A substituição de RBG e seus desdobramentos políticos
Enquanto os admiradores despediam-se de RBG, discutia-se no meio político a sua substituição. Nos Estados Unidos, os juízes da Suprema Corte são nomeados pelo presidente em exercício e sujeitos a uma audiência de confirmação pelo Comitê Judiciário do Senado. Trump posicionou-se ato contínuo à passagem de RBG, afirmando que nomearia uma substituta mulher para ocupar a cadeira antes do fim de seu mandato, causando divergências. Democratas argumentavam ser injusta a indicação de uma juíza a poucas semanas das eleições, que aconteceram no dia 3 de novembro.
Situação semelhante ocorreu ao final do segundo mandato de Barack Obama. À época, os republicanos protestaram contra a nomeação de um substituto para ocupar o assento do conservador Antonin Scalia, que havia falecido em fevereiro de 2016, sob o argumento de que as eleições se aproximavam e que, portanto, os eleitores deveriam ter a chance de se pronunciar por meio da escolha do novo chefe do executivo. O líder da maioria republicana do Senado, Mitch McConnell, não permitiu que a Casa (controlada pelo Partido Republicano) sequer considerasse a nomeação do presidente democrata. Após o início de seu mandato, já em janeiro de 2017, Donald Trump imediatamente nomeia o conservador Neil Gorsuch para ocupar o lugar vago na Suprema Corte e sua nomeação é confirmada pelo Senado no início de abril.
Mesmo sob acusações de inconsistência e hipocrisia, já agora McConnell (que permanece líder do Senado de maioria Republicana) deixou claro que faria todos os esforços necessários para preencher a vacância ainda antes do final do ano. Como previsto, a então juíza da Corte de Apelações do Sétimo Circuito, Amy Coney Barrett, foi nomeada pelo presidente Trump e confirmada pelo Senado em tempo recorde, no dia 26 de outubro. A Suprema Corte, que já contava com uma maioria conservadora de 5 a 4, agora passa a ter uma maioria de 6 a 3, com a substituição da liberal Ruth Bader Ginsburg por Barrett, que possui um histórico consistente de posicionamentos conservadores.
Argumenta-se que essa mudança ideológica no principal órgão jurisdicional do país será sentida por décadas, já que a Corte exerce um papel central na determinação de políticas sociais no país. Teme-se que, tendo a corte composição conservadora, conquistas sociais como a legalização do aborto (decidida em 1973 no caso Roe v. Wade) e do casamento de pessoas do mesmo sexo (obtida com Obgerfell v. Hodges em 2015) em todo o território americano, ou até mesmo o Obamacare, que está atualmente sendo analisado pelo Tribunal, podem ser colocadas em risco.
Esses são apenas alguns exemplos de uma longa lista de temas controversos que podem chegar à Suprema Corte nos próximos anos, dentre os quais podemos citar imigração, discriminação, mudança climática, e até as eleições presidenciais de 2020. Judge Messitte afirma que a Corte está caminhando para tomar decisões que não são apoiadas pela maioria do povo americano. Ele cita o exemplo do direito ao aborto em todo o território nacional, que é aprovado por cerca de 65% da população. “O que temos aqui, na minha opinião, é o esforço de uma minoria de controlar o futuro”, diz.
Pupila do famoso conservador Antonin Scalia, Coney Barrett se autodeclara uma originalista. O originalismo no Direito norte-americano é uma vertente de interpretação judicial mais restrita que defende que as disposições da Constituição devem ser interpretadas de acordo com o significado que elas tinham à época de sua criação. O professor Aziz Hug, da Universidade de Chicago, declarou ao jornal “The Guardian” que o discurso político do originalismo está alinhado às preferências do partido republicano, que acaba promovendo aqueles que adotam essa interpretação da Constituição. A grande quantidade de nomeações do presidente Trump ao judiciário federal nos seus quatro anos de mandato colocou a corrente originalista em grande evidência.
