Capa da publicação A descriminalização do uso recreativo da maconha e sua proibição por questões sociais
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A descriminalização do uso recreativo da maconha e sua proibição por questões sociais

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11/01/2021 às 23:04
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AS MEDIDAS REPRESSIVAS PARA O USUÁRIO E O TRAFICANTE

Se legalmente, a conduta do usuário é despenalizada, uma vez que não há previsão legal de prisão, a do traficante é uma realidade bem distinta. Logicamente o traficante tem e deve sofrer as penalidades mais severas propostas pelo legislador. A problemática dessa questão é que, a distinção entre usuário e traficante não está amplamente presente na legislação vigente, o que torna este um fato subjetivo, sendo imposto às autoridades policiais durante a fase inquisitorial, e juízes e promotores durante a fase da ação penal, julgar e decidir se a quantidade apreendida com o acusado é suficiente para acusa-lo de tráfico de drogas, ou mera conduta de usuário.

A incerteza jurídica quanto a tipificação correta da conduta, passa uma sensação de insegurança, mesmo para os usuários, ainda que cometam crime e sejam despenalizados. Esse liame subjetivo atribuído às autoridades, significa que cabe a eles, e somente a eles, a tipificação legal frente a lei n° 11.343/06.

De acordo com matéria redigida por D’AGOSTINO[15] ao site G1:

“Em 2006, quando a Lei 11.343 começou a valer, eram 31.520 presos por tráfico nos presídios brasileiros. Em junho de 2013, esse número passou para 138.366, um aumento de 339%”.

O que implicitamente significa dizer que a apreensão de usuários que erroneamente foram classificados como traficantes, no art. 33 da Lei de Tóxicos subiu discriminadamente. O que reforça o preconceito e discriminação por parte das autoridades competentes.

Vale neste momento, destacar um dos vários casos curiosos desse sistema falho que reforça a ideia do preconceito impregnado nas autoridades. De acordo com VIAPIANA[16], em 2019, uma jovem foi presa aos 18 anos com a posse de 4 gramas de maconha. Eventualmente foi condenada em primeira instância pela Justiça de Avaré, uma cidade no interior de São Paulo, a 8 anos e 10 meses de prisão por tráfico de drogas e associação ao tráfico. Em recurso ao Tribunal de Justiça do estado, a condenação foi mantida, e, mesmo com a quantidade irrisória de maconha, a jovem foi condenada na segunda instância a prisão em regime fechado pelo período de 1 ano, 11 meses e 10 dias.

Se esta mesma quantidade de maconha fosse encontrada com um jovem de classe alta com ensino superior completo e residente da capital, qual seria a tipificação utilizada pela autoridade? Claramente haveria um destino diferente da jovem que foi condena em segunda instância, haja visto ela residir em área periférica do interior de São Paulo, e não ser branca.


A APLICAÇÃO DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS EM PARALELO COM A PROIBIÇÃO LEGISLATIVA DO USO

O fato de a irrelevância do uso ser externada na despenalização da conduta, exclusivamente do usuário reforça a tese de que, a legalização da ‘cannabis’ não é o maior problema a ser enfrentado. Obviamente teremos de encontrar meios seguros para a plantação, manuseio, produção e venda, que pode ser organizado pelo próprio Estado. O que logicamente fomentaria a economia do país, gerando milhares de empregos, recebendo novos impostos e cobrando novas taxas.

De acordo com PEREIRA[17], as políticas públicas de enfrentamento às drogas, não apenas repressivamente, mas no sentido de taxar e sistematizar o uso, traz efeitos positivos:

O Uruguai, país fronteiriço do Brasil, é um exemplo de país que estabeleceu a política de legalização da Maconha, já que o cultivo, transporte e distribuição passam pelo controle do governo. Além disso, o preço é controlado e a venda só ocorre para maiores de 18 anos. [...]. Visitantes no Uruguai não podem fazer a compra da droga, impedindo assim, um turismo ocasionado pela Maconha [...] nos Estados Unidos, a Maconha foi legalizada apenas nos estados de Washington e Colorado, todavia, esta liberdade não é total e irrestrita, já que somente maiores de 21 anos podem utilizar a droga e existem leis severas, por exemplo, para quem dirigir sobre o efeito do uso da Maconha em ambos os estados.

Isto significa dizer que, uma eventual legalização da maconha não significaria um cenário anárquico onde compraríamos maconha em toda e qualquer esquina, e tudo ocorreria impune. Há várias formas de lidar com o assunto, e uma devida organização acerca do assunto seria o melhor caminho.

