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Da materialidade da PIS/COFINS no contexto histórico e jurisprudencial: o que subjaz?

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4.  POR QUE A HISTÓRIA IMPORTA?

Pode-se perceber que a discussão jurídica nos precedentes citados gira em torno de conceitos, que passaram a ser consagrados nas intituladas ‘teses tributárias’. Não há como deixar de convir, sob essa perspectiva, que ainda permanece, de um modo ou de outro ou com maior ou menor influência, a tensão atinente aos referenciais teóricos “conceito e tipo”[42], delineados por Misabel Derzi. A característica que demarca cada uma dessas matrizes é assim esclarecida pela autora:

Leenen oferece o melhor caminho metodológico para o pensamento conceituai tradicional do tipológico. Trata-se de indagar se as características, usadas na determinação são necessárias e suficientes para delimitar o conteúdo do pensamento de outros conteúdos.

Assim, quanto mais irrenunciável e necessária se toma uma característica, mais perto estamos do conceito fechado. Se, ao contrário, as características são renunciáveis e graduáveis, falamos de tipo. Esse deve ser o critério distintivo.[43]

Importante a ressalva de que não negamos a existência de diversos estatutos teóricos que trabalham no interior de toda a discursão, porém, com um olhar fenomenológico, podemos “perceber aí pontos de continuidade; uma espécie de elemento comum que percorre as construções epistêmicas”[44].

É possível verificar, nesse sentido, que as teses doutrinárias se assentam, de maneira geral, na articulação de enunciados eminentemente analíticos[45], buscando empregar uma linguagem técnica, conceitual, com o rigor da lógica formal. Essa visão repercute no voto do Ministro Carlos Velloso, quando entende que o julgamento envolve o “conceito de faturamento” (RE 150.755-1), e no voto do Ministro Marco Aurélio, quando alude que “a base da incidência – o faturamento – já está definida na Carta da República” (RE 346.084).

Sobressai-se, assim, com Wittgenstein “I”, a postura de que a linguagem é apenas “uma representação projetiva da realidade”[46]. A forma de acesso ao mundo se dá, portanto, através de um método, recortando-se a realidade segundo grandezas matematizáveis ou esquemas de intepretação[47]. Assim sendo, hipostasiando a superação do esquema sujeito-objeto, passam a se articular na fórmula signo-signo, e, com isso, a linguagem permanece relegada ao plano instrumental[48].

Todavia, o próprio Wittgenstein “II”, abandonando a teoria da representação, passou a defender que não nos devemos perguntar pelo significado estrito da palavra, e sim pelo seu uso no contexto (jogos linguísticos)[49]. Lembrando que, desde Saussure, a relação entre significado e significante não só é arbitrária, como se caracteriza, ainda, tanto pela sua imutabilidade, isto é, por aquilo que foi dito ou empregado no passado, quanto pela sua mutabilidade, ou seja, sua relação com o tempo em transformação, que sempre possibilita adição, subtração ou abandono de determinado sentido. Não há, pois, relação de essencialidade entre signo e o objeto, sendo, assim, despropositado o raciocínio conceitualista[50].

Com base na crítica hermenêutica de Lênio Streck, poderíamos ir além, para afirmar que a pretendida “entificação” das hipóteses tributárias, através de conceitos pré-concebidos, “faria com que pudéssemos eliminar a ideia de historicidade”[51]. Seu referencial teórico radica na hermenêutica filosófica de Gadamer, que muito bem delineia as diferenças entre o autor, texto e sentido, acentuando que:

Entretanto, aqui Gadamer observa bem o fato de que o autor de um texto é um “elemento ocasional". O autor não é o seu produto e, uma vez gerado, um texto tem vida autônoma. Assim, por exemplo, ele tem efeitos sobre a história posterior, efeitos que o autor não podia prever nem imaginar. E essas consequências do texto entram em simbiose com outros produtos culturais.[52]

Segundo a tradição hermenêutica, a “história dos efeitos”[53] e a “situação”[54] são elementos da própria estrutura da compreensão e, assim, integram e condicionam o movimento da intepretação. Razão pela qual pode se dizer que o tempo possui uma eficácia tal que torna o entendimento do texto mais pleno, o que os contemporâneos da “obra” ou do “texto” nem mesmo poderiam prever[55].

Isso não quer dizer, todavia, que o Direito não deva guardar espaço para preservação de coerência e integridade. Pelo contrário, irroga-se uma postura epistemológica que reconheça ser o Direito uma instância de elevado grau de autonomia, “devendo este ser entendido na sua dimensão autônoma face às outras dimensões com ele intercambiáveis, como, por exemplo, a política, a economia e a moral”[56]. Diferencia-se, essencialmente, de todas as tentativas de reduzir as materialidades tributárias a ‘conceitos’, eis que estas recorrem exatamente às outras dimensões da realidade, a exemplo da economia e contabilidade, e não ao Direito.

