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Conflito entre normas de enfrentamento ao covid-19: o CDC e as MPs 925 e 948/2020

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Visando à proteção do consumidor, as Medidas Provisórias 925 e 948 regularam as relações de consumo envolvendo a aviação civil e o cancelamento de serviços. Mas, ao contrariarem alguns preceitos do CDC, qual norma deverá prevalecer?

O Estado Democrático de Direito está submetido ao conjunto de leis que o compõem, a fim de estabelecer a organização de seu povo e território, observando e garantindo proteção jurídica aos cidadãos, além de promover a segurança individual e coletiva de todos os indivíduos.

Para prover a Paz Social almejada e garantir os valores preconizados pela norma constitucional, o Estado estabeleceu meios jurídicos de legalidade extraordinária, específicos às situações de crise. E uma delas é o patamar de pandemia mundial provocada pelo novo Coronavírus, que levou o Poder Público a reconhecer, por meio do Decreto Legislativo nº 6/2020, a ocorrência do Estado de Calamidade Pública.

A decretação do Estado de Calamidade Pública objetiva a prevenção, constituindo-se de medidas que permitam ao Estado contornar a crise momentânea provocada pelo desastre, uma vez que reconhecida a situação emergencial, a legislação permite a tomada de uma série de medidas para restaurar a normalidade.

Nesse ínterim, com o intuito de enfrentar o Estado de Calamidade Pública já reconhecido, bem como a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus, foram publicadas, nos dias 18.03.2020 e 08.04.2020, as Medidas Provisórias de nº 925 e 948, que, respectivamente, regulam relações envolvendo a aviação civil e o cancelamento de serviços.

As principais medidas são: dispensa imediata de reembolso de passagem aérea, com prazo de 12 meses para devolução; crédito para emissão de novos bilhetes com isenção de penalidades; e reembolso dos valores pagos sem aplicação de multa somente nos casos de impossibilidade de solução através das outras alternativas elencadas na MP.

O consumidor foi identificado constitucionalmente como agente a ser necessariamente protegido de forma especial. Trata-se da realização de um direito fundamental de proteção do Estado fixado no art. 5°, inc. XXXII (“o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”). Além da previsão de defesa, onde se deve garantir a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos pela implementação de uma política de nacional de consumo, nos termos do art. 170, inc. V.

Os direitos do homem foram conformados no século XVII, expandindo-se no século seguinte ao se tornarem elemento básico da reformulação das instituições políticas, sendo atualmente denominados direitos humanos ou direitos fundamentais.

O reconhecimento destes direitos básicos acaba por formar padrões mínimos universais de comportamento e respeito ao próximo, observando as necessidades e responsabilidades dos seres humanos, estando vinculados ao bem comum.

Cada Estado tem seus direitos fundamentais específicos, entretanto, os direitos fundamentais estão vinculados aos valores de liberdade e da dignidade humana, nos levando assim ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal da pessoa humana, sendo considerados direitos inalienáveis do indivíduo e vinculados pela Constituição como normas fundamentais.

Nesse cenário, surge a necessidade da consolidação de obrigações erga omnes de proteção diante de uma concepção integral e abrangente dos direitos humanos que envolvam todos os seus direitos: civis, políticos, econômicos e culturais.

As transformações sociais – que, em regra, sempre se sucedem antes da evolução jurídica –, motivaram a inserção do princípio da defesa do consumidor na Carta Magna, e estimularam a própria criação da Lei consumerista como uma norma taxativa, imperativa de direitos e deveres a serem respeitados pelos participantes das relações de consumo.

Contudo, o que se viu com a publicação das MPs supra foi a mitigação de inúmeros direitos garantidos constitucionalmente, sob a alegação de que as medidas por ela autorizadas se justificam em virtude da decretação do Estado de Calamidade Pública.

A real necessidade, no entanto, é buscar o verdadeiro equilíbrio entre os interesses econômicos das empresas, a fim de cumprir a sua própria função social, aqui traduzida na preservação e manutenção da atividade empresarial, e os direitos e garantias do consumidor, driblando o cenário pandêmico, especialmente nos casos de cobrança de taxas e multas quando os usuários dos serviços optarem pelo cancelamento de bilhetes aéreos.

