Capa da publicação ADI contra decisão judicial? Bolsonaro e o absurdo jurídico
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Uma absurda tentativa presidencial

28/07/2020 às 18:35
Leia nesta página:

Não se pode conceber um presidente da República querer anular, desconstituir, decisão judicial emanada do STF, sem que seja por via de habeas corpus ou recurso, por via própria, mas por uma ação de controle abstrato da inconstitucionalidade.

A derrubada das contas de diversos bolsonaristas no Facebook, Twitter e outras redes sociais por determinação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes foi um sinal de que não há nenhuma intenção por parte do Supremo de retardar as investigações sobre uso de fake news para fins políticos.

Esse é o fato.

Pois bem: noticiou o Estadão, em sua edição de 26 de julho do corrente ano, que o presidente Jair Bolsonaro entrou ontem com uma ação no Supremo Tribunal Federal na qual pede a suspensão do bloqueio de perfis de bolsonaristas nas redes sociais. O bloqueio temporário das contas foi cumprido anteontem, por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do STF, no inquérito das fake news – que apura notícias falsas, ofensas e ameaças contra integrantes da Corte.

Entre os alvos da ordem judicial estão o ex-deputado federal Roberto Jefferson (PTB), os empresários Luciano Hang e Otávio Fakhoury, a extremista Sara Giromini e o blogueiro Allan dos Santos. Os apoiadores do presidente foram banidos do Twitter e do Facebook. Um total de 16 contas e 12 páginas de influenciadores bolsonaristas estão bloqueadas.

A ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, tem como autor o próprio presidente. Junto com Bolsonaro, assina a ação o advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral Júnior.

Bolsonaro alega, na ação, que o desbloqueio das contas é necessário para “assegurar a observância aos direitos fundamentais das liberdades de manifestação do pensamento, de expressão, de exercício do trabalho e do mandato parlamentar, além dos princípios da legalidade, do devido processo legal e da proporcionalidade”.

Observo o que se disse naquela exordial:

“No particular, a ação volta-se contra a ilegitimidade de atos de interpretação do Código de Processo Penal que resultam em ordens de bloqueio/interdição/suspensão de perfis pessoais em redes sociais, controvérsia de relevância ostensiva. Não só pela sua larga transcendentalidade social, mas pela influência real que ela exerce nas expectativas legítimas de exercício de manifestação profissional e política por parte de profissionais de imprensa e parlamentares, estando a demandara urgente tutela da controvérsia pela jurisdição constitucional desse Supremo Tribunal Federal.”

É certo que o Executivo e o Legislativo têm um papel marcante em algumas questões relacionadas com o controle de legitimidade dos atos do Poder Público:

  1. O exercício do poder de veto com fundamento na inconstitucionalidade da lei, típica atuação do Poder Executivo, no Brasil;
  2. A possibilidade de suspensão de atos normativos que exorbitem dos limites estabelecidos na lei(artigo 39, V);
  3. A correção de decisões judiciais pelo Poder Legislativo;
  4. A possibilidade de anulação de atos normativos pelo Legislativos;
  5. A possibilidade de que o Executivo se negue a aplicar a lei com fundamento no argumento da inconstitucionalidade;
  6. A possibilidade de que se declare a nulidade de lei mediante ato de natureza legislativa.

Para o caso, debruço-me com relação a chamada “correção” de decisões judiciais pelo Poder Legislativo, mas que acabou sendo pelo Poder Executivo, nas mãos de um ditador.

Isso ocorreu sob a Constituição de 1937, que criou a possibilidade de se suspender mediante ato legislativo, decisão judicial que declarasse inconstitucionalidade de ato normativo. Isso deveria ocorrer através de uma resolução do Parlamento, aprovada por uma maioria qualificada de 2/3 dos votos (artigo 96).

Segundo Francisco Luiz da Silva (Diretrizes constitucionais do novo Estado Brasileiro, RF v. 72, n. 415/417, pág. 229, janeiro/março de 1938), tal necessidade se justificava com o caráter pretensamente antidemocrático da jurisdição, o que acabava por permitir a utilização do controle das normas como instrumento aristocrático de preservação do poder ou como expressão de um Poder Moderador.

