Capa da publicação O transporte de cargas e o STF: jurisprudência e antidireito
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O tema 210 de repercussão geral e o transporte de cargas: jurisprudência e antidireito

18/12/2020 às 14:33
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Defende-se a primazia da reparação civil integral e da não incidência do tema 210 do STF nos litígios envolvendo cargas e seguradores sub-rogados.

Desde que o Supremo Tribunal Federal a prolatou, a decisão de repercussão geral no RE 636.331/RJ (Tema 210) tem protagonizado controvérsias das mais acirradas.

Não mais se discute que, em litígios envolvendo passageiro e transportador aéreo, contrato internacional de transporte de pessoas e extravio de bagagem, aplica-se a Convenção de Montreal, em vez de o Código de Defesa do Consumidor. Nem que, nesse mesmo tipo de litígio, pode-se observar, à luz dos critérios previstos na norma, a limitação tarifada em favor do transportador aéreo.

Mesmo os que repudiam a figura da limitação de responsabilidade, como eu, entendem que haja uma razão ôntica para específica e extraordinariamente reconhecê-la naquele tipo particular de caso.

O que se discute é se a decisão repercute no transporte aéreo internacional de cargas, sobretudo quando o interessado não for o proprietário delas, mas o segurador sub-rogado.

Dentre outras razões porque, ao contrário da bagagem, a carga tem valor conhecido, predeterminado; independe de declaração específica com pagamento de quantia muito maior de frete. Tenho por certo que esse pagamento suplementar, a que chamam frete ad valorem, é nada mais do que uma chantagem comercial, abuso do poder econômico, argumento metajurídico — que, no entanto, tem lá a sua força.

Além da afronta aos incisos V e X do art. 5º da CF, ao princípio da indenizabilidade irrestrita, a exigência do frete ad valorem para estes fins é inconstitucional, por duas razões:

Em primeiro lugar porque, segundo o art. 170 da Constituição Federal, “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios.”

A exigência de um frete superior ao previsto afronta os ditames da justiça social, pois gera um desequilíbrio na relação entre as empresas que, no final das contas, acaba, inevitavelmente, repassado ao contratante do transporte e do seguro, gerando-lhe mais custos a troco de nada, retirando-lhe mais dinheiro sem fundamento sólido, tudo isso apenas para o transportador fazer aquilo que ele já deveria fazer naturalmente, que é cumprir perfeitamente sua obrigação. Envidaria esforços apenas para fazê-lo com apuro apenas quando lhe pagassem mais, descuidando das que pagassem menos. E isso é um perfeito absurdo.

Em segundo lugar, porque, conforme o art. 173, V, §4º da CF/88: § 4º, a lei “reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.”

Ora, o frete ad valorem, junto com a limitação de responsabilidade mesma, representaria aumento arbitrário dos lucros, já que o descompasso entre o ressarcimento, buscado pela seguradora sub-rogada, e os prejuízos, pelo descumprimento do contrato de transporte, seriam excessivamente grandes, e o transportador aéreo lucraria com o enfraquecimento do direito de regresso daquela que representa todo o colégio de segurados. Causaria quase sempre prejuízos maiores do que os que lhe seria exigido reparar.

O transportador impõe um valor maior – muito maior, aliás – para fazer aquilo que ele já deveria em nome do Direito e da ordem moral: prezar pela integridade da carga que transporta e, não o fazendo, reparar integralmente o prejuízo que causar.

De todo modo, o fato é que a decisão de repercussão geral não se aplica automaticamente a todos os litígios. E é interessante trazer o voto da ministra Rosa Weber, na decisão paradigmática, que restringe expressamente o entendimento do tema 210 a situações iguais:

“Volto a registrar, por pertinente, que a fixação da tese de repercussão geral acima está intimamente conectada ao exame de caso paradigmático concernente à responsabilidade do transportador aéreo internacional por danos materiais decorrentes da perda, destruição, avaria ou atraso de bagagem.” (RE 636.331/RJ, fl. 83)

Nesse sentido, e desde que o precedente começou a ressoar no universo jurídico, fui expondo alguns argumentos, a seguir resumidos:

1) O Tema 210 não se aplica ao transporte de carga, muito menos ao segurador sub-rogado;

2) O espírito da Convenção de Montreal autoriza dizer que, em caso de conduta temerária, falha inescusável, do transportador, a norma da limitação de responsabilidade fica afastada;