Nas palavras de Heidegger, “[t]oda resposta só mantém sua força de resposta enquanto permanecer enraizada na pergunta”[57]. O que quer dizer que a intepretação é sempre fruto de um momento singular, único, histórico e concretizador. Daí que somente à luz dos casos submetidos à apreciação judicial é que se pode responder à pergunta a respeito da incidência ou não da norma. Motivo pelo qual a pretensão de se abarcar todas as características fixas e irrenunciáveis dos conceitos não passa de uma ilusão.

É assim porque tomar consciência da determinação histórica é, antes de mais nada, saber que o sentido não está nas coisas, nos conceitos ou na subjetividade, mas compreender que “[s]er histórico significa não poder jamais se resolver totalmente em autotransparência. Todo saber de si surge em uma datação histórica [...]”[58].

A própria (re-)construção da história dos precedentes no capítulo anterior comprova que “cada interpretação se efetua à luz do que se sabe; e o que se sabe muda”[59]. Por exemplo, desde o RE 150.755-1, a noção de faturamento passou a ter seu horizonte alargado, não mais limitado às compras e vendas mercantis, abarcando, também, as receitas das empresas prestadoras de serviços. Enquanto na ADC 1, por usa vez, restou consagrado que ‘faturamento’ passou a corresponder à ‘receita bruta’, ou seja, um outro horizonte. E no RE 346.084, o Ministro Gilmar Mendes matou a charada, advertindo, em tom provocativo, que não se estava declarando a inconstitucionalidade do §1º do artigo 3º da Lei n.9.718/98 em contraste com o sentido constitucional de ‘faturamento’, e sim estava se “fazendo uma intepretação da Constituição segundo a lei complementar [no caso, se referia à LC n. 70]”[60]. Então, a noção de ‘faturamento’ sempre se ressituou, no tempo e no espaço, nunca estando congelada a um conceito próprio, pois sempre veio de algum lugar.

É dessa forma que a história, sob a perspectiva do tempo, importa, pois

quanto mais nos afastamos cronologicamente do texto, mais deveremos nos aproximar dele com melhor compreensão, posto que aumentam os dados de consciência que nos põem em condição de descartar as interpretações errôneas ou menos adequadas, e substitui-las por interpretações novas e mais justas.[61]

Concluímos com as ilações do Ministro Eros Grau: “[a]lterada a realidade social, a norma que se extrai de um mesmo texto será diversa daquela que dele seria extraída anteriormente à mudança da realidade.”[62] Por sermos históricos, como nós somos, não há, pois, grau zero de sentido, e nem conceitos perfeitos ou fundamentos últimos.


5.  SÍNTESE CONCLUSIVA

Percebe-se que, no âmbito do Direito Empresarial, a jurisprudência compreende bem o movimento que a ordem da realidade exerce sobre a linguagem em que o Direito está assentado. Isso se afere a partir do acolhimento do conceito de “empresa” (subjetivo), abandonando o anacrônico conceito de “atos de comércio” (objetivo). Igualmente, a própria legislação empresarial adota uma linguagem que enuncia, abertamente, a existência de princípios voltados para guiar o intérprete nesse caminho.

A Ciência Contábil, assim como o Direito Empresarial, expressa-se numa linguagem, porém, voltada para aferir, interpretar e informar as mutações que sofrem o patrimônio da empresa, a partir de vários recortes e contextos. São, portanto, essencialmente distintos. De proximidade, apresentam uma estrutura normativa que se constitui por princípios, no intuito de preservar uma intepretação e aplicação mais consentânea com a realidade na qual estão inseridos. No caso específico das grandezas ‘faturamento’ e ‘receita’, esta última passou a ter maior relevância, eis que mais adaptada às circunstâncias e modelo econômico atual. Sem prejuízo disso, nas Ciências Contábeis, o emprego de ‘receita’ passa constantemente por mudanças ou perspectivas, variando de acordo com o método e modelo de recorte adotados, sempre com a finalidade de melhor representar a realidade e, assim, trazer cada vez mais informações adequadas a respeito dos fatos contábeis relevantes aos usuários.

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No plano do Direito Tributário, a história dos julgamentos acima retratados aponta que o Supremo Tribunal Federal, até antes da EC 20/98, levou-se a efeito, na intepretação do vocábulo ‘faturamento’, elementos materiais anteriores a ela (alteração socioeconômica, modificação legislativa etc.). Diante da promulgação da EC 20/98, contudo, recuou, atendo-se a uma postura, digamos, mais normativista. Transitou-se, portanto, entre o paradigma da “mutabilidade” de sentido e a da “imutabilidade”. 

