A vedação da sanção disciplinar de prisão nas instituições militares:

uma análise crítica à Lei 13.967/19

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10/12/2020 às 12:43
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4. A PRISÃO DISCIPLINAR NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA: NORMA CONSTITUCIONAL INCONSTITUCIONAL?

A real tentativa do legislador infraconstitucional ao vedar a aplicação de sanção disciplinar aos militares estaduais foi alinhar o processo administrativo disciplinar com o princípio garantista dos direitos humanos e demais princípios reservados ao mover processual disciplinar. Todavia, quando o fez, apenas para os militares dos Estados, deixando à margem militares pertencentes às forças armadas, fez emergir a desigualdade de tratamento entre servidores públicos aos quais, apesar de recrutados por entes federativos diferentes, não podem ser diferenciados apenas pelo serviço que prestam, pois se assim o for, um destes não poderá trazer consigo o adjetivo que o demonstra, ou seja, servidor militar.

Partindo então de possível entendimento de que a sanção disciplinar de prisão prevista na Constituição Federal, e direcionada aos militares, estaria em descompasso com outros princípios constitucionalmente previstos, como por exemplo, a dignidade da pessoa humana, ou ainda, de isonomia com servidores públicos civis (compreendidos aqueles pertencentes ao rol descrito no art. 144 da CF/88), tem-se o questionamento então de que seria tal instituto sancionador uma norma constitucional inconstitucional.

Sobre esta possibilidade de inconstitucionalidade, está a tese do professor Otto Bachof24, que vem demonstrar que tal hipótese de inconstitucionalidade de normas constitucionais seria possível quando da apreciação de normas constitucionais, ou seja, inseridas no texto da própria constituição, e que fossem contrárias ao direito natural, isto é, infringindo direito supralegal que é operado pelas próprias Constituições e do caráter fluido da fronteira entre a inconstitucionalidade e a contradição com o direito natural daí decorrente.

Segundo Bachof, as possibilidades de ocorrência de normas constitucionais inconstitucionais se apresentam quando da (i) violação da Constituição escrita, (ii) violação do direito constitucional não escrito, sendo estes compreendidos como princípios constitutivos não escritos da Constituição, direito consuetudinário ou direito supralegal positivado e, por fim, (iii) outras possibilidades em que embora situadas fora da Constituição formal, seriam materialmente parte integrante da ordem constitucional, em virtude de sua função integradora.

Dentre as hipóteses de tal ocorrência de normas constitucionais se revelarem inconstitucionais, está a possibilidade de tais normas constitucionais, previstas no próprio texto constitucional, infringirem direito supralegal positivado na própria lei constitucional, fato este que para a Constituição brasileira de 1988 se amolda nos termos do § 2º do art. 5º.

É justamente neste ponto que o Juiz Militar Paulo Tadeu Rosa25 reclama a aplicação do Pacto de São José da Costa Rica, à situação, por exemplo, de vedação ao cabimento de habeas corpus nas transgressões disciplinares militares, compreendendo assim que tal norma constitucional se demonstra inconstitucional, ou seja:

O art. 5o, LXVIII, da CF, não limita o seu cabimento. Esse cerceamento constante do art. 142, § 2o, da CF, é inconstitucional. Segundo o art. 60, § 4o, inciso IV, da CF, os direitos e garantias fundamentais assegurados aos brasileiros ou aos estrangeiros residentes no país não admitem nem mesmo Emenda Constitucional.

Sobre este ponto, na defesa desta possível inconstitucionalidade, Bachof26 afirma que se “uma norma consitucional infringir uma outra norma da Constituição, positivadora de direito supralegal, tal norma será, em qualquer caso, contrária ao direito natural e, de harmonia como exposto supra, carecerá de legitimidade, no sentido de obrigatoriedade jurídica”, afirmando ainda o autor não ter nenhuma dúvida em qualifica-la também, apesar de pertencer formalmente à Constituição, como inconstitucional.