3) A limitação de responsabilidade choca-se com o princípio-regra do art. 944 do Código Civil e com a garantia constitucional da indenizabilidade irrestrita, nos termos do art. 5º, V e X, da Constituição Federal;

4) A norma da limitação de responsabilidade, baseada em peso de mercadoria, é anacrônica e até moralmente desordenada. Anacrônica porque inspirada em norma praticamente igual, da antiga Convenção de Varsóvia, do início do século passado, pensada para proteger a indústria da navegação aérea em formação. Naquele tempo, atividade insegura, com pouco amparo tecnológico, necessitava de proteção jurídica. Sem falar que peso, atualmente, não é nenhum sinônimo de valor. Hoje, a navegação aérea é bastante segura e sua indústria, robusta. O critério limitativo adotado é irrazoável por não levar em conta as peculiaridades do caso concreto para fixar a reparação, e acaba premiando o causador de dano, além de prejudicar a vítima ou quem lhe fizer as vezes. 

5) No caso específico do litígio judicial protagonizado por segurador sub-rogado, o Tema 210 colidirá com a Súmula 188, também do Supremo Tribunal Federal.

Aos argumentos acima expostos, soma-se a teoria da modulação dos precedentes. É preciso então observar duas coisas: a) um precedente só pode ser aplicado em um caso concreto que foi simetricamente igual ao do que o gerou; b) se a ação tiver sido distribuída antes da prolação do precedente, não há como aplicá-lo, eis que a parte demandante exercitou seu direito em contexto solidamente diverso, não podendo ser prejudicada quando de súbito surgiu um novo posicionamento.

Por tudo isso me sinto seguro em afirmar que o Tema 210 não se aplica ao transporte de carga, não é oponível ao segurador sub-rogado e a própria norma da limitação de responsabilidade é, com o perdão pelo trocadilho, muito limitada na aplicação. Nem todo caso concreto se submete ao seu gosto.

Muito aproveita dizer que a proteção do credor insatisfeito, da vítima do dano ou do segurador sub-rogado reveste-se de invulgar interesse público e de elevada função social. Trata-se, pois, de algo intimamente ligado à atual leitura do Direito, sua visão econômica e sua constante busca por justiça.

Toda essa argumentação, penso, sem falsa modéstia, seria bastante para se afastar o Tema 210 dos litígios de transportes de cargas, sobretudo quando demandados por seguradores sub-rogados. Bastante, portanto, para se afastar a reboque a limitação de responsabilidade e se preferenciar a reparação civil integral.

Mas vou além; trago algumas decisões recentes do Supremo Tribunal que afastam a decisão de repercussão geral nos transportes de cargas, ora por reconhecer as grandes diferenças fáticas, ora por iluminar corretamente as particularidades do segurador sub-rogado, ora pela modulação, senão temporal, digamos espacial, do precedente.

Exponho tudo isso no memorial escrito em conjunto com Leonardo Quintanilha, apresentado por ocasião do julgamento de um caso concreto; reproduzo-o aqui quase que integralmente, tal qual entregue aos desembargadores e protocolado nos autos do processo. Embora de domínio público, omito referências às partes por mera delicadeza.

MEMORIAL DA APELADA.

Tribunal de Justiça de São Paulo. 12ª Câmara de Direito Privado. Apelação nº 1030265-87.2014.8.26.0224. Ação Regressiva de Ressarcimento. Processo Eletrônico. Relator: Desembargador Jacob Valente. Processo: 1030265-87.2014.8.26.0224. Comarca: São Paulo. Juízo de origem: 1º Vara Cível (Foro Central)

Excelência,

Fala-se de ação regressiva de ressarcimento que a seguradora sub-rogada nos direitos do dono da carga extraviada moveu contra a transportadora culpada, intencionando reaver a integralidade dos prejuízos que indenizara.

Em sentença, a Ré foi condenada, porém nos limites tarifados da Convenção de Montreal. Em seguida, de modo contrário, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por entender principalmente que o CDC seria aplicável em benefício da Autora, condenou a Ré ao ressarcimento integral dos danos.

A decisão era anterior à fixação do tema nº 210 de repercussão geral. Com o julgamento em questão, o caso retornou a 2º grau para que, se houver tal necessidade, o Tribunal de Justiça faça juízo de retratação e aplique a limitação de responsabilidade à base da Convenção de Montreal.

