Capa da publicação O crime de maus-tratos a animais qualificado (Lei 14.064/20)
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Crime de maus-tratos a animais qualificado (Lei 14.064/20) – primeiros apontamentos

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4-CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho foram analisadas, sob um prisma crítico, as alterações promovidas pela Lei 14.064/20 na Lei Ambiental (Lei 9.605/98), mediante a criação de uma nova qualificadora para os casos de maus – tratos contra cães e gatos.

Iniciou-se o estudo por uma descrição da evolução histórica do tratamento penal da conduta de crueldade contra animais, a qual passou de simples contravenção para transmudar-se em crime, com o advento da Lei 9.605/98, e agora ganhar uma nova qualificadora. Observou-se que, inobstante os avanços na punição de atos cruéis perpetrados contra animais, jamais foi superado o paradigma antropocêntrico, inclusive para designação do sujeito passivo do crime e do bem jurídico tutelado. Por outro lado, há uma evolução no pensamento, reconhecendo que os animais não podem ser tratados de acordo com um modelo que os considere como meros mecanismos ou natureza inanimada, tendo em vista sua característica de seres sencientes. O reconhecimento dessa condição dos animais, mais que um juízo de valor, é um juízo de fato e não precisa, nem deve implicar em uma zoologização do homem, ou numa indevida equiparação da humanidade à animalidade, nem mesmo no reconhecimento de uma simples diferença quantitativa e não qualitativa entre essas realidades.

A criação de um grupo privilegiado de animais, no caso cães e gatos, a contarem com uma proteção diferenciada da lei penal, foi apontada como infratora da igualdade ou isonomia, sendo a solução não a eliminação da proteção penal mais rigorosa ora adotada, mas sua ampliação para todos os demais animais.

Reconheceu-se a existência de uma insuficiência protetiva com relação às condutas de maus – tratos contra animais devido às penas muito brandas do artigo 32 da Lei Ambiental. Entretanto, isso não inibe a conclusão de que a atual penalidade confronta desproporcionalmente com muitos preceitos secundários de crimes similares, ou muito mais gravosos praticados contra humanos. Novamente, a solução preconizada não é desprover os animais da proteção adequada e proporcional, mas ajustar o sistema como um todo, promovendo a uma revisão de penas que são muitas vezes até mesmo ridículas em relação à gravidade das infrações a que estão atreladas.

Sugeriu-se, de “lege ferenda”, a criação de um mecanismo de direcionamento das multas aplicadas em casos de maus – tratos a animais a instituições e programas protetivos, evitando sua destinação natural ao Funpen, conforme dispõe o Código Penal em seu artigo 49.

A penalidade de “proibição da guarda” foi analisada, concluindo-se que se refere não somente à guarda do animal especificamente maltratado, mas à de qualquer outro animal.

Tendo em vista a lacuna legal em estabelecer um tempo específico para a proibição da guarda, vislumbrou-se possível infração à vedação de penas perpétuas, sugerindo-se como solução mais adequada, também de “lege ferenda”, o estabelecimento de um prazo mínimo de interdição com reavaliações periódicas, acaso requeridas pelo interditado. Enquanto isso não ocorre, a melhor solução encontrada foi a aplicação analógica do prazo para reabilitação penal.

Foi observado que a previsão somente como pena da proibição da guarda é insatisfatória, devendo se pensar, de “lege ferenda”, na criação de uma cautelar respectiva, pois o “periculum in mora” é evidente. No atual quadro, a única opção do magistrado é apelar para o chamado “Poder Geral de Cautela”, que é muito discutível quanto à sua aplicabilidade na seara Processual Penal.

  O descumprimento da ordem judicial de proibição da guarda configurará novo ilícito a que responderá, necessariamente, o infrator, qual seja, aquele previsto no artigo 359, CP, obviamente sem prejuízo de eventual nova responsabilização por crime de maus – tratos se isso se operar em reiteração.

A pena mais gravosa ora prevista no § 1º.-A somente se aplica aos casos descritos no “caput” do artigo 32 da Lei 9.605/98, por expressa disposição legal. Não alcança, portanto, a conduta equiparada prevista no artigo 32, § 1º., da Lei Ambiental, por força do Princípio da Legalidade.

A causa de aumento de pena do § 2º., é aplicável ao “caput”, § 1º. e § 1º. – A do artigo 32 do diploma respectivo.

Não é viável a retroação da figura qualificada ora prevista no § 1º. – A para casos pretéritos, eis que se constitui em “lex gravior”.

Pode-se afirmar, por derradeiro, que a Lei 14.064/20 soluciona parcialmente uma insuficiência protetiva que existia com relação aos maus – tratos a animais, devido à previsão de penas extremamente leves. Não obstante, o avanço é limitado porque reduz o alcance da norma apenas ao que se poderia chamar de uma “casta privilegiada” de animais, quais sejam, os cães e os gatos. A revisão dessa limitação se apresenta como necessária a bem da igualdade e da satisfação, em sua inteireza, da eliminação da insuficiência protetiva que anteriormente imperava de forma absoluta, mas que agora ainda subsiste em parte. Essa subsistência viola a Constituição em seus aspectos de Justiça, Proporcionalidade, Razoabilidade e Igualdade ou Isonomia.


REFERÊNCIAS

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Notas

[1] LEITÃO JÚNIOR, Joaquim. Impactos da Lei Federal n. 14.064/2020 (Lei Sansão) no Ordenamento Jurídico Pátrio. Disponível em https://juspol.com.br/impactos-da-lei-federal-no-14-064-2020-lei-sansao-no-ordenamento-juridico-patrio/ , acesso em 04.10.2020.