Ora, como é sabido, a chamada faculdade confiada pela Constituição ditatorial de 1937, ao Parlamento, acabou sendo dada ao “ditador”, mediante a edição de decretos-leis (Constituição de 1937, artigo 180). Confirmada a sua inconstitucionalidade passaria o Supremo Tribunal Federal a reconhecer ipso iure a sua validade.

Isso estava previsto na chamada Constituição da Polônia, de 23 de abril de 1935.

Sobre isso, ensinou Karl Loewenstein sobre o direito americano (Verfassungsrecht und Verfassungspraxis der Vereinigten Staten, 1959, pág. 429), quando disse:

“Um outro mecanismo de limitação do poder da Corte Suprema assenta-se na possibilidade de nulificação dos efeitos da decisão mediante lei de alcance corretivo. Trata-se apenas de casos em que o Congresso manifesta divergência com interpretação conferida à norma pela Corte Suprema. Esse mecanismo não se aplica às hipóteses de declaração de inconstitucionalidade de índole formal ou material. Nesses casos, apenas uma reforma constitucional mostra-se apta a solver o conflito...”

No Brasil, como se observou, isso só se viu na concretude de uma Constituição antidemocrática.

Não se pode conceber um presidente da República querer anular, desconstituir, decisão judicial emanada da própria corte, sem que seja por via de habeas corpus ou recurso, por via própria, mas por uma ação de controle abstrato da inconstitucionalidade. Não se concebe um presidente da República, sob a Constituição de 1988, mediante ato de controle corretivo, anular decisão judicial.

Isso parece um absurdo.  

Veja-se o que dita o artigo 102 da CF:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I -  processar e julgar, originariamente:

a)  a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;

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Ora, como acentuou William Akerman (A ação direta de inconstitucionalidade, principais aspectos), a ação direta de inconstitucionalidade, tem por finalidade declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (art. 102, I, a, da CF), seja por vício de forma, seja por vício material, seja por dupla inconstitucionalidade.

Ocorrerá inconstitucionalidade formal quando um ato legislativo tenha sido produzido em desconformidade com as normas de competência (inconstitucionalidade orgânica) ou com o procedimento estabelecido para seu ingresso no mundo jurídico (inconstitucionalidade formal propriamente dita). A inconstitucionalidade será material quando o conteúdo do ato infraconstitucional estiver em contrariedade com alguma norma substantiva prevista na Constituição, seja uma regra, seja um princípio.

Os atos impugnáveis mediante ADI são a lei e o ato normativo federal ou estadual primários, isto é, que retiram fundamento diretamente da Constituição.

Não cabe a via da ação direta de inconstitucionalidade com relação a atos judiciais tomados no curso de procedimento em juízo.

Ressalta a absurdidade jurídica do pleito subscrito pelo atual presidente da República e pela Advocacia Geral da União.

A uma, porque não pretende impugnar ato normativo, por ADIn, mas ato decisório tomado por um ministro do Supremo Tribunal Federal no bojo de investigação envolvendo a divulgação de fake news contra a Suprema Corte; a duas, por sua evidente inadequação da via eleita.

Se há uma decisão monocrática concreta praticada em face de ato de jurisdição de tribunal, no curso de procedimento, sobre ele caberá recurso de agravo regimental.

A legitimidade recursal, por óbvio, para atacar esse ato é daqueles que sofreram prejuízo jurídico. Por certo, não o foi, ao que se sabe, o atual presidente da República.

Em sendo assim, a petição apresentada confronta o sistema jurídico brasileiro, por absoluta carência de ação, por inadequação da via eleita, e, por consequência, de falta de interesse de agir.

O presidente age, por óbvio, para defender condutas de seus seguidores ideológicos.

O destino da ação discutida deverá ser, por absoluta inépcia, o indeferimento

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Uma absurda tentativa presidencial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6236, 28 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84252. Acesso em: 23 nov. 2024.

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