Mas, definitivamente não é o caso.

De modo geral, há, no mínimo, três grandes motivos pelos quais não se deve aplicar a limitação, mesmo depois da decisão do STF.

Em primeiro lugar porque, mesmo que se lhe estendesse os preceitos da Convenção de Montreal, o precedente (RE 636.331) falava de transporte de passageiros e extravio de bagagem, enquanto este caso envolve prejuízos comerciais indenizados por seguradora em transporte de coisas, que justamente por isso se encontra coberto pelo manto da sub-rogação. Embora não pareça, isso muda tudo.

O próprio Supremo Tribunal Federal várias vezes tratou de dizer que a situação similar à deste caso, com seguradora sub-rogada nos direitos do segurado, é inteiramente distinta do precedente em que a transportadora busca equivocadamente encaixá-lo, tentar forçar uma uniformização ao que é essencialmente diferente, apenas para fugir do dever de indenizar.

Foi o que, em momento posterior à fixação do tema nº 210 de repercussão geral, entendeu o Ministro Alexandre de Moraes (ARE 1.146.801/SP):

“No caso dos autos, inaplicável o referido precedente paradigma, pois não se trata de transporte de passageiros e de bagagem, mas de vício na prestação de serviço de transporte aéreo de mercadoria e o consequente reconhecimento do direito de regresso da parte recorrida decorrente de contrato de seguro.” (Grifos da Autora)

A Ministra Cármen Lúcia, no RE 1252909/SP, também ressaltou a dissemelhança das situações, em distinguishing realmente exemplar:

“Inviável a aplicação do Tema 210 da repercussão geral, pois ausente identidade entre a matéria trazida na espécie e a tratada no Recurso Extraordinário n. 636.331, Relator o Ministro Gilmar Mendes. Na espécie vertente discute-se direito de regresso decorrente de contrato de seguro em transporte aéreo de cargas entre companhia aérea e seguradora, não de limitação da responsabilidade de transportadoras aéreas de passageiros por extravio de bagagens em voos internacionais.” (grifos da Autora)

É exatamente como entendia ainda a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Ag. Reg. no RE com Agravo 1.240.608/RJ, acórdão de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski:

“I - A discussão em torno de eventual direito de regresso para reparação de danos decorrentes de extravio de mercadoria em transporte aéreo internacional pago pela seguradora, não se submete ao Tema 210 da Repercussão Geral.”(grifos da Autora)

Ressaltando que essa é realmente a jurisprudência do Supremo, a Ministra Rosa Weber, no RE 1.196.955/SP, reforçou os termos do acórdão que a precedia e condenava a transportadora ao ressarcimento integral, asseverando que a limitação de responsabilidade de forma alguma poderia afetar a seguradora sub-rogada:

O entendimento adotado no acórdão recorrido não diverge da jurisprudência firmada no âmbito deste Supremo Tribunal Federal, no sentido de inaplicabilidade do leading case objeto do Tema 210 à hipótese em que discutido mero direito de regresso decorrente de contrato de seguro em transporte aéreo de cargas entre companhia aérea e seguradora, razão pela qual não se divisa a alegada ofensa aos dispositivos constitucionais suscitados. (grifos da Autora)

O Ministro Luiz Fux, na relatoria do acórdão do AG.REG. no AI 822.191, seguido pelos outros Ministros, também distingue muito bem um caso de outro, afirmando, com a clareza de três sistemas solares, que a limitação de responsabilidade firmada no precedente não se aplica à seguradora:

Por outro lado, destaco a existência de distinção entre o caso sub examine, que versa sobre danos decorrentes de falha na prestação de serviço de transporte aéreo de cargas e o consequente direito de regresso decorrente de contrato de seguro, e o leading case objeto do Tema 210 da repercussão geral (RE 636.331, Rel. Min. Gilmar Mendes), em que controvertida a limitação da responsabilidade de transportadoras aéreas de passageiros por extravio de bagagens em voos internacionais, não se aplicando à espécie, por conseguinte, a tese firmada no referido precedente. (grifos da Autora)

Logo, é simplesmente impossível se basear no entendimento prevalente do STF para afastar a integralidade da indenização. Ele justifica precisamente o contrário, e múltiplas vezes, por mais que o CDC não prevaleça sobre a Convenção de Montreal, aliás a única coisa que foi realmente firmada no tema 210. Nem a limitação de responsabilidade foi estendida a todo e qualquer caso. Nem o critério da especialidade foi visto como absoluto.