Uma das primeiras questões respondidas foi se a Constituição de 1988, ao prever originariamente a grandeza “faturamento” como base de cálculo das contribuições, havia incorporado algum conceito (pré)conceito pré-constitucional. Nas duas primeiras oportunidades, firmou-se o entendimento de que havia se consagrado a noção de receita bruta das vendas e serviços, compreendido o produto da venda de bens nas operações de conta própria e o preço dos serviços prestados. No terceiro caso, o mesmo conceito foi recepcionado, porém, houve uma sensível mudança de raciocínio. Enquanto no RE 150.755-1 e ADC n.1 o sentido do vocábulo “faturamento” foi desacoplado, para “efeitos fiscais”, do até então conceito previsto nas leis comerciais, no RE 346.084/PR essa possibilidade foi vedada.

Os efeitos constitutivos da história na atribuição do sentido de “receita bruta” e “faturamento” são especialmente percebidas nos votos dos Ministros Sepúlveda Pertence, ao fazer o escorço de suas possibilidades semânticas e pragmáticas dentro do espaço de experiência e do horizonte em que estava inserido (RE 150.755-1). Outra parcela dos votos, contudo, se fixou mais em elementos formais, recorrendo, por vezes, a fatos contábeis ou econômicos puros.

Do percurso empreendido, observou-se que ‘faturamento’ e ‘receita’ são vocábulos vagos, que apresentam ambiguidade, que comportaram conceitos ou empregos mais ou menos aproximados ao longo da história. Igualmente, a possibilidade de seus significados sempre se mostra mais ou menos adequada de acordo com tempo histórico no qual está inserida. Não há como, portanto, coisificar ou reduzi-los a enunciados analíticos, no altiplano da lógica pura, na tentativa de esgotar todos os significados possíveis através de teses jurídicas. Todos que relegaram o papel da consciência histórica, acabaram criando uma aporia, seja percorrendo um regresso infinito na busca de um fundamento último; seja firmando um corte arbitrário para compreensão do fenômeno a ser explicado ou compreendido; seja incorrendo em um argumento circular na definição através de um conceito puro.

Bom lembrar, entretanto, a partir de Umberto Eco, muito bem evocado no voto do Ministro Cezar Peluso, que há certos limites que devem ser respeitados, ou seja, malgrado a polissemia e a multiplicidade de aplicações, há sentidos que são inadequados sugerir. Tais lindes, entretanto, não podem ser respondidos de antemão.

Repisa-se, não se está a defender a extrapolação do conteúdo semânticos. Pelo contrário, está a se assegurar que esses limites não sejam manipulados, com a busca desenfreada e casuística de conceitos últimos. A finitude e falibilidade humana são provas irrefutáveis de que não há como saber, antecipadamente, todos os possíveis significados ou uso dos vocábulos.

Concluímos que nem mesmo a promulgação do texto da EC 20/98 – embora tenha sido originariamente interpretado como sendo uma norma que teria ampliado a materialidade da PIS/COFINS para abarcar receita como gênero – impediu a enxurrada de teses a respeito da matéria. Isso nos mostra que, quando a Suprema Corte sinalizou a predisposição para acolher teses que apostavam na univocidade das palavras, ou seja, em conceitos imutáveis, acabou caindo em uma armadilha, eis que, a cada nova situação, sempre (foi e) será necessário propor uma nova hipótese interpretativa. Destarte, não é com a criação de conceitos ou a produção em escala e massiva de mais textos que se pacificará (ou eliminará) as (múltiplas) interpretações.

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Sobre o autor
Antonio Carlos Sirqueira Rocha

Procurador da Fazenda Nacional Bacharel em Direito pela UFMG Pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito pela PUCMINAS Pós-graduando em Compliance e Gestão Tributária pela FBT

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Antonio Carlos Sirqueira. Da materialidade da PIS/COFINS no contexto histórico e jurisprudencial: o que subjaz?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6417, 25 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87678. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

ROCHA. Antônio Carlos Sirqueira Rocha. DA MATERIALIDADE DA PIS/COFINS NO CONTEXTO HISTÓRICO E JURISPRUDENCIAL: O QUE SUBJAZ?. Jorge Gustavo Pimenta Nitzsche (org.). Temas de direito público 6° volume. de Andrade. Pará de Minas, MG: VirtualBooks Editora, Publicação 2020. 270 p. ISBN 978-65-5606-106-1

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