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Caso Mariana Ferrer: o estupro (doloso) cometido pelo site The Intercept Brasil

04/11/2020 às 22:15
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O site divulgou que o Ministério Público argumentou que o fundamento da sentença de absolvição teria sido "estupro culposo". A absolvição foi decidida pela falta de provas. Caso André seja definitivamente absolvido, não significa dizer que Mariana tenha inventado propositadamente o crime.

Não se fala em outra coisa desde a divulgação do caso Mariana Ferrer: milhares de pessoas postando que "não existe estupro culposo", revoltadas com as notícias veiculadas inicialmente pelo Intercept e replicadas por diversos meios de comunicação.

Antes de adentrar na questão sugerida pelo título deste pequeno artigo, permitam-me analisar a questão processual e ainda as imagens da audiência amplamente divulgadas.

Com relação à absolvição do acusado André de Camargo, o site divulgou (não sei se por equívoco ou com intuito polêmico) que o Ministério Público teria argumentado em suas razões que o "estupro culposo" teria sido fundamento da sentença de absolvição.

Uma falácia, uma irresponsabilidade sem tamanho e que causou danos a todos os envolvidos. Em nenhum momento no processo, nas alegações ou mesmo na sentença, houve essa argumentação ou alegação (ao menos, não da forma como foi divulgada) por parte do Ministério Público ou do Juiz.

A absolvição foi decidida pela falta de provas. Em se tratando de estupro de vulnerável e estando a vulnerabilidade fundamentada na ausência de condição da vítima de consentir a relação sexual por conta de embriaguez, é essencial para impor uma condenação penal, que se prove tal condição e ainda, que se prove a intenção do agente (dolo) de se aproveitar da vulnerabilidade transitória da vítima para praticar a conjunção carnal ou ato libidinoso.

Segundo reportagem divulgada no site da Folha de S.Paulo, em 03/11/2020, o promotor afirmou em seus memoriais que "A instrução criminal não indicou a presença de dolo na conduta do acusado, não restando configurado o fato típico e antijurídico (crime) a ele imputado, qual seja, o delito de estupro de vulnerável". O Promotor ainda prossegue: "Como não foi prevista a modalidade culposa do estupro de vulnerável, o fato é atípico"

A argumentação do membro do Ministério Público reflete a sua percepção dos fatos e do ponto de vista técnico não merece nenhum reparo, aliás, a bem da verdade, o promotor falou o que milhares de vozes replicam hoje no mundo inteiro: "Não existe estupro culposo".

Dizer que o fato é atípico significa dizer que não existe previsão legal que defina a conduta descrita no processo como fato criminoso (fato típico).

Diante disso, embora exista prova da materialidade e da autoria (ou seja, que Mariana e André mantiveram conjunção carnal), o Juiz absolveu o réu por falta de provas, fundamentando que a prova pericial - que deu negativo para álcool e tóxicos - e a prova oral não demonstraram qualquer violência ou estado de vulnerabilidade de Mariana.

Ao menos em tese, é possível dizer que houve erro na análise das provas pelo Juiz e pelo Promotor, e é para isso que existe o recurso de apelação. Porém, milhões de pessoas, inclusive juristas (sem ao menos ter acesso ao processo), tacharam André como estuprador ou Mariana como aproveitadora. A verdade é que ninguém, sem amplo conhecimento do caso, do processo e das provas, possui qualquer condição de afirmar uma ou outra coisa.

Ainda que forçosamente, consigo entender tais atitudes quando tomadas por leigos, pois o ser humano é naturalmente cruel e essa característica tem se aflorado cada vez mais no mundo digital extremamente atroz em que vivemos. Todavia, ver juristas e estudantes de direito agindo da mesma forma me envergonha profundamente.

Com relação a audiência, lamentável (pra não dizer ilícita) a postura de todos os envolvidos! Ao meu sentir, respeitando o entendimento diverso, o advogado extrapolou o limite em suas alegações, poderia (e até deveria) argumentar praticamente tudo que argumentou, desde que fizesse com respeito, em outro tom e sem humilhar a vítima, preservando sua dignidade.