Todas essas decisões estão nos limites interpretativos do art. 178 da Constituição Federal e, portanto, ainda dentro do tema 210 de repercussão geral.

No plano contratual, todo devedor de obrigação de resultado responde objetivamente pelo inadimplemento de sua obrigação. A reparação civil há de ser sempre ampla e integral, conforme se pode extrair dos incisos V e X do artigo 5º da Constituição Federal, com seu rol exemplificativo de direitos e garantias fundamentais, e do artigo 944 do Código Civil, a dispor que a indenização se mede pela extensão do dano.

Não há como justificar a limitação de responsabilidade do transportador aéreo de carga em caso de faltas e avarias, os danos derivados da desídia operacional e da incúria contratual.

Além do mais, praticamente sempre a culpa grave se faz presente num contrato de transportes de cargas descumprido. A carga só se avaria ou extravia se o transportador fracassa rotundamente nos deveres objetivos de guardar, conservar e entregar o bem que lhe confiaram. Não costuma ser necessário identificá-la em danos do gênero, o que não muda o fato de que ela está ali enraizada, ao quintal da casa dos fatos.

Há quase cem anos, na época em que se elaborou a Convenção de Varsóvia, base da Convenção de Montreal, a limitação tarifada até tinha cabimento. A indústria da navegação aérea dava os primeiros passos no ar, e os riscos se afiguravam maiores que os atuais. Com a limitação de indenizações a valores além dos quais a transportadora não pagaria, a proteção ao setor se revelava importante, até para fomentá-lo.

Hoje mais crescida e madura, a navegação aérea não se cerca mais dos perigos da infância; dispensa os cuidados especiais da lei como quem deita fora as rodinhas da bicicleta. Na atualidade, empresas que fabricam ou montam aviões trabalham com o chamado risco zero. É bem difícil um avião cair; e quando cai, a causa costuma estar ligada à fabricação da aeronave, à universal falha humana.

Além disso, o dano contratual e o modo como o Judiciário lida com ele trazem implicações, especialmente ante a análise econômica do Direito, com as interpretações que lhe dá a Escola de Chicago. Decisões judiciais não existem num mundo à parte, e acabam projetando, nessa realidade una em que todas as ciências coexistem, consequências econômicas por vezes perigosas.

A punição exemplar ao transportador desidioso, garantindo o princípio da reparação civil integral, oferece uma previsibilidade mercadológica, consubstanciada naquela certeza razoável sem a qual os negócios simplesmente não andam.

Sendo assim, é preciso tomar um cuidado extremo ao aplicar precedentes, vendo se as circunstâncias que embasaram o paradigma se amoldam ao caso que se apresenta. E aqui evidentemente não se fala da mesma coisa.

Em segundo lugar porque, ao manusear as faturas comerciais (invoices), a transportadora se vê diante do valor da mercadoria — e isto afasta qualquer intento de limitar responsabilidades (art. 22.3 da Convenção). O conteúdo da carga e seu respectivo valor eram presentes à consciência dela; se não conhecidos, eram conhecíveis; se não em ato, o eram em potência.

No transporte internacional de carga os valores são rigorosamente documentados, submetidos à apreciação de órgãos públicos alfandegários, além de previa e formalmente conhecidos pelos transportadores.

Pouco importa a modalidade de frete pago para um determinado transporte, se ad valorem ou não. Não é adequado tratar tais casos sob a mesma dinâmica da decisão do Supremo; aqui, pelo contrário, a carga possui valor líquido e certo, previamente conhecido pelo transportador aéreo.

Paga a indenização, só interessa para a seguradora receber o que o ato ilícito a fez desembolsar para cobrir as perdas do dono da carga, para tratar das feridas de um patrimônio comum ao mútuo por ela resguardado e esfuracado pela negligência de terceiro. Na condição de transportador de cargas, não pode se dizer desconhecedor do valor daquilo que carrega.

Não fosse dessa forma, no confronto judicial com a seguradora sub-rogada, o transportador aéreo poderia imaginar-se eternamente protegido contra o próprio dever, coberto pela aura tépida e complacente da limitação, como se a Convenção de Montreal lhe fosse sair perdoando quase que a dívida toda. E isso seria uma aberração.