Inspirado em pensamentos e ideais iluministas, a França aprovou em 26 de agosto de 1789 a Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão[18], documento com 17 artigos e um preâmbulo e forte influência dos “direitos naturais” que futuramente serviu de inspiração para a Declaração dos Direitos Humanos, trouxe em seu artigo quarto:

A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.

Para nos inteirarmos ainda mais sobre esse disparate, saibamos que algo similar já ocorreu na história em âmbito internacional. Há exatos 100 anos, nos Estados Unidos, foi declarada a Lei Seca, que encontrou força na 18° emenda promulgada em 1919. Esta lei proibia totalmente em todo território nacional a venda, transporte e manufatura de “bebidas intoxicantes”, gerando a “prohibition era” (a era da proibição).

De acordo com reportagem redigida pelo do G1[19]:

Em vez de acabar com vício, pobreza e corrupção, como desejavam seus defensores, a Lei Seca levou ao aumento nos índices de embriaguez e criminalidade. O consumo de álcool adquirido no mercado negro, mais forte e de baixa qualidade, levou a milhares de mortes e problemas como cegueira ou paralisia. [...] o lucrativo comércio ilegal, dominado por gângsters como Al Capone, levou a um aumento da violência e do crime organizado.

O que significa dizer que, a proibição não inibiu o uso, apenas fortaleceu o mercado clandestino e ilegal.

Resta claro que, a proibição do álcool criou um imenso submundo do crime, e, eventualmente um aumento nas ocorrências de tráfico, venda e consumo ilegal. Além é claro da baixíssima qualidade do produto, o que acarretou em diversos problemas de saúde que deixou sequelas aos usuários à época dos fatos.

Esta analogia pode ser aplicada ao caso da proibição da lei 11.343/06, uma vez que toda a conduta do usuário é diferenciada do traficante, como foi abordado anteriormente, e, essas “brechas” na lei, similar ao que ocorreu em alguns estados dos Estados Unidos traz uma insegurança para os meros usuários.

A mera despenalização mantendo a proibição já é um erro em si, haja visto que o legislador pune não punindo. Esta lacuna legal poderia ser analisada em paralelo com as garantias e direitos fundamentais garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil do ano de 1988.

Este conceito de direitos fundamentais pode ser analisado da maneira que, conceitualmente, são protetivos e que garantem aos cidadãos o mínimo necessário para que, dentro da sociedade, um indivíduo viva de maneira digna. Estes ditos direitos fundamentais baseiam-se no princípio da dignidade da pessoa humana, e visa proteger os direitos dos indivíduos, dando proteção e autonomia ante o Estado. Quase que similar ao conceito de direitos naturais. De acordo com correntes jusnaturalistas, os direitos naturais podem ser conceituados como direitos inalienáveis e irrevogáveis, que independem de qualquer legislação criada por governos.

E, como vimos anteriormente, vimos que o Estado, por mais que queira, jamais poderá interferir nas liberdades individuais e garantia fundamentais de direitos básicos de sua população.


A INOBSERVÂNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E PRECEITOS LEGAIS OBSTRUÍDOS POR MERA LEI ORDINÁRIA

A atual Constituição da República Federativa do ano de 1988, trouxe no título II os direitos e garantias fundamentais, que podem ser divididas em cinco capítulos:

  • I – Direitos Individuais Coletivos: conceitualmente podem ser entendidos como todos os direitos que estão diretamente ligados à personalidade humana e ao conceito de pessoa. Está presente no artigo 5° e representada em incisos e podem ser utilizados como exemplo os direitos a honra, vida, segurança, igualdade, propriedade e liberdade.

  • II – Direitos Sociais: São as conhecidas liberdades positivas dos indivíduos, que lhes são garantidas pelo Estado Social de Direito. Basicamente seu fim é a melhoria na condição de vida dos indivíduos que são menos favorecidos na sociedade. Estes direitos estão elencados a partir do artigo 6° e seus incisos.

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  • III - Direitos de Nacionalidade: o vínculo que liga diretamente um indivíduo a um Estado, o que faz com que este se torne um dos componentes do povo.

  • IV – Direitos Políticos: O direito de votar e ser votado em eleições constitucionais que devem ser realizados periodicamente.

  • V - Direitos relacionados a participação na vida política: garante a autonomia dos partidos políticos como instrumentos de suma importância na preservação do Estado democrático de Direito. Esta elencado no artigo 17 da nossa Constituição Federal.

Realizando uma rápida observação podemos constatar que todos os indivíduos nascem com direitos. E eles não são meras liberalidades do Estado, tampouco serem considerados concessão por parte do Estado, são direitos intrinsecamente ligados a cada indivíduo, tanto que são inegociáveis e inalienáveis.