[2] RODRIGUES, Danielle Tetü. O Direito e os Animais. Curitiba: Juruá, 2003, p. 76.

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[3] SZNICK, Valdir. Contravenções Penais. 2ª ed. São Paulo: LEUD, 1991, p. 234.

[4] Op. Cit., p. 312.

[5] Apud, Op. Cit., p. 312.

[6] Apud, Op. Cit., p. 312.

[7] JESUS, Damásio Evangelista de. Lei das contravenções penais anotada. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 213.

[8] FRANCO, Alberto Silva, “et al.”. Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: RT, 1995, p. 283.

[9] Op. cit., p. 284.

[10] FREITAS, Valdimir Passos de, FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes contra a natureza. 6ª ed. São Paulo: RT, 2000, p. 44.

[11] Op. Cit., p. 93 – 94.

[12] SIRVINSKAS, Luís Paulo. Tutela Penal do Meio Ambiente. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 54.

[13] SILVA, Luciana Caetano da. Fauna Terrestre no Direito Penal Brasileiro. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p. 132 – 133. Ver ainda  no mesmo sentido (sujeito passivo: coletividade / objeto material: animais): PRADO, Luiz Regis. Crimes contra o meio ambiente. São Paulo: RT, 1998, p. 38. CONSTANTINO, Carlos Ernani. Delitos Ecológicos. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 122. 

[14] SIRVINSKAS, Luís Paulo, Op. Cit., p. 54 – 55.

[15] FREITAS, Vladimir Passos de, FREITAS, Gilberto Passos de, Op. Cit., p. 96.

[16] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 312 – 313.

[17] Op. Cit., p. 313.

[18] SILVA, Luciana Caetano da, Op. Cit., p. 150 – 151.

[19] Op. Cit., p. 154.

[20] SINGER, Peter. Vida Ética. 2ª ed. Trad. Alice Xavier. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 66 – 67. Destaque-se que inclusive há normas positivas que regulam a pesquisa científica com seres humanos, procurando adotar critérios bioéticos aceitáveis. Um desses critérios estabelecido pelo Código de Nuremberg, em seu item 3, é o condicionamento da pesquisa com seres humanos à prévia experimentação com animais. Eis o texto: “O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação com animais e no conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira, os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento”. No âmbito interno existe a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que regulamenta a “Pesquisa envolvendo seres humanos”. Seu item III.3 é assim redigido naquilo que interessa ao tema ora desenvolvido: “A pesquisa em qualquer área do conhecimento, envolvendo seres humanos, deverá observar as seguintes exigências: (...) b) estar fundamentada na experimentação prévia realizada em laboratórios, animais e em outros fatos científicos”.

[21] Para uma boa noção da atuação deletéria do identitarismo vide: RISÉRIO, Antonio. Relativismo Pós – Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária. Rio de Janeiro: Topbooks, 2019, “passim”.

[22] ARGACHOFF, Mauro. Os Maus – Tratos Contra Animais e a Timidez do Legislador Pátrio. Disponível em https://delegados.com.br/noticia/os-maus-tratos-contra-animais-e-a-timidez-do-legislador-patrio , acesso em 03.10.2020.

[23] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 17.

[24] Cf. ROUANET, Sergio Paulo. O Homem – Máquina Hoje. In: NOVAES, Adauto (org.). O Homem – Máquina – a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 38.

[25] ARGACHOFF, Mauro, Op. Cit.

[26] Op. Cit.

[27] LEITÃO JÚNIOR, Joaquim, Op. Cit.

[28] ARGACHOFF, Mauro, Op. Cit.

[29] Luc Ferry nos conta sobre a frase “simpática” de Adolf  Hitler em um de seus discursos, afirmando que “no novo Reich não haverá mais lugar para a crueldade contra animais”, a qual inspiraria a Lei de Proteção Animal alemã de 24.11.1933 e o livro jurídico publicado em 1939 sob o título “O Direito Alemão da Proteção dos Animais”. É, a crueldade contra animais certamente não foi admitida no novo Reich, mas a desumanidade e a crueldade infernais contra humanos foi normalizada e normatizada à vontade. Cf. FERRY, Luc. A Nova Ordem Ecológica. Trad. Luís de Barros. Lisboa: ASA, 1993, p. 140. Vide também sobre a “doutrina penal nazista” e seus desmandos absurdos: ZAFFARONI, Eugenio Raul. Doutrina Penal Nazista. Trad. Rodrigo Murad do Prado. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019, “passim”.

[30] “Em psicologia, projeção é um mecanismo de defesa no qual os atributos pessoais de determinado indivíduo, sejam pensamentos inaceitáveis ou indesejados, sejam emoções de qualquer espécie, são atribuídos a outra(s) pessoa(s)” (grifo no original). ABDO, Camila. Projeção na Psicanálise. Disponível em https://politicaedireito.org/br/2017/06/04/projecao-na-psicanalise/, acesso em 04.10.2020.

[31] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro - Parte Geral. Volume 1. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 601.

[32] LEITÃO JÚNIOR, Joaquim, Op. Cit.

[33] GOMES, Luiz Flávio, MACIEL, Silvio. Lei de Crimes Ambientais. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 152.

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Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Bianca Cristine Pires dos Santos Cabette

Advogada, Pós – graduada em Direito Público, Direito Civil e Direito Processual Civil e Bacharelanda em Psicanálise.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos ; CABETTE, Bianca Cristine Pires Santos. Crime de maus-tratos a animais qualificado (Lei 14.064/20) – primeiros apontamentos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6307, 7 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85808. Acesso em: 22 dez. 2024.

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