Ainda, há que se observar os debates jurídicos motivados em torno da (im)possibilidade de Medidas Provisórias alcançarem contratos celebrados anteriormente a elas. Isso porque, segundo o Princípio da Irretroatividade das Leis e considerando a necessidade de segurança jurídica e estabilidade do Direito, a lei nova não atinge os fatos anteriores ao início de sua vigência, nem as consequências dos mesmos, ainda que se produzam sob o império do direito atual, assim assinalado pelo ilustre Ministro Barroso [1].

O Constituinte, intencionalmente, adotou como regra geral o Princípio da Irretroatividade da Lei, sendo aplicado a todos os ramos do direito, a todas as esferas do poder público, bem como a todas as espécies legais (decretos, leis, resoluções, medidas provisórias, etc.), de modo que a retroatividade é condição de exceção (art. 5º, inc. XXXVI).

Ainda, poderia ser levantada a alegação de que as relações de consumo são normas de ordem pública e, por isso, o direito privado deve se curvar às mudanças legais em prevalência dos interesses da coletividade sobre os interesses individuais, sendo possível, na situação aqui discutida, a aplicação das MPs 925 e 948/2020 para os contratos originados antes da sua vigência.

Ocorre que a Carta Magna, em seu art. 5º, inc. XXXVI, esclarece que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, sem, contudo, fazer distinção entre legislações cuja natureza seja de ordem pública ou não, deixando claro que esse não foi o interesse do constituinte.

Se assim quisesse, o legislador teria expressamente recepcionado quanto à possibilidade de retroatividade das leis de ordem pública como fez em outros casos, a exemplo da irretroatividade da legislação penal, cuja exceção é retroagir em benefício do réu (art. 5º, inc. XL).

Convém ainda registrar que o art. 6º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro possibilita, implicitamente, a retroatividade da lei desde que observada a intangibilidade do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Isso porque, a priori nenhuma norma é interpretada a se aplicar a fatos anteriores a ela, contudo se a assim acontecer deve-se observar os limites impostos no texto da LINDB.

Ora, existindo uma situação em que uma norma legal seja contrária aos preceitos estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor, os pontos conflitantes deverão ser afastados quando da aplicação em um caso concreto, tendo em vista que a função do CDC é única e exclusivamente a de regular as relações de consumo e tutelar o grupo específico dos consumidores, tendo seu âmbito de aplicação expressamente delimitado em seu texto normativo, o que implica, por sua vez, no fato de as relações de origem consumerista serem reguladas pelo código, ainda que exista norma especial nascida após o seu advento.

É impossível, portanto, no sistema jurídico brasileiro permitir a criação e a aplicação de textos normativos que afastem, impeçam ou mitiguem qualquer direito garantido constitucionalmente. E, em sendo o direito do consumidor elevado a direito fundamental e a legislação consumerista existir por força expressa de disposição constitucional (art. 170, inc. V), suprimir a sua aplicabilidade em questões que envolvam relação de consumo em detrimento do texto das MPs é suprimir o próprio texto constitucional.

Desse modo, as Medidas Provisórias de nº 925 e 948/2020 não podem atingir contratos celebrados anteriormente a ela, tendo em vista a existência de ato jurídico perfeito, incidindo o Princípio da Irretroatividade. O STJ já decidiu de forma similar para o caso da famosa “Lei do Distrato” [2].

Portanto, para contratos aéreos anteriores às MPs, ainda que o cancelamento tenha ocorrido após a vigência das normas provisórias, o reembolso dos valores pagos a título de passagens aéreas devem ser feitos imediatamente, devendo se ater às normas do CDC, em consonância com a Resolução nº 400/2016 da ANAC, cujo art. 29 prevê prazo de reembolso de sete dias contados da solicitação de cancelamento feita pelo consumidor, observados os meios de pagamento utilizados na compra da passagem aérea.

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Ressalte-se que, diante do cenário pandêmico, muitos contratos restaram impossíveis de cumprimento, levando o consumidor a optar pelo seu cancelamento, justamente em decorrência da incerteza sobre a própria utilidade da prestação, haja vista que o compromisso ou evento que o fez adquirir as passagens pode não ter data definida ou ter sido cancelado em virtude das restrições de viagens, fechamentos de aeroportos, etc.

Nessa hipótese, o doutrinador Bruno Miragem esclarece haver possibilidade de revisão contratual, permitindo exonerar as partes quanto à cobrança de taxas e multas, de acordo com a teoria da quebra da base do negócio jurídico, de Karl Larenz, devendo-se aplicar a teoria da imprevisão ou permitir a sua resolução por onerosidade excessiva, sobretudo, e especialmente, nas relações de consumo onde há a figura do hipossuficiente consumidor [3].

