CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partimos, nesse trabalho, da seguinte indagação: o aborto humanitário contraria a Constituição Federal ao permitir a violação da vida do nascituro para preservar a integridade psíquica, honra e dignidade de sua mãe? Após uma pesquisa aprofundada, dedicada a um bom tempo de leitura da doutrina e da jurisprudência, acreditamos ter chegado a uma conclusão.
Começamos esse estudo fazendo uma abordagem sobre o caráter que as disposições da Constituição Federal possuem em nosso ordenamento jurídico, e concluímos que a Carta Republicana se configura como verdadeiro fundamento de validade de todas as normas, não podendo existir qualquer construção jurídica que a contrarie. Partindo dessa premissa, nos dedicamos a analisar os direitos e garantias fundamentais, positivados no título II da Lei Maior, dentre os quais se insere o direito à inviolabilidade da vida humana, no caput do artigo 5º. Descobrimos, conforme se verifica no entendimento de diversos doutrinadores apresentados neste trabalho, que o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, visto que é pré-requisito de todos os outros, pois, sem ele, nenhum outro direito sequer chega a existir.
A essa altura do trabalho, já tínhamos em mente duas premissas: lei nenhuma pode contrariar a Constituição Federal e a inviolabilidade da vida humana é o principal direito constitucionalmente garantido. A partir daí, passamos a analisar a parte especial do Código Penal brasileiro, que, em seu capítulo I do título I, define como crime as condutas que atentam contra a vida humana, o que caracteriza uma forma da legislação penal obedecer aos comandos da Constituição, no sentido de preservar o maior dos direitos constitucionalmente garantidos.
Vimos que são quatro os delitos que o Código Penal elencou como atentatórios à vida humana: homicídio (abarcando a forma qualificada, o feminicídio e a forma culposa); infanticídio; instigação, induzimento ou auxílio a suicídio; e aborto. Ao percebermos a prática abortiva no rol de crimes contra a vida, chegamos à óbvia conclusão de que a preservação deste direito fundamental garantido pela Constituição se inicia ainda no útero materno. Conforme entendimento de doutrinadores penalistas apresentados, qualquer que seja a fase intrauterina em que o nascituro se encontre, a eliminação da sua vida será classificada como crime de aborto. Assim, chegamos a uma terceira premissa: o direito constitucional à inviolabilidade da vida alcança tanto o já nascido quanto o que está por nascer.
Após, começamos a analisar aspectos do instituto do aborto e nos deparamos com as possibilidades previstas nos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal: as chamadas hipóteses de aborto legal, em que o estatuto repressivo dispõe que não será punido o procedimento abortivo praticado por médico quando a gravidez colocar em risco a vida da gestante (aborto terapêutico) ou então tiver se originado de um estupro (aborto humanitário ou sentimental). São hipóteses excepcionais em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida humana. Passamos então a analisar se tais previsões contrariam a Constituição Federal, que preceitua que o direito à vida é inviolável.
Ao estudarmos o aborto terapêutico, vimos que a doutrina atribui a este instituto natureza jurídica de estado de necessidade, excludente de ilicitude caracterizada por confronto de bens jurídicos no mínimo iguais, que é justamente o que ocorre na previsão do inciso I do Código Penal. Trata-se de uma situação onde não é possível salvar as duas vidas, e o médico acaba salvando a mãe, por ser a que tem mais chances de sobreviver. Ou seja, atende-se, dentro do possível, o comando da Constituição Federal que garante a inviolabilidade do direito à vida.
Antes de tratarmos da constitucionalidade do aborto humanitário, abordamos ainda as hipóteses em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida, e percebemos que, em todas elas, deve haver, ainda que presumidamente, outra vida em jogo, como ocorre no estado de necessidade e na legitima defesa. Vimos também detalhes da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre gravidez de fetos anencéfalos, na qual a Corte considerou que a interrupção antecipada da gestação nesses casos não pode ser caracterizada como aborto, visto que não há vida a ser protegida. Neste processo, todos os Ministros reafirmaram que o direito à vida é o mais precioso de todo o ordenamento, e a maioria entendeu que a antecipação do parto nesses casos não pode ser considerada crime por não ser uma conduta atentatória à vida, visto que não há vida possível em casos de anencefalia e o feto seria, na verdade, um natimorto.
Após todas essas considerações, passamos a estudar diretamente o aborto humanitário, conduta prevista no inciso II do artigo 128 do Código Penal, e vimos que a maioria da doutrina atribui a ele natureza jurídica de excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. No entanto, como já havíamos descoberto que o direito à vida é o principal bem jurídico tutelado pelo nosso ordenamento, e a lei só pode permitir sua violação quando houver outra vida em jogo, chegamos à conclusão que essa excludente só poderia ser invocada para isentar de culpabilidade delitos que não atentem contra a vida humana, visto que esse é o principal direito garantido pela Constituição, que, por sua vez, orienta a aplicação de toda ordem jurídica.
Assim, alcançamos uma quarta premissa: sendo a vida o mais fundamental de todos os direitos garantidos pela Constituição, a lei só pode permitir sua violação em circunstâncias que demonstrem haver outra vida em jogo. Dessa forma, a conclusão lógica foi a de que a inexigibilidade de conduta diversa não pode servir para justificar o aborto humanitário, pois nosso ordenamento constitucional nos ensina que eliminar uma vida só é a única conduta possível quando houver outra vida a ser preservada, o que não ocorre no aborto em casos de estupro.