Ocorre que a impossibilidade de aplicação de habeas corpus em relação à punições disciplinares militares, apesar de inserida no próprio texto constitucional, têm-se que sua natureza se diferencia da aplicação da punição disciplinar de prisão a qual se vê inserida no art. 5º, a qual se eleva a condição de direito fundamental, e, neste ponto, a considerar o § 1º do mencionado artigo 5º, norma esta que possui aplicação imediata.

Ainda sobre a possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais a Suprema Corte brasileira enfrentou a temática na ADI de n. 815-3/9627 em que sob a tese de Otto Bachof o Governador do Estado do Rio Grande do Sul arguiu a inconstitucionalidade das expressões “para que nenhuma daquelas unidades tenha menos de oito ou mais de setenta deputados” do parágrafo 1º e da expressão “quatro” do § 2º, ambos do artigo 45 da Constituição Federal, sustentando para tanto que há normas Constitucionais inconstitucionais, ainda quando aquelas derivem do Constituinte originário, por haver normas constitucionais – como cláusulas pétreas – superiores a outras normas também constitucionais, momento me que o Ministro Moreira Alves (Relator) ponderou que:

Essa tese – a de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras – se me afigura incompossível com o sistema de Constituição rígida, como bem observou Francisco Campos (Direito Constitucional, I, p. 392, Livraria Freitas Bastos S.A., Rio de Janeiro/São Paulo, 1956) ao acentuar que “repugna, absolutamente, ao regime de constituição escrita ou rígida a distinção entre leis constitucionais em sentido material e formal; em tal regime, são indistintamente constitucionais todas as clausulas constantes da Constituição, seja qual foi o seu conteúdo ou natureza. E repugna, porque todas as normas constitucionais originárias retiram sua validade do Poder Constituinte originário e não das normas que, também integrantes da mesma Constituição, tornariam direito positivo o direito suprapositivo que o Constituinte originário integrou à constituição ao lado das demais e sem fazer qualquer distinção entre estas e aquelas.

Apesar de esta decisão fortalecer o princípio da unicidade da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal já exerceu e vem exercendo o controle de constitucionalidade de Emendas Constitucionais assim comentado por Gilmar Mendes, mas que todavia esclarece que, a considerar as clausulas de garantia, sendo possível apontar aquelas previstas no art. 60 da CF/88, em especial a impossibilidade de deliberação de emenda tendente a abolir os direitos e garantias fundamentais, “estas traduzem, em verdade, um esforço do constituinte para assegurar a integridade da Constituição, obstando a que eventuais reformas provoquem a destruição, o enfraquecimento ou impliquem profunda mudança de identidade”.

É sob esta perspectiva que se deve questionar: qual a intenção do constituinte originário inserir no campo de normas de direito fundamental a garantia de aplicação de sanção disciplinar de prisão dos servidores militares, diferenciando-os assim dos servidores civis?

Como resposta, José Miguel Tomaz28 demonstra que ao abordar a temática da constitucionalidade das sanções militares privativas de liberdade, tomando como parâmetro a experiência da Constituição Espanhola que converge com a questão brasileira sob estudo, não é possível considerar os Corpos e Forças de segurança de caráter militar como Administração Civil, consagrando assim a constitucionalidade de previsão de no regime sancionador destas instituições militares tenha-se previsão de sanções privativas de liberdade, esclarecendo sob este ponto esclarece que:

Embora seja verdade que haja distinção em certos preceitos constitucionais (art. 8º e 104, entre outros) entre as Forças Armadas e as Forças e Corpos de Segurança, não se pode inferir que a Constituição os define como Administração Civil, uma vez que o art. 25.3 contempla o aspecto sancionador da disciplina militar, disciplina a que se refere em geral.

Esta afirmativa demonstra o erro na alteração legislativa para impossibilitar a aplicação de sanção disciplinar prevista em texto constitucional sob a afirmativa de serem os Policiais e Bombeiros Militares, a considerar a natureza de suas atividades de natureza civil, também como servidores civis, ou seja, servidores de mesma natureza e que requeiram éticas semelhantes.

