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Críticas a um acordo de não persecução penal

06/08/2020 às 11:10
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Onyx Lorenzoni, Ministro da Cidadania, confessou ter cometido o crime de caixa 2. Ele se comprometeu a pagar R$ 189.145,00 como multa para que a investigação seja encerrada. Há algo errado no caso?

I – UM ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

Segundo o site do Estadão, em 3 de agosto do corrente ano, a Procuradoria-Geral da República (PGR) encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um acordo sigiloso assinado com o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, em que o político confessa ter cometido o crime de caixa 2. Ele se comprometeu a pagar R$ 189.145,00 como multa para que a investigação seja encerrada.

O acordo de não-persecução penal (ANPP) ainda precisa ser analisado pelo relator do caso no Supremo, ministro Marco Aurélio Mello, para ter sua validade confirmada. Se homologado, impedirá Onyx de ser punido e enquadrado na Lei da Ficha Limpa, a qual estaria sujeito caso a investigação resultasse em condenação.

Para calcular o valor que o infrator deverá pagar, a PGR analisou fatores como a gravidade da conduta (que foi considerada máxima), a motivação da infração, as consequências do delito e o itinerário do crime. A partir daí, baseou-se na legislação que prevê para infratores prestação pecuniária de no mínimo 1 salário mínimo (R$ 1.045,00) e no máximo 360 salários mínimos (R$ 376.200,00). Ao final, foi acordado o pagamento do valor correspondente à metade do máximo, mais um salário mínimo: R$ 189.145,00 mil. Essa base de cálculo deve ser usada em eventuais novas negociações.

Informou, ainda, o Estadão, naquela edição, que Onyx Lorenzoni admitiu ter recebido doações não contabilizadas do grupo que controla a empresa JBS em valores somados de R$ 300 mil, sendo R$ 100 mil nas eleições de 2012 e R$ 200 mil nas eleições de 2014. O caixa 2 foi revelado nos acordos de colaboração premiada de delatores da JBS.

O acordo de não persecução penal é exemplo de sanção premial dentro do que Carlos Cóssio estudava para a chamada teoria egológica do direito.

Dita o artigo 28 – A do CPP:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

O art. 28-A, § 2ª, do CPP dispõe as hipóteses em que não será cabível o acordo de não persecução penal: caso seja cabível transação penal; se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; se o agente tiver sido beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração pelo acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar ou praticados contra mulher por razões da condição de sexo feminino. Aqui estamos diante de hipóteses taxativas que impedem o acordo.

A prestação de serviços à comunidade e a pena pecuniária se inserem entre as penas restritivas de direito.

As penas restritivas de direito são autônomas e substituem as privativas de liberdade (artigo 44 CP), quando: aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena, se o crime for culposo. Aplicam‐se ainda se o réu não for reincidente em crime doloso, diante da culpabilidade e antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.

O chamado acordo de não persecução penal foi objeto de ADI perante o STF. Foram propostas duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI 5790, pela AMB, e a ADI 5.793, pela OAB) visando impugnar a Resolução 181/2017, no ponto que criou o instituto. Foram editadas pelo Conselho Nacional do Ministério Público as Resoluções 181 e 183/17. 

A Resolução 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), passou a regulamentar a modalidade de acordo a ser feito como alternativa à propositura da ação penal e, após o cumprimento de suas condições firmadas pelo autor da infração penal, implicará aplicação consensual de pena restritiva de direitos, o que se traduz, sem dúvida, em mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, regra que impera no processo penal pátrio.

Como lembrou Marcellus Polastri (O Chamado Acordo de Não Persecução Penal: Uma Tentativa de adoção do Princípio da Oportunidade, na Ação Penal Pública, Gen Jurídico):

“Assim, procurou a Resolução 183/2018, com um critério objetivo, vedar a possibilidade de se aplicar o acordo de não persecução para os crimes hediondos e equiparados, bem como nos crimes de violência doméstica, adotando, ainda, uma margem subjetiva e discricionária na apreciação de cada caso concreto, pois poderá o Ministério Público não oferecer o acordo, caso este “não atender ao que seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime” (inc. VI do art. 18).

Entretanto, outro grande problema do acordo de não persecução e seu cumprimento, na forma prevista na redação original da Resolução 181/2017, era o de que ele não seria submetido à homologação pelo Judiciário, cabendo a sua aplicação e controle e, inclusive, a posterior fiscalização do cumprimento das condições impostas ao acordante autor da infração penal ao próprio Ministério Público, só intervindo na formalização do acordo o parquet, o investigado e seu advogado. Em suma, seria um acordo realizado “administrativamente”, sem chancela judicial, o que levaria a outra inconstitucionalidade: estar-se-ia impondo ao agente uma aplicação de pena restritiva de direito, sem o devido processo legal.”

Fazer ou não o acordo, apenas no âmbito do MP, é afrontar o princípio do devido processo legal.

Necessário, pois, nos termos da redação dada ao artigo 28 – A do CPP, no contexto do chamado “pacote anticrime”, a necessária homologação judicial do acordo de não persecução penal, que terá declaratória, se admitir o acordo, ou constitutivo-negativo, caso não admiti-lo.

As resoluções do CNMP ostentam “caráter normativo primário” (STF-ADC 12 MC).

Aplica-se o princípio da oportunidade.