Estes ditos direitos fundamentais mostram-se inerentes e intrínsecos a cada indivíduo, e, consequentemente jamais poderão ser cerceados pelo Estado. Isto é, aplicado à tese aqui abordada, implica no fato de, associado aos Direitos do Homem e do Cidadão o direito de usar quaisquer substâncias não deveria ser um problema do Estado. Claro, isto se não alimentasse e fomentasse o mercado de narcóticos e o submundo do crime, e, cumulativamente ou não, fizesse mal a outro indivíduo. Fato é, a mera livre conduta de fumar maconha, não deveria ser um problema do Estado.

Estando claro que a própria Carta Magna nos mostra direitos que possuímos –lembremos que não nos é concedido, mas sim, é intrínseco a cada indivíduo-, a mesma em conjunto com suas Leis Ordinárias jamais poderá suprimir –ou deixar- os direitos dos indivíduos.

A legislação penal vigente jamais poderia sequer cogitar a possibilidade de suprimir um direito constitucional básico. A pirâmide de Kelsen externa claramente a hierarquia entre as normas. Esta acepção jurídica nos dá a clara ideia da hierarquia exposta como um sentido de pirâmide, onde a Constituição Federal encontra-se no topo desta dita pirâmide, e, as normas hierarquicamente inferiores devem buscar sua validade jurídica numa norma superior.

SANTOS[20] nos clareia a ideia exposta de que, a Constituição é a Lei Maior, e nenhuma lei inferiormente hierárquica –nas percepções de Kelsen e sua pirâmide-, poderá contrapô-la. Ao contrário, as leis e ordenamentos inferiores –entendem-se como leis inferiores as leis complementares, ordinárias, medidas provisórias e leis delegadas, e, resoluções, em ordem- devem buscar sua validade jurídica no campo jurisdicional na atual Constituição Federal.

[...] a Constituição Federal é considerada uma norma hierarquicamente superior das demais contidas em nosso sistema jurídico. Sendo importante a observação dos princípios nela contido para a elaboração do nosso sistema, e quando não observados, deverá ser tomada medidas para que seja expurgada a lei/norma que não a "obedecer", devido o seu caráter inconstitucional. Por isso, se encontra no topo da pirâmide, para que todos os demais a sigam.

Ou seja, claramente uma lei inferiormente hierárquica na visão da teoria da pirâmide de Kelsen, jamais poderia contrapor a Constituição, tampouco as liberdades direitos e garantias fundamentais. Sendo assim, se os indivíduos possuem a liberdade de se quiserem, fumar maconha, eles deveriam sem com que o Estado intervisse.

Claro, com a ideia de fumar maconha, entende-se adquirir a semente e plantar em sua residência para consumo próprio, ou até mesmo a adoção de coffe shops, como em Amsterdã. Desde que, o consumo não alimente –ainda mais-, o tráfico e o submundo dos narcóticos.

Resta esclarecer também que, a posse da semente de cannabis já não é mais entendido como crime de acordo com o Supremo Tribunal Federal. A atipicidade da conduta, que, de acordo com o Inter Criminis está na fase preparatória do delito, não poderia ser punido, sendo a conduta atípica. De acordo com reportagem do Site G1[21], a consideração do ministro acerca do caso é que:

A mera importação e/ou a simples posse da semente de ‘cannabis sativa’ não se qualificam como fatores revestidos de tipicidade penal, essencialmente porque, não contendo as sementes o princípio ativo do tetrahidrocanabinol (THC), não se revelam aptas a produzir dependência física e/ou psíquica, o que as torna inócuas, não constituindo, por isso mesmo, elementos caracterizadores de matéria-prima para a produção de drogas

E, sendo despenalizado a posse da maconha para uso pessoal, e atípica a conduta de possuir as sementes da cannabis, é paradoxal os motivos pelos quais a legalização ainda não ocorreu. Não há explicação evidente, apenas os pré-conceitos e preconceitos ante os indivíduos que fazem uso. Pois, assim como foi exposto no início deste artigo, o uso, por mais que esteja presente em todas as parcelas da sociedade, está diretamente associada a população pobre e negra. Refletindo o preconceito e racismo estrutural presente na nossa sociedade.

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Sobre o autor
Lukas Peixoto Martins

Ingressei no ensino superior aos 16 anos, com êxito formei-me aos 21, e aos 22 me tornei advogado. Ao decorrer do curso me dediquei a redação de artigos científicos com relevantes temas sociais e ao atendimento do público de baixa renda durante meu estágio, além de demais causas filantrópicas. Tive também um período de experiência em um certo escritório de advocacia. A sede de conhecimento, e de justiça, norteia minha jornada jurista.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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