Segundo o Judge Messitte, o partido republicano já sinalizara há algumas décadas que tinha como um de seus principais objetivos povoar o sistema judiciário com magistrados de orientação conservadora. Os juízes do sistema judiciário federal americano, desde a primeira instância à Suprema Corte, são apontados pelo presidente (e confirmados pelo Senado) e detêm seu cargo de modo vitalício. Ao contrário do Brasil, onde existe a aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade, nos Estados Unidos, os magistrados só podem ser removidos do cargo através de um processo de “impeachment”.
Em menos de quatro anos, Trump nomeou mais de 230 juízes federais, incluindo três para a Suprema Corte (tornando-se o primeiro presidente americano desde Ronald Reagan a nomear três juízes da Suprema Corte. Atualmente, 26% dos magistrados federais em exercício foram indicados por Trump, o que é um alto número quando comparado aos 38% apontados por Obama ao longo de oito anos de governo e aos 20% der seu antecessor republicano, George W. Bush. A alta vacância deve-se à colaboração ativa de Mitch McConnell, que embarreirou diversas audiências de confirmação no Senado nos últimos dois anos do governo Obama e fez com que Trump herdasse 103 vagas a serem preenchidas.
Em razão da recente guinada da Corte para a direita, hoje em dia discute-se a possibilidade de aumentar o número de seus membros. A questão foi inclusive pauta na campanha eleitoral presidencial de 2020, sendo Joe Biden pressionado por ala dos democratas a encampar publicamente posição favorável à expansão da composição do Tribunal. O Judge Peter Messitte, que também é especialista em Direito Comparado entre Brasil e Estados Unidos, explica que ao contrário do STF, onde existe a figura da decisão monocrática, na Suprema Corte americana todos os nove juízes estão envolvidos em todos os casos analisados.
Mulheres na justiça brasileira
RBG foi uma mulher pioneira na história jurídica norte-americana. Mas e as mulheres pioneiras no Direito brasileiro? Como está a situação atualmente? E para onde caminhamos – a que velocidade?
Durante seu discurso na posse da nova presidência do STF, o Ministro Marco Aurélio Mello referiu-se à Ministra Rosa Weber, empossada vice-presidente na ocasião, como “baluarte de uma geração de mulheres lutadoras, que vem mudando o panorama profissional no Brasil, principalmente no âmbito jurídico”. Mas será isto verdade? Vamos às evidências.
A primeira advogada inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi Myrthes Gomes de Campos, nascida em Macaé (norte do Estado do Rio de Janeiro) e formada pela Faculdade Nacional de Direito (FND, hoje parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ), em 1898. Myrthes foi sufragista, defensora da emancipação das mulheres e participou diretamente de campanhas em favor do voto feminino.
Uma das primeiras professoras a lecionar em faculdades de Direito no país foi Bernadete Neves Pedrosa, que tomou posse na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 1965. No mesmo ano, Esther de Figueiredo Ferraz tornou-se a primeira reitora do sexo feminino em uma universidade brasileira, a Mackenzie. Esther também foi a primeira mulher ministra de governo no Brasil, ocupando a direção do Ministério da Educação em 1982. A primeira professora titular do Largo do São Francisco (faculdade de direito da Universidade de São Paulo, USP) foi Nair Lemos Gonçalves, em 1976, e a primeira diretora foi Ivette Senise Ferreira, em 1998. No Rio de Janeiro, apenas em 2020, Heloísa Helena Barboza tornou-se a primeira mulher a dirigir a faculdade de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), após 85 anos de história da escola.
A primeira mulher a ocupar um assento no STF foi a Ministra Ellen Gracie, nomeada em 2000 e permanecendo na Corte até 2011. Além da Ministra Ellen Gracie, o Brasil teve mais duas mulheres na Corte Suprema, as Ministras Cármen Lúcia e Rosa Weber, ambas ainda em atividade. Em outras palavras, dentre os 168 ministros que já compuseram o Supremo, apenas 3 foram mulheres, o que corresponde a menos de 2% do quadro. A recente indicação, pelo presidente Jair Bolsonaro, do desembargador Kássio Nunes Marques ao cargo de ministro do STF para preencher a vaga deixada pela aposentadoria do decano Celso de Melo, deixa um hiato de quase seis anos desde a última nomeação de uma mulher a uma corte superior no Brasil. Ela foi Maria Helena Mallmann Miranda Arantes, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em 2014.