Valor conhecido, ou conhecível, é valor declarado. Ainda que a ciência se dê por outros meios, idôneos é certo, como pela consulta a faturas comerciais, exatamente como no RE 1.242.964/SP, em que, nas palavras do ministro Luiz Fux: "(...) o tribunal a quo concluiu que teria havido a declaração do valor da carga transportada, circunstância que, nos termos das referidas Convenções, afasta a limitação da responsabilidade do transportador".

Em terceiro lugar porque é com base na mesma Convenção de Montreal — quando não pela quase onipresente culpa grave ou pelo sempre presumido conhecimento do valor — no artigo 37 que Tribunais estaduais têm rejeitado as disposições tarifadas para o exercício do seu direito de regresso:

"PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. TRANSPORTE AÉREO. CARGA. AVARIA. SEGURO. REGRESSO. CONVENÇÃO DE MONTREAL. DECADÊNCIA. LIMITE. 1. Ainda que a Convenção de Montreal se aplique a indenizações por dano material relativas a carga, é certo que a própria convenção observou que não afetaria direito de regresso. O direito de regresso, então, segue normas internas. 2. Não cabe aplicação da indenização tarifada da Convenção de Montreal quando a carga transportada é devidamente informada, inclusive quanto a seu valor. 3. O Mantra Siscomex supre a falta de protesto. Diante disso, não há que se falar em decadência por falta de protesto. 4. A empresa que efetivamente presta o transporte é parte legítima para responder por danos decorrentes desse serviço. 5. Recurso não provido". (TJ-SP - Ap. Cível nº 1061664-45.2019.8.26.0100 - 14ª Câmara de Direito Privado - rel. Melo Colombi - J. 12/0/2020).

Na leitura muito prudente do desembargador Melo Colombi, a própria Convenção de Montreal acaba prevendo que o direito de regresso não pode ser por ela prejudicado, permanecendo a seguradora sub-rogada deste modo imune ao critério limitador.

Sem falar que o Tema 210 do STF, erguido em defesa contra a pretensão da seguradora sub-rogada, choca-se ainda com a Súmula nº 188 da própria Corte Maior.

Já se mostra que a situação não pode ser considerada sob um único aspecto. Divergindo os fatos, a natureza das partes que demandam, não há precedente válido (art. 926 e 927, III, CPC). A complexidade que não poucas vezes envolve os desdobramentos econômicos do ressarcimento da seguradora é maior do que a de um passageiro cuja bagagem tenha sido extraviada com um punhado de roupas e meia dúzia de acessórios.

A aplicação do Tema 210 em um litígio de ressarcimento de seguradora sub-rogada contra transportador, por exemplo, poderá fazer com que este, causador de um dano de R$ 10 milhões, pague algo perto de R$ 10 mil reais. E isso é um rematado absurdo, incompatível com o que há de mais antigo e de mais moderno no Direito, e vai atingir a espinha dorsal do sistema de seguros.

Casos de descumprimento contratual de transporte de cargas, inseridos no contexto da sub-rogação da seguradora, não podem se submeter a esse critério, independentemente do pagamento do chamado frete ad valorem.

1) A Autora não pode ser prejudicada por aquilo que o segurado faz, ou deixa de fazer, em prejuízo do ressarcimento dela (art. 786, §2º, CC). E, na prática, ela não pode obrigá-lo a pagar o frete ad valorem, sob pena de dirigismo contratual no contrato de seguro.

2) A dinâmica entre Autora e Ré, surgida da sub-rogação legal, não é precisamente a mesma da relação original de transporte. Nem deve ser encarada da mesma forma, já que não há nenhum instrumento contratual a uni-las.

3) A seguradora pagou o valor inteiro. Por que estranha razão haveria de receber somente a parte diminuta do ressarcimento, as migalhas que lhe sobra após esse injustificável tarifamento, calculado ao peso da carga?

Ainda mais hoje em dia, em que peso sequer é sinônimo de valor. Basta imaginar as novas tecnologias: microchips, smartphones, remédios.

Se o precedente não fosse inteiramente distinto ao caso que gerou a decisão de repercussão geral, se o STF mesmo não houvesse dito que o tema nº 210 não se aplica a casos do gênero, se a Convenção mesma não afastasse a limitação de responsabilidade aqui, se não houvesse ainda a necessidade de modular as alterações — ainda assim seria absurdo aceitar esse tipo de limitação.

