antecipação do parto nesses casos não pode ser considerada crime por não ser uma conduta atentatória à vida, visto que não há vida possível em casos de anencefalia e o feto seria, na verdade, um natimorto.

Após todas essas considerações, passamos a estudar diretamente o aborto humanitário, conduta prevista no inciso II do artigo 128 do Código Penal, e vimos que a maioria da doutrina atribui a ele natureza jurídica de excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. No entanto, como já havíamos descoberto que o direito à vida é o principal bem jurídico tutelado pelo nosso ordenamento, e a lei só pode permitir sua violação quando houver outra vida em jogo, chegamos à conclusão que essa excludente só poderia ser invocada para isentar de culpabilidade delitos que não atentem contra a vida humana, visto que esse é o principal direito garantido pela Constituição, que, por sua vez, orienta a aplicação de toda ordem jurídica.

Assim, alcançamos uma quarta premissa: sendo a vida o mais fundamental de todos os direitos garantidos pela Constituição, a lei só pode permitir sua violação em circunstâncias que demonstrem haver outra vida em jogo. Dessa forma, a conclusão lógica foi a de que a inexigibilidade de conduta diversa não pode servir para justificar o aborto humanitário, pois nosso ordenamento constitucional nos ensina que eliminar uma vida só é a única conduta possível quando houver outra vida a ser preservada, o que não ocorre no aborto em casos de estupro.

Dessa maneira, após todos os argumentos levantados neste trabalho, devidamente embasados pela doutrina e jurisprudência, concluímos que todo o ordenamento jurídico deve caminhar no sentido de utilizar todos os mecanismos possíveis para garantir a inviolabilidade da vida humana, que é o principal direito garantido pela Constituição Federal. A partir dessa conclusão, passamos a analisar os argumentos que a doutrina que defende a constitucionalidade do aborto humanitário utiliza: a preservação da integridade psíquica, honra e dignidade da gestante violentada.

Entendemos que, sem a menor dúvida, uma mulher violentada enfrenta um trauma indescritível, e levar adiante uma gravidez oriunda dessa violência certamente abalará sua honra e ferirá sua dignidade. No entanto, desse ato forçado foi gerado um novo ser, que o direito já considera como possuidor de vida humana. E, sabendo que a vida é o principal dos direitos garantidos pela Constituição Federal, e que lei nenhuma pode contrariar preceito constitucional, não poderia o ordenamento jurídico, de forma alguma, permitir a violação deste direito.

Já chegamos à conclusão, neste trabalho, que uma vida só pode ser violada para preservar outra vida, o que não ocorre no aborto humanitário, já que, do outro lado da balança, está a dignidade e a honra da mulher violentada. Dessa maneira, embora reconheçamos que a dignidade de todo ser humano deve ser respeitada ao máximo, conforme manda a Constituição Federal, não é possível vislumbrarmos a constitucionalidade desta prática abortiva, uma vez que o direito à vida supera todos os outros direitos, já que é pré-requisito de todos eles, como nos mostrou a doutrina apresentada neste estudo.

Assim, na delicada situação específica da gestação originada de estupro, concluímos que o Estado deve utilizar de todos os meios que dispõe para garantir o melhor acompanhamento possível para essa gestante, facilitando, inclusive, uma futura adoção da criança, se for essa a vontade da mãe, não podendo, de forma alguma, permitir que essa vida intra-uterina seja interrompida, pois isso afrontaria a Constituição da República, diploma orientador de toda a ordem jurídica. Essa gravidez pode, sem a menor dúvida, abalar a dignidade da gestante. No entanto, embora abalada, continuará existindo dignidade. O aborto, por seu turno, não restaurará a honra ferida no estupro e servirá apenas para eliminar a dignidade do nascituro, impossibilitando-o de exercer o mais precioso de todos os direitos: o direito à vida.

Dessa maneira, após todo o esforço empreendido nessa pesquisa, a conclusão alcançada é a de que o aborto humanitário, disposição prevista no artigo 128, inciso II, do Código Penal, contraria a Constituição Brasileira, sendo, portanto, inconstitucional. Trata-se, no caso, de inconstitucionalidade por não ter sido recepcionada, visto que a norma em questão é anterior à vigência do atual sistema constitucional, tendo sido editada sob a égide da Constituição de 1937, que não elencava a vida em seu rol de direitos fundamentais, o que é completamente oposto ao que acontece no nosso sistema constitucional atual.

A Carta Republicana de 1988 é a lei maior de toda a nossa ordem jurídica, e todo profissional do Direito deve obediência aos seus preceitos, em especial, àquele previsto em seu artigo 5ª, que garante a inviolabilidade da vida humana. Sendo a conduta objeto deste trabalho contrária a esta disposição fundamental, a conclusão lógica é pela inconstitucionalidade desta previsão da lei penal, embora entendamos que trata-se de uma questão extremamente delicada, e que é imprescindível que o Estado forneça todas as condições possíveis para garantir uma gestação saudável a mulher violentada, com acompanhamento psicológico antes e depois do parto, por quanto tempo for necessário; com o pagamento de auxílio financeiro para as mulheres que ficarem psicologicamente impedidas de trabalhar; e com a implementação de mecanismos de facilitação da adoção de crianças nascidas nessa situação, se essa for a vontade da mãe.

Não foi fácil defender esse trabalho quando ele era somente uma monografia. Não é fácil defendê-lo em meus debates acadêmicos, pois o tema é extremamente polêmico e desperta emoções que impedem a realização de uma análise exclusivamente jurídica do problema. Também não é fácil defender essa ideia em casa, principalmente diante de uma família com veia progressista como a minha. Fui, diversas vezes, desencorajado a publicá-lo, sob o argumento de que seria rotulado de forma negativa logo em minha primeira publicação. No entanto, não recuei. Deixo aqui todo o meu respeito e solidariedade a todas as mulheres vítimas de estupro, que engravidaram ou não, e as peço que compreendam que entendo toda o sofrimento que sentem. Não quero, com esta publicação, nenhum mal a vocês. Pelo contrário, faço votos para que o Estado cumpra o que é determinado pela sistemática constitucional de assistência social e lhes garanta a dignidade suficiente para prosseguir da melhor forma que for possível, mas sem que nenhuma vida fique pelo caminho.

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Desse modo, em um contexto em que as únicas vozes da sociedade que se levantam contra o aborto são ligadas a alguma religião, me orgulho profundamente por ter conseguido realizar um trabalho sem utilizar nenhum argumento religioso. Todo o estudo foi pautado, única e exclusivamente, na ordem jurídica constitucionalmente estabelecida, e é essa ordem que nos levou a concluir pela inconstitucionalidade do aborto sentimental.

Certa vez, ouvi de um professor a seguinte frase: “Na dúvida, morram abraçados à Constituição”. É isso que foi feito neste trabalho.


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Sobre o autor
Davi de Lima Pereira da Silva

Procurador-Geral do Município de Areal/RJ; Especialista em Direito Administrativo; Fundador e sócio licenciado do Escritório "Lima, Pacheco & Arruda Advogados Associados"; Pós-Graduando em Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Ambiental, Gestão Pública e Direitos Humanos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Davi Lima Pereira. Aborto humanitário: uma análise à luz da Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6188, 10 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82986. Acesso em: 5 nov. 2024.

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