Desde 2010, foram abertas 45 vagas em tribunais superiores, das quais apenas seis acabaram preenchidas por mulheres. Foram elas: Rosa Weber, no STF; Regina Helena Costa, Assusete Magalhães e Isabel Galotti, no STJ; Delaíde Alves e Maria Helena Mallmann Miranda Arantes, no TST. Nenhuma delas é negra. Isso significa que as mulheres foram chamadas a ocupar apenas 13,3% das vagas no STF, STJ, TST e STM (Superior Tribunal Militar). Em verdade, o STM teve apenas uma mulher em seus quadros ao longo de toda sua história: a Ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, empossada em 2007. No STJ, a última Ministra a tomar posse foi Regina Helena Costa, em 2013; e, no STF, a Ministra Rosa Weber, em 2011.
De acordo com dados levantados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para o relatório “Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário”, a presença feminina na magistratura assume forma piramidal: no primeiro grau há mais mulheres, mas a quantidade fica menor no segundo grau e ainda mais reduzida nas Cortes superiores. Em 2019, quando elaborado o estudo, eram 38,8% de mulheres na magistratura, sendo 39,3% de juízas de primeiro grau e 25,7% de desembargadoras. A Justiça do Trabalho era o ramo com maior participação feminina (50,5%), seguida pela Justiça Estadual (37,4%). Por outro lado, a Justiça Militar Estadual apresentava o menor índice de mulheres, com 3,7%.
Com base em números de 2019 fornecidos pelo CNJ e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a divisão percentual entre os sexos nos tribunais Superiores está posta da seguinte forma: o STF e o STJ estão compostos por 82% de homens e 18% de mulheres; O TSE é integralmente composto por homens; e o TST apresenta uma composição de 81% de homens e 19% de mulheres.
Na primeira instância do Poder Judiciário estadual, 24 dos 27 Estados e o Distrito Federal (DF) possuem mais juízes homens, sendo que em 17 deles o percentual de diferença é superior a 20%. Na segunda instância, apenas o Estado do Pará possui mais mulheres. Em Pernambuco, 98% dos desembargadores são homens. Em São Paulo, 92%.
Na justiça federal, apenas o Estado do Amazonas possui mais juízas em 1ª instancia (55%). Em 24 dos 27 Estados e o DF, as médias de participação de homens no judiciário federal é maior do que 70%. Em segunda instância, ou seja, no âmbito dos Tribunais Regionais Federais (TRFs), a média é de 80% de homens e 20% de mulheres entre os desembargadores e desembargadoras.
A seu turno, na advocacia, com base nas inscrições nos quadros da OAB, há paridade de gênero no exercício da profissão, sendo 50% homens e 50% mulheres. Contudo, importa salientar que esses números não significam que as mesmas chances estejam ao alcance de homens e mulheres. Uma pesquisa publicada na revista de sociologia da USP indica que 76,5% dos sócios de escritórios de advocacia com mais de 50 associados são homens.
As estatísticas demonstram de modo cristalino a dificuldade de acesso das mulheres aos tribunais, notadamente os superiores. E a posições de chefia em grandes bancas de advocacia. Infelizmente, essa realidade não é restrita ao sistema legal. As mulheres estão atrás dos homens em diversos indicadores no campo profissional, tanto em relação à remuneração, quanto à ocupação de cargos de liderança. Decerto, tal fenômeno não se deve a um maior mérito dos homens, mas é um retrato de uma distribuição anacrônica e desigual de oportunidades
As dificuldades são geradas por um contexto de desigualdade de gênero que permeia as escolhas tomadas pelas mulheres e dificulta o seu acesso a espaços de tomada de decisão. O machismo e discriminações estruturais; a dificuldade de conciliar a vida pessoal, a vida familiar – particularmente a maternidade – e a profissional; e a falta de políticas próprias para viabilizar o acesso e permanência das mulheres no mercado de trabalho são elementos apontados como responsáveis por reduzir as chances femininas. Promover a equidade de gênero passa por romper uma “barreira silenciosa” que impede que mulheres sejam chamadas a ocupar altos cargos e não é alvo de questionamentos.