De outra banda, me causa espanto e até certa revolta, a inércia do Promotor de Justiça e do Magistrado que, ao menos nos trechos divulgados da audiência, NADA fizeram (quando tinham obrigação de fazer) para proteger a vítima e manter o controle na condução da audiência. A conduta dos três merece sim ser apurada pelos órgãos competentes.


O "ESTUPRO" do site The Intercept Brasil:

Mais uma vez o site The Intercept Brasil está envolvido na aquisição de informações de forma ilegal. Não tenham dúvidas de que as imagens da audiência divulgadas pelo site só podem ter sido obtidas por meios ilegais, isto porque a gravação nesse caso e no formato em que foi apresentada só pode ter sido realizada pelo próprio Judiciário, o que demonstra existir a possibilidade de tal arquivo ter sido obtido através de algum serventuário do Tribunal de Justiça.

Ainda que a gravação tivesse sido obtida de outra forma, o processo corre em segredo de justiça e JAMAIS poderia ser divulgado para terceiros.

Algo que me incomoda demasiadamente é a "vista grossa" que as autoridades fazem com esse tipo de situação. Cotidianamente, vê-se a divulgação de fatos e documentos sigilosos na mídia, tanto de investigações quanto de processos judiciais, mas nunca alcançam conhecimento público notícias de responsabilização daquele que vazou informações que detinha em razão do cargo ou daquele que conseguiu as informações de forma ilícita.

O que posso dizer é que o Intercept Brasil causou um dano inimaginável tanto para André quanto para Mariana. Se considerarmos a possibilidade da inocência de André (e por favor não me digam que isso não é possível), esse rapaz já teve sua imagem divulgada como estuprador para o mundo inteiro, algo que certamente lhe acompanhará o resto de sua vida.

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Com relação à Mariana, se houve o crime, não merecia essa menina, além do que já sofreu, ter sua imagem e intimidade divulgadas sem autorização. Ainda que a justiça considere que não houve o crime, a exposição de Mariana não se justifica! Milhares de pessoas já estão se referindo à ela de forma negativa e maldosa, sendo comparada à Najila Trindade (caso de grande repercussão que envolveu o jogador Neymar).

Caso André seja definitivamente absolvido, não significa dizer que Mariana tenha inventado propositadamente o crime. Ela pode (e tem o direito) de ter a percepção dela do ocorrido e isso, muitas vezes por questões meramente técnicas, não é comprovado no processo. Absolvição por falta de provas só significa dizer que não se tem prova suficiente para fundamentar um decreto condenatório, mas não significa dizer que o réu é comprovadamente inocente.

Por estas razões, dei ao artigo este título. Se o site The Intercept Brasil se permite divulgar informações sem cuidado e a qualquer preço, eu também me permito interpretar esse agir como um verdadeiro estupro doloso!

Estupro, no sentido figurado da palavra, pode significar distorção forçada, violação brutal.

Remeto-me ainda a Guimarães Rosa em Noites do Sertão: "Oh, aquilo horrorizava, parecia uma profanação bestial, parecia um estupro"

Essa foi a conduta do site distorceu fatos, violou direitos, profanou bestialmente a lei, os órgãos envolvidos e principalmente causou danos tanto à Mariana quanto ao André, colocando o mundo inteiro contra um ou outro violando sua intimidade e seu direito legal de sigilo no processo.

E por que não dizer que o Promotor de Justiça e o Juiz envolvidos no caso também sofreram danos perpetrados pela atitude dos responsáveis pelo website? Afinal, perante o mundo inteiro foram tachados como maus profissionais, desconhecedores da lei que absolveram o réu sob fundamento inexistente.

Espero sinceramente que o julgamento seja revisto pelo Tribunal de Justiça e que seja tomada uma decisão justa e legal, seja a condenação ou mesmo a absolvição nos termos da lei. Mas, também espero, que a conduta do site The Intercept Brasil seja investigada, tanto para apurar os meios pelos quais conseguiu a gravação da audiência sigilosa, como também para responder pelos danos causados às partes.

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Sobre o autor
Alexandre Soares Ferreira

Advogado, Professor de Direito Penal, Processo Penal e Prática Jurídica

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Alexandre Soares. Caso Mariana Ferrer: o estupro (doloso) cometido pelo site The Intercept Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6335, 4 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86521. Acesso em: 20 abr. 2024.

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