Em que pese a pandemia configurar situação catastrófica que atingiu fornecedores e consumidores, sem responsabilidade de quaisquer deles, mesmo optando pelo reembolso, o consumidor não pode ser submetido ao desconto das multas e outras penalidades contratuais, sob pena de sofrer prejuízos econômicos por circunstâncias que não deu causa.

No cenário atual, é dever do Estado fornecer aos cidadãos instrumentos para o exercício pleno dos seus direitos, perseguindo medidas que evidenciem a hipossuficiência do consumidor e salvaguarde os seus direitos, bem como promova normas legais de preservação e manutenção da economia, a fim de que o país volte a ser capaz de gerar renda e o crescimento seja retomado, mesmo após toda a quebra da cadeia produtiva ocasionada pelo covid-19 sem que, para isso, imponha ao consumidor a supressão das suas garantias constitucionais.

No entanto, ao publicar Medidas Provisórias cuja intenção é a de transferir ao consumidor o prejuízo econômico decorrente da paralisação das atividades no país causados pela pandemia de ordem global, o Poder Público não observou os preceitos constitucionais que regem o Estado Democrático de Direto, tomando, inclusive, uma série de medidas que divergem daquelas adotas por outros países que também vêm sofrendo os efeitos provocados pelo Coronavírus.

Decerto, os direitos fundamentais não possuem caráter absoluto como muito se imagina, sendo possível a sua suspensão e/ou restrição em momentos críticos atravessados pelo Estado, com o intuito de preservar e se alcançar o bem comum. Contudo, existem direitos fundamentais invioláveis: são aqueles que, mesmo em períodos de extrema crise, em hipótese nenhuma poderão vir a sofrer qualquer suspensão e/ou restrição; do contrário, estaria configurada violação aos direitos humanos (mínimo existencial de consumo) [4].

Os direitos previstos na Carta Magna são resultados de demanda democrática, expressos através de movimentos sociais em busca de uma sociedade justa, livre e solidária, e de proteção aos direitos fundamentais nela elencados, que não permite, mesmo nos casos de decretação de Estado de Calamidade Pública, que qualquer legislação infraconstitucional mitigue direitos fundamentais.

Por todo o exposto, não é possível, em nome da crise econômica atravessada pela covid-19, que se flexibilizem direitos fundamentais a serviço do capital, como propuseram as MPs nº 925 e 948/2020, cujos dispositivos violaram uma série de diretrizes constitucionais ao buscar subtrair aquilo que é inegociável, o mínimo existencial, entendido como “conjunto de garantias materiais para uma vida condigna” [5].


Notas

[1] BARROSO, Luís Roberto. Em algum lugar do passado: Segurança jurídica, direito intertemporal e o novo Código Civil. Disponível em https://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art_03-10-02.htm. Acesso em: 27/07/2020.

[2] STJ, Questão de Ordem no REsp 1.498.484/DF, 2ª Seção, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 25/06/2019.

[3] MIRAGEM, Bruno. Nota Relativa à Pandemia de Coronavírus e suas repercussões sobre os Contratos e a Responsabilidade Civil. Revista do Direito do Consumidor, São Paulo, ano 20, v. 1015, mai. 2020.

[4] DAHINTEN, Augusto Franke. DAHINTEN, Bernardo Franke. Direito do Consumidor como Direito Fundamental e o Ensino Superior. Revista do Direito do Consumidor, São Paulo, v. 106, 2016.

[5] SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado. Revista de Direito do Consumidor. Vol. 61. 2007

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Sobre a autora
Adrielle de Oliveira Barbosa Ferreira

Advogada atuante nas áreas Trabalhista, Cível e Consumerista. Graduada em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSal. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Católica doSalvador - UCSal. Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes - UCAM. Sócia no Ricardo Xavier Sociedade de Advogados. Professora de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na UNIMAM -Centro Universitário Maria Milza. Mentora para a 1 fase do Exame de Ordem.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Adrielle Oliveira Barbosa. Conflito entre normas de enfrentamento ao covid-19: o CDC e as MPs 925 e 948/2020. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6239, 31 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84336. Acesso em: 22 dez. 2024.

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