Os Diretores do Centro de Cidadania Fiscal conceberam, em 2015[2], a ideia inicial da PEC 45/2019, discutida atualmente na Comissão Mista da Reforma Tributária[3], no Congresso Nacional, com a proposta de promover, dentre outras premissas, a simplificação, a não cumulatividade, a neutralidade e a transparência na tributação sobre o consumo, inclusive pela previsão da tributação por fora.
Pelo projeto de reforma tributária, elaborado no CCiF, mas debatido exaustivamente com diversos seguimentos da sociedade, a partir da sua concepção, poderá ser instituído, por lei complementar nacional, o IBS, em substituição aos tributos PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS[4], com competência (restrita à alteração de alíquota) e receita compartilhada entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Eis um trecho da PEC 45, protocolada por Baleia Rossi, concebida com base no estudo desenvolvido pelo CCiF, que prescreve a competência do IBS:
Art. 152-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços, que será uniforme em todo o território nacional, cabendo à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exercer sua competência exclusivamente por meio da alteração de suas alíquotas.
§1o. O imposto sobre bens e serviços:
I – incidirá também sobre: a) os intangíveis; b) a cessão e o licenciamento de direitos; c) a locação de bens; d) as importações de bens, tangíveis e intangíveis, serviços e direitos;
II – será regulado exclusivamente pela lei complementar referida no caput deste artigo;
Pela análise sintática do texto inserido no caput e no § 1º do art. 152-A, percebe-se que o IBS poderá incidir sobre bens e serviços, diferentemente do que ocorre no ICMS, sem a necessidade de se praticarem “operações” (negócio jurídico).
Por conseguinte, não haverá limitação de competência (RMIT possível[5]) para sua instituição sobre a produção, o consumo e a circulação de bens e serviços, independentemente da existência de operações jurídicas, como ocorre nos IVAs europeus mais modernos, abrindo possibilidade para a incidência sobre simples cessões ou meras transferências entre estabelecimentos da mesma propriedade.
Em relação às prescrições do inciso I, a previsão da alínea “a” atenua os litígios relacionados com a tributação digital, porque estará explícita a incidência sobre bens e serviços intangíveis, bem como a cessão e licenciamento de direitos (“b”).
A competência do IBS também alberga a locação de bens (alínea “c”). Assim, com relação aos novos comportamentos, que permeiam a utilização de bens por meio de aluguel (carro, bicicleta etc), inclusive por meio de plataforma digital, a lei complementar poderá prescrever a incidência sem qualquer infringência a RMIT possível, prevista no arcabouço constitucional do IBS.
Interessante relembrar a argumentação do Ministro Marco Aurélio no sentido de que “conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerando contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis.” (in RE 116.121/SP – 11/10/2000).
Portanto, a previsão expressa da locação de bens é importante para diminuir os litígios sobre o assunto. Ressalte-se, porém, que a aferição de renda, por meio da locação de imóveis, é da competência da União, motivo pelo qual seria interessante que a previsão de incidência se restringisse à locação de bens móveis.
Importa registrar que os Estados e o Distrito Federal, por meio da Emenda 192 à PEC 45/2019, inseriram, no caput do artigo que cria o IBS, a possibilidade de instituição do imposto sobre bens, tangíveis e intangíveis, serviços, cessão e licenciamento de direitos, locação de bens e outros direitos. Se acatada essa proposta, da referida Emenda, o novo imposto poderá atingir todo e qualquer direito, independente da realização de negócio jurídico entre duas ou mais pessoas, não se limitando, portanto, à sua cessão e ao seu licenciamento.
De qualquer sorte, se aprovada a redação atual da PEC 45/2019, a competência para instituir o IBS poderá alcançar inúmeras materialidades que não eram atingidas pelas hipóteses do ISS e do ICMS. O novo imposto, acaso seja instituído, além de tributar a produção, a comercialização e o consumo de bens e serviços, também incidirá sobre a cessão e o licenciamento de direitos, a locação de bens, bem como sobre as importações de bens, tangíveis e intangíveis, serviços e direitos (152-A, § 1º, I, “d”), no mesmo perfil dos IVAs mais modernos do mundo, que tributam a importação e desoneram a exportação.
Portanto, a nova tendência comportamental proporcionada pelos aplicativos instalados em celulares - locar ou obter a cessão de som, vídeo e imagem sem adquirir definitivamente - estaria contemplada na materialidade do IBS, cuja competência para legislar sobre a alíquota seria atribuída a todos os entes federativos por leis ordinárias federal, estadual, distrital e municipal, impactando favoravelmente na manutenção do pacto federativo.
Todavia, da mesma forma que o IVA da União Europeia enfrenta dificuldades para exigir um tributo sobre a economia digital, o mesmo acontecerá no Brasil se for instituído um imposto sobre o valor agregado sobre o consumo sem uma estrutura fiscalizatória que identifique o pagamento correspondente aos bens, serviços e direitos.
Importa registrar, não obstante a possibilidade de lei complementar prescrever a incidência quase irrestrita sobre bens e serviços, prevista na competência do IBS (152-A), em razão da revolução tecnológica, afinal a inteligência artificial está apenas começando, por precaução é salutar a inserção de uma competência residual para o IBS, possibilitando a instituição do imposto sobre fatos inimagináveis para os dias atuais, a semelhança da atual previsão do inciso I do art. 154 da CR.
Ao contrário, para evitar cumulatividade e a incidência sobre a mesma base econômica de impostos que continuarão existindo na Constituição, dentre outros aperfeiçoamentos, é aconselhável a previsão da incompetência (imunidade) do IBS sobre o mesmo binômio (fato gerador e base de cálculo) dos impostos previstos no art. 153, inciso V - operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários; art. 155, I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; e 156, II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição.
Notas
[2] Antônio Alcoforado foi pesquisador doutorando na FGV/Direito/SP, em 2015, ocasião em que desempenhou suas atividades na mesma sala do CCiF e assistiu, de “camarote”, elevadíssimos debates entre Bernard Appy, Eurico de Santi, Nelson Machado e Isaías Coelho, fundadores do Centro de Cidadania Fiscal que idealizaram a proposta de reforma tributária (PEC 45/2019), que foi protocolada na Câmara dos Deputados.
[3] A Comissão Mista da Reforma Tributária também analisa a PEC 110/2019, protocolada no Senado Federal, cujo texto está baseado principalmente na PEC 175/1995, aperfeiçoado por centenas de debates no Congresso Nacional. Quase 200 (duzentas) emendas foram protocoladas para aperfeiçoar as referidas PECs, que tratam particularmente da tributação sobre o consumo.
[4] Segundo Bernard Appy, “boa parte dos problemas do sistema atual resulta da fragmentação da base de incidência entre o ICMS, o ISS, o PIS/Cofins e o IPI. Disponível em: <http://ccif.com.br/reforma-tributaria-ampla-ou-fatiada> Acesso em: 5 mai. 2020.
[5] Com a decomposição das normas de competência (RMIT possível) em contraponto com a materialidade da RMIT da norma geral e abstrata, instituidora de um tributo, é possível avaliar se ela não ultrapassou os limites da competência para sua instituição. Cfe. ALCOFORADO. Antônio Machado Guedes. A teoria da regra-matriz de incidência como parte do método hermenêutico-filosófico-científico denominado constructivismo lógico-semântico. Constructivismo lógico-semântico, /vol. III. Coordenação Paulo de Barros Carvalho; organização Aurora Tomazini de Carvalho. São Paulo: Noeses, 2020, p. 80.