Rodrigo Leite Ferreira Cabral (O acordo de não-persecução penal criado pela Resolução do CNMP, in Consultor Jurídico) lembrou que

“Barja de Quiroga afirma que o “princípio da oportunidade encontra-se fundado em razões de igualdade, pois corrige as desigualdades do processo de seleção; em razões de eficácia, dado que permite excluir causas carentes de importância, que impedem que o sistema penal se ocupe de assuntos mais graves; em razões derivadas da atual concepção de pena, já que o princípio da legalidade entendido em sentido estrito (excludente da oportunidade), somente conjuga uma teoria retributivista de pena” (Barja de Quiroga. Tratado de Derecho Penal, Tomo I, p. 470).

Sobre este último aspecto, Roxin e Schünemann consignam que: “com a substituição das teorias absolutas [retributivas] da pena, pelas teorias da prevenção geral e especial, que vinculam a aplicação da pena às necessidades sociais e à sua utilidade, o princípio da legalidade acabou perdendo parte de sua fundamentação teórica originária.” E continuam os autores: “As exceções ao princípio da legalidade decorrem do princípio constitucional da proporcionalidade. É dizer, seguem a ideia de que é possível renunciar à punição, quando não se encontre presente, no caso concreto, uma fundamentação preventiva (com mais detalhes, vide: Rieß, 1981, p. 5).” (Roxin; Schünemann. Strafverfahrensrecht, 27a ed., p. 77). Em sentido semelhante, confira-se Volk. Grundkurs StPO, 7a ed., p. 114 e ss. Além disso, Binder chega a sustentar que o princípio da oportunidade decorre, também, dos princípios da ultima ratio, da mínima intervenção, da não naturalização, da economia da violência, da utilidade e do princípio de respaldo (Binder. Fundamentos para a Reforma da Justiça Penal, pp. 159-181).

Tem-se então, do novo artigo 28 – A do CPP, o que se segue:

Artigo 28-A, inciso III e IV, e §§§ 5º, 7º, 8º do Código de Processo Penal (Acordo de Não Persecução Penal): (1) A possibilidade de o juiz controlar a legalidade do acordo de não persecução penal prestigia o sistema de “freios e contrapesos” no processo penal e não interfere na autonomia do membro do Ministério Público (órgão acusador, por essência); (2) O magistrado não pode intervir na redação final da proposta de acordo de não persecução penal de modo a estabelecer as suas cláusulas. Ao revés, o juiz poderá (a) não homologar o acordo ou (b) devolver os autos para que o parquet – de fato, o legitimado constitucional para a elaboração do acordo – apresente nova proposta ou analise a necessidade de complementar as investigações ou de oferecer denúncia, se for o caso.

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No julgamento da MC na Adin 6.298DF, o ministro Luiz Fux, relator, assim disse:

“Em análise perfunctória, e sem prejuízo de posterior posicionamento em sede meritória, não antevejo o requisito do fumus boni iuris para o deferimento do pedido cautelar de suspensão dos dispositivos questionados. Nesta análise preliminar, não observo incompatibilidade com os dispositivos e princípios constitucionais alegados, tais como “a autonomia do Ministério Público e a imparcialidade objetiva do magistrado”. Trata-se de medida que prestigia uma espécie de “freios e contrapesos” no processo penal (art. 28-A, § 5º). A despeito do que argumentado pela parte autora, a autonomia do membro do Ministério Público (órgão acusador, por essência) permanece plena, vez que ao magistrado cabe, no máximo, não homologar o acordo. É dizer: o magistrado não pode intervir na redação final da proposta em si, estabelecendo as cláusulas do acordo (o que, sem dúvidas, violaria o sistema acusatório e a imparcialidade objetiva do julgador). Ao revés, o juiz poderá somente (a) não homologar ou (b) devolver os autos para que o parquet – de fato, o legitimado constitucional para a elaboração do acordo – apresente nova proposta ou analise a necessidade de complementar as investigações ou de oferecer denúncia, por exemplo (art. 28-A, § 8º).”

II – O CASO CONCRETO

Trata-se, historicamente, do primeiro acordo de não persecução penal celebrado pela Procuradoria Geral da República.

Necessário que se dê a mais ampla transparência a esse instrumento processual firmado de forma a atestar a sua moralidade e conformidade aos demais princípios presentes no artigo 37 da Constituição Federal, sob pena de aplicação de sanções no campo criminal, por crime contra a Administração Pública e ainda com relação a Lei nº 8.429/92.

A reparação dos prejuízos causados deve ser integral e deve ser proposta, ao atual ministro de Estado, a correta dosimetria com relação aos seguintes itens previstos:

  1. prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
  2. pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art.455 do Decreto-Lei nº2.8488, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

Ora, é nítido que a pena pecuniária é extremamente inferior aos prejuízos detectados. Independente disso, é condição sine qua non que esses mesmos prejuízos com a conduta delituosa sejam prontamente ressarcidos.

Esse valor da pena pecuniária pelos prejuízos trazidos à sociedade funciona como uma reparação por dano moral e poderia chegar acima de duzentos mil reais.

O papel do Supremo Tribunal Federal não será de mero agente homologador desse acordo. Ao contrário, com a devida publicidade, deve observar se os termos ali previstos obedecem à devida razoabilidade e proporcionalidade, nos limites da lei.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Críticas a um acordo de não persecução penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6245, 6 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84484. Acesso em: 19 abr. 2024.

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