São inúmeras as razões que, independentes do CDC e listadas acima, existem para manter o acórdão e a indenização integral — como se pode ver no próprio posicionamento dos Ministros do STF, expostos no início deste memorial. E é assim que, em nome da Justiça, se deve proceder.

Com os cordiais cumprimentos, (...)

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No memorial é possível ver que não são poucas as decisões do Supremo Tribunal Federal, e nada menos que precisos os fundamentos que destacam, para afastar o Tema 210 em litígios fundados no transporte de carga e promovidos por seguradores sub-rogados.

Seria tolice negar certo envaidecimento pelo fato de os fundamentos das decisões selecionadas seguirem na mesma linha dos argumentos que há tanto defendo, alguns antes mesmo da decisão de repercussão geral.

Questões processuais e constitucionais à parte, a verdade é que a limitação de responsabilidade não mais se alinha ao Direito atual. É essencialmente injusta, juridicamente claudicante e moralmente condenável.

Limitar a responsabilidade do causador de dano é prejudicar a vítima uma segunda vez. No caso específico do segurador sub-rogado é lesar diretamente o colégio de segurados, o mútuo, e, indiretamente, toda a sociedade, dada a singular importância do negócio de seguro, que, mediante certa quantia, transfere os riscos do contratante ao contratado, permitindo que aquele possa se preocupar mais com a sua atividade e menos com possíveis danos capazes de inviabilizá-la. Disse isso ontem; digo hoje; direi amanhã.

É bem verdade que nem todos enxergam o assunto do mesmo modo. Da mesma forma que invoco decisões, monocráticas e colegiadas, a favor dos meus argumentos, também coleciono várias delas em sentido oposto. Negá-lo seria desonestidade intelectual. Para ser sincero, penso que rios de tintas correrão até que o assunto se pacifique.  

Mas estou animado. As decisões recentes da Corte Suprema reforçam a musculatura da argumentação que defendo e, espero, devem servir de guia para os demais órgãos jurisdicionais.

O pleito defendido goza de bons fundamentos legais e jurídicos. Sedimenta-se nos princípios fundamentais da razoabilidade, da proporcionalidade, da equidade, da boa-fé, da isonomia e, claro, da reparação civil integral. É, ainda, informado pela ordem moral, nascido do Direito Natural e o que melhor se põe ao conceito de Justiça.

Não se pode falar em Justiça quando o autor de ato ilícito se esconde por trás do biombo das formalidades e foge do dever de reparar integralmente os prejuízos derivados de sua conduta, notadamente quando derivada do descumprimento de obrigação de resultado (dano contratual), do manejo de fonte de risco (de causação de dano), da desídia operacional e da incúria administrativa.

Aqui não se pugna pela defesa obstinada dos seguradores de cargas. Isso faço em juízo. A questão é preservar, junto da ética, a estética do Direito, a trazer uma simetria das relações econômico-sociais, facilitando a busca de normas mais justas e, nunca é demais enfatizar, a coroação da Justiça, objeto maior do Direito.

Sabemos todos que a função da reparação civil é reparar o dano. Mas não olvidamos que também é punir o causador de dano e desestimular comportamentos inadequados, lesadores, injustos. A limitação de responsabilidade não repara o dano, não satisfaz o credor e ainda serve como espécie de salvo-conduto para a incompetência operacional. De maneira que, qualquer que seja a fonte ou a justificativa, o critério tarifado não promove aquilo que o Direito tem de mais fundamental.

Pelo contrário. No contexto do transporte de cargas e da seguradora sub-rogada, ele, a um só tempo, desincentiva o honeste vivere, desrespeita o neminem laedere e desvirtua o suum cuique tribuere[1]. Nesse sentido, a limitação da indenização à vítima do dano, desproporcional e irrazoavelmente reduzida, culmina na atrofia da responsabilidade civil, e passa a representar, na realidade litigiosa, o antidireito por definição. E isso o Supremo Tribunal Federal já notou.


Nota

[1] Ulpiano: “Os preceitos do homem são estes: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu.”

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Sobre o autor
Paulo Henrique Cremoneze

Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CREMONEZE, Paulo Henrique. O tema 210 de repercussão geral e o transporte de cargas: jurisprudência e antidireito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6379, 18 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87402. Acesso em: 22 dez. 2024.

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