Dessa maneira, após todos os argumentos levantados neste trabalho, devidamente embasados pela doutrina e jurisprudência, concluímos que todo o ordenamento jurídico deve caminhar no sentido de utilizar todos os mecanismos possíveis para garantir a inviolabilidade da vida humana, que é o principal direito garantido pela Constituição Federal. A partir dessa conclusão, passamos a analisar os argumentos que a doutrina que defende a constitucionalidade do aborto humanitário utiliza: a preservação da integridade psíquica, honra e dignidade da gestante violentada.
Entendemos que, sem a menor dúvida, uma mulher violentada enfrenta um trauma indescritível, e levar adiante uma gravidez oriunda dessa violência certamente abalará sua honra e ferirá sua dignidade. No entanto, desse ato forçado foi gerado um novo ser, que o direito já considera como possuidor de vida humana. E, sabendo que a vida é o principal dos direitos garantidos pela Constituição Federal, e que lei nenhuma pode contrariar preceito constitucional, não poderia o ordenamento jurídico, de forma alguma, permitir a violação deste direito.
Já chegamos à conclusão, neste trabalho, que uma vida só pode ser violada para preservar outra vida, o que não ocorre no aborto humanitário, já que, do outro lado da balança, está a dignidade e a honra da mulher violentada. Dessa maneira, embora reconheçamos que a dignidade de todo ser humano deve ser respeitada ao máximo, conforme manda a Constituição Federal, não é possível vislumbrarmos a constitucionalidade desta prática abortiva, uma vez que o direito à vida supera todos os outros direitos, já que é pré-requisito de todos eles, como nos mostrou a doutrina apresentada neste estudo.
Assim, na delicada situação específica da gestação originada de estupro, concluímos que o Estado deve utilizar de todos os meios que dispõe para garantir o melhor acompanhamento possível para essa gestante, facilitando, inclusive, uma futura adoção da criança, se for essa a vontade da mãe, não podendo, de forma alguma, permitir que essa vida intra-uterina seja interrompida, pois isso afrontaria a Constituição da República, diploma orientador de toda a ordem jurídica. Essa gravidez pode, sem a menor dúvida, abalar a dignidade da gestante. No entanto, embora abalada, continuará existindo dignidade. O aborto, por seu turno, não restaurará a honra ferida no estupro e servirá apenas para eliminar a dignidade do nascituro, impossibilitando-o de exercer o mais precioso de todos os direitos: o direito à vida.
Dessa maneira, após todo o esforço empreendido nessa pesquisa, a conclusão alcançada é a de que o aborto humanitário, disposição prevista no artigo 128, inciso II, do Código Penal, contraria a Constituição Brasileira, sendo, portanto, inconstitucional. Trata-se, no caso, de inconstitucionalidade por não ter sido recepcionada, visto que a norma em questão é anterior à vigência do atual sistema constitucional, tendo sido editada sob a égide da Constituição de 1937, que não elencava a vida em seu rol de direitos fundamentais, o que é completamente oposto ao que acontece no nosso sistema constitucional atual.
A Carta Republicana de 1988 é a lei maior de toda a nossa ordem jurídica, e todo profissional do Direito deve obediência aos seus preceitos, em especial, àquele previsto em seu artigo 5ª, que garante a inviolabilidade da vida humana. Sendo a conduta objeto deste trabalho contrária a esta disposição fundamental, a conclusão lógica é pela inconstitucionalidade desta previsão da lei penal, embora entendamos que trata-se de uma questão extremamente delicada, e que é imprescindível que o Estado forneça todas as condições possíveis para garantir uma gestação saudável a mulher violentada, com acompanhamento psicológico antes e depois do parto, por quanto tempo for necessário; com o pagamento de auxílio financeiro para as mulheres que ficarem psicologicamente impedidas de trabalhar; e com a implementação de mecanismos de facilitação da adoção de crianças nascidas nessa situação, se essa for a vontade da mãe.
Não foi fácil defender esse trabalho quando ele era somente uma monografia. Não é fácil defendê-lo em meus debates acadêmicos, pois o tema é extremamente polêmico e desperta emoções que impedem a realização de uma análise exclusivamente jurídica do problema. Também não é fácil defender essa ideia em casa, principalmente diante de uma família com veia progressista como a minha. Fui, diversas vezes, desencorajado a publicá-lo, sob o argumento de que seria rotulado de forma negativa logo em minha primeira publicação. No entanto, não recuei. Deixo aqui todo o meu respeito e solidariedade a todas as mulheres vítimas de estupro, que engravidaram ou não, e as peço que compreendam que entendo toda o sofrimento que sentem. Não quero, com esta publicação, nenhum mal a vocês. Pelo contrário, faço votos para que o Estado cumpra o que é determinado pela sistemática constitucional de assistência social e lhes garanta a dignidade suficiente para prosseguir da melhor forma que for possível, mas sem que nenhuma vida fique pelo caminho.
Desse modo, em um contexto em que as únicas vozes da sociedade que se levantam contra o aborto são ligadas a alguma religião, me orgulho profundamente por ter conseguido realizar um trabalho sem utilizar nenhum argumento religioso. Todo o estudo foi pautado, única e exclusivamente, na ordem jurídica constitucionalmente estabelecida, e é essa ordem que nos levou a concluir pela inconstitucionalidade do aborto sentimental.
Certa vez, ouvi de um professor a seguinte frase: “Na dúvida, morram abraçados à Constituição”. É isso que foi feito neste trabalho.
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