Os responsáveis por processos seletivos, não raro influenciados por vieses (conscientes e inconscientes), dão preferência a candidatos que se encaixam no padrão do homem branco. A situação é ainda mais crítica quando se olha para as mulheres negras. Embora inegavelmente ainda exista um longo e duro caminho a percorrer, mulheres brancas já conseguiram muitos avanços, enquanto mulheres negras permanecem ainda mais à margem da sociedade.
Quanto ao Judiciário, a forma como as promoções são realizadas na justiça (por antiguidade e merecimento) e o sistema de indicação aos tribunais superiores, este baseado no critério político, também se apresentam como óbices. A ministra Regina Helena Costa, do STJ, aponta que mesmo no critério de merecimento previsto no segundo grau “há uma análise de componente subjetivo, por vezes político, que acaba prestigiando os magistrados do sexo masculino” - a antes mencionada “barreira silenciosa”, que causa também um fenômeno comum no Brasil de colegiados unicamente masculinos.
“Todos nós que vivemos sob a Constituição de 1988 temos um compromisso ético e moral com a igualdade de gênero, mas esse compromisso só é autêntico se começa em casa, na Justiça”, resume a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge. Dodge foi a primeira mulher a ocupar o cargo máximo do Ministério Público Federal (MPF), entre 2017 e 2019. Ela foi a primeira procuradora-geral depois de 41 procuradores-gerais homens. A consequência prática da falta de mulheres no Judiciário, segundo a procuradora Ela Wiecko, que ocupou o cargo de vice-procuradora-geral da República entre 2013 e 2016, é que o próprio conceito de Justiça é ameaçado pela iniquidade. “Na medida em que elas não participam, não são ouvidas, não se consegue fazer a Justiça, porque a Justiça depende de se ter uma compreensão da realidade, de como as coisas acontecem”, pontua.
De fato, não está em jogo apenas o direito das mulheres de fazerem parte do judiciário, mas o direito da sociedade de ter mulheres compondo o Poder Judiciário. Permitir que as decisões judiciais sejam proferidas majoritariamente por iguais, que compartilham das mesmas experiências, impede que as perspectivas dos demais grupos sociais estejam presentes nos resultados obtidos, o que gera um impacto de legitimidade das decisões, como observa Tani Mara Wurster, da Ajufe Mulheres. É necessário que os grupos que vão definir o que é o Direito no âmbito de uma determinada sociedade sejam diversos, emprestando eficiência e credibilidade ao que por eles é produzido.
Finalmente, a maior presença das mulheres na justiça e em todas as camadas profissionais, certamente ajudará a coibir absurdos como o ocorrido recentemente quando um juiz da Vara de Família de São Paulo foi filmado fazendo declarações misóginas durante uma audiência virtual. Apesar da mulher já ter sofrido violência doméstica do ex-companheiro, o juiz insistiu para que houvesse a reaproximação do casal e minimizou a importância da Lei Maria da Penha e das medidas protetivas, desferindo um sonoro “tô nem aí (...) ninguém agride ninguém de graça”.
Esse triste episódio, assim como a trágica morte da juíza carioca Arronenzi, assassianada com 16 facadas pelo ex-marido e pai de suas filhas, tornam patente a importância de o Direito ser instrumento para que a mulher tenha vez e voz, seja partícipe e também figura central, e veja seus direitos respeitados, rompendo-se com compromisso as barreias de gênero que oprimem o sexo feminino por gerações a fio.