De mesma sorte, a considerar a possibilidade de ilegitimidade da sanção privativa de liberdade a militares, o tema não pode ser tratado da forma que foi, ou seja, inaugurando tratamentos diferenciados a servidores militares, independente das funções que executam, pois, o que se deve defender não é a situação de aplicação, ou não, das espécies de sanção previstas, mas sim, a oportunidade de um processo administrativo disciplinar que obedeça os demais princípios reguladores do processo como, por exemplo, a ampla defesa e o contraditório.

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Sobre tratamento diferenciado entre militares estaduais e federais, a presente inovação legislativa é apenas mais um alargamento de tantas outras situações que já estão presentes no arcabouço jurídico brasileiro, sendo possível citar como exemplo a situação de crimes dolosos praticados por militares em desfavor de civis quando das atividades de Garantia de Lei e da Ordem no emprego de tropas federais e da execução do policiamento ostensivo executado por militares estaduais, em que as duas espécies de execução da atividade ocorrem em mesmo ambiente, mas que, advindo a situação de crime, inaugura-se a competência judiciaria distinta para sua apreciação, sendo a Justiça Militar para os militares federais e o Tribunal do Júri para os Estaduais. Apesar da possível inconstitucionalidade material por desvio do tratamento isonômico entre militares, este é tema para novo debate.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abordar a temática que envolve a prisão disciplinar aplicada a militares no processo administrativo disciplinar no Brasil com o advento da Constituição cidadã de 1988, em um ambiente de pleno amadurecimento democrático, em que a busca pelo reconhecimento e aplicação dos princípios de proteção a direitos humanos estabelecidos nesta mesma constituição, bem como nos pactos ratificados pelo Brasil como a Convenção Americana de Direitos Humanos, se traduz em hermenêutica de extrema sensibilidade.

Contudo, é necessário reconhecer que esta mesma Constituição de 1988, ao estabelecer a possibilidade de aplicação de uma sanção disciplinar que possa cercear a liberdade de seus servidores militares, colocando esta sanção no campo de direito fundamental, não o faz por mero capricho ou, como possam pensar outros intérpretes, para oportunizar abusos de autoridades no ambiente de caserna. Ao contrário, demonstra o constituinte originário que aos Militares, sejam estes dos Estados ou da União, se exigirá uma conduta ética irrepreensível.

Legalizar a possibilidade de prisão nos casos de transgressão militar, como uma espécie de sanção disciplinar que seja aplicável apenas aos militares federais, não trouxe para o direito administrativo militar solução de respeito aos direitos humanos e à dignidade da pessoa do servidor militar; ao contrário, inaugurou nova inconstitucionalidade que se amolda à não obediência ao princípio da isonomia entre servidores militares de entes federativos distintos, que torna-se inaceitável a defesa desta possibilidade por serem suas atividades distintas.

Não é possível negar que a Lei 13.967/19 inaugurou um novo tempo para o processo administrativo militar nos Estados, porquanto reforça a necessária aplicação de princípios constitucionais como respeito à dignidade da pessoa humana, presunção de inocência, legalidade, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, razoabilidade e proporcionalidade. Todavia, vedar a aplicação de medida privativa de liberdade como sanção disciplinar que alcança apenas os militares dos Estados é determinação que vai de encontro àquilo que o legislador constituinte oportunizou e que deve ser compreendida como de caráter geral.

Por fim, é importante que a sociedade esteja alerta quanto às ações que, veladamente, sob a falácia política de concessão de direitos a seus servidores militares estaduais, sirvam como pano de fundo para a retirada contínua de direitos, mas também de deveres que são inerentes à condição daqueles que se voluntariaram à prestação do serviço militar, independentemente do ente federativo a que estão subordinados.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Brant Vieira

Mestre em Direito. Especialização em Direito Público. Bacharelado em Direito e em Ciências Militares com ênfase em Defesa Social.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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