Resumo: Atualmente, há uma grande tendência pelas reformas processuais penais na América Latina, a fim de que sejam olvidadas as bases de um processo penal de modelo inquisitivo, consagrando assim uma estrutura eminentemente acusatória. Nessa toada, o Brasil, recentemente, trouxe a previsão legal de uma suposta estrutura acusatória do Processo Penal com a reforma parcial introduzida pela Lei 13.964/2019, conhecida como Pacote Anticrime. Apesar de alguns avanços, o Código Processual Penal esta acometido de um vício estrutural, onde os atores processuais estão patologicamente reféns das raízes inquisitivas. Nesse sentido, utilizando-se da revisão bibliográfica, a presente pesquisa passa pela compreensão teórica das características dos sistemas processuais penais existentes e por uma análise pragmática da modificação proposta pela Lei Anticrime quanto à positivação da estrutura acusatória no Processo penal brasileiro, concluindo-se que, em que pese à necessária alteração legislativa, deve-se haver uma sólida transição cultural.
Palavras chaves: Sistemas Processuais. Lei Anticrime – n°13.964/2019. Processo Penal brasileiro. Estrutura acusatória.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 SISTEMA ACUSATÓRIO. 3 SISTEMA INQUISITIVO. 4 SISTEMA MISTO. 5 O CONTROVERSO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Detentor e titular do ius puniendi, o Estado, por meio da pretensão punitiva, sujeita o autor de determinado delito à sanção penal prevista em lei, de modo a preservar a ordem social. No entanto, esta pretensão punitiva não pode ser voluntariamente resolvida sem o devido processo legal, não podendo o Estado impor a sanção penal, bem como o infrator sujeitar-se à pena. Assim, o Estado se vale do Direito Processual Penal caracterizado pelo complexo de normas jurídicas que regula o modo, os meios e os órgãos incumbidos de exercer seu poder punitivo.
Historicamente identificam-se três sistemas processuais penais, a saber: I - acusatório: caracterizado por atribuir as funções de acusar e julgar a órgãos diversos, consagrando o efetivo direito ao contraditório; II - inquisitivo: onde há concentração dos poderes de acusar e de julgar nas mãos de uma única pessoa: o magistrado; e III – misto: que divide o processo em duas fases distintas: a de instrução preliminar ou prévia, de índole inquisitiva; e a de julgamento, com características preponderantes do sistema acusatório.
No Brasil, recentemente, a Lei 13.964/2019, conhecida como Pacote Anticrime, trouxe em seu bojo a previsão legal de uma suposta estrutura acusatória do processo penal brasileiro: “Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
Na tentativa de colocar “panos quentes” na divergência doutrinária em classificar o processo penal pátrio, a tipificação do modelo de estrutura do processo penal num Código com base inquisitorial datado de 1941, desencadeou novas discussões sobre a efetividade do dispositivo legal, abrindo o questionamento se haverá de fato uma estrutura acusatória no processo penal brasileiro, ou será apenas mais um remendo na “colcha de retalhos” codificada, esperando dela resultados estratosféricos.
Assim, de maneira reflexiva e não exauriente, utilizando-se da revisão bibliográfica por meio do método dedutivo, justifica-se o presente artigo permeando-se os sistemas processuais penais e analisando se a modificação proposta no Pacote Anticrime consolida uma estrutura verdadeiramente acusatória no Processo penal brasileiro.
2 SISTEMA ACUSATÓRIO
O sistema acusatório tem suas raízes no direito romano e grego, instalado com fundamento na acusação oficial, embora se permitisse, excepcionalmente, a iniciativa da vítima, de parentes próximos e até de qualquer do povo. (MIRABETE, 2006). Nesse sistema o acusado participa efetivamente do processo, exercendo seu pleno direito ao contraditório, ferramenta essencial para sua defesa.
[...] Caracteriza-se principalmente pela separação entre as funções da acusação e do julgamento. O procedimento, assim, costuma ser realizado em contraditório, permitindo-se o exercício de uma defesa ampla, já que a figura do julgador é imparcial, igualmente distante, em tese, de ambas as partes. As partes, em pé de igualdade (par conditio), têm garantido o direito à prova, cooperando, de modo efetivo, na busca da verdade real. A ação penal é de regra pública, e indispensável para a realização do processo. Costuma vigorar o princípio oral, imediato, concentrado e público de seus atos. (MOUGENOT, 2017, p.85).
Decorrente do princípio do contraditório, no processo de tipo acusatório, a regra da igualdade processual, segundo a qual as partes, acusadora e acusada, encontram-se no mesmo plano, com iguais direitos. (TOURINHO FILHO, 2018). Esse sistema consiste na separação orgânica entre o órgão acusador e o órgão julgador, se contrapondo ao sistema inquisitivo, em que as funções acusatórias e judicantes se encontram conglomeradas na mesma pessoa, o juiz-inquisidor.
[...] as tarefas de acusação, defesa e julgamento são perfeitamente distribuídas por diferentes sujeitos processuais. Cada um possui função exclusiva: o Ministério Público acusa; o advogado (público ou particular) elabora a defesa técnica; e o magistrado decide, julga, colocando fim ao conflito processual. (MARQUES, 2012, p.13-14).
Outro ponto relevante nesse sistema é a gestão da prova, haja vista que é atribuição das partes reunir material probatório, sempre a luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivação das decisões judiciais. Por conseguinte, uma peculiaridade desse modelo, diferentemente do inquisitivo, é que o juiz não é, por excelência, o dirigente da prova.
Brasileiro Lima, (2020, p.44), traz a importância da atividade probatória dentro da relação processual acusatória, ante a preservação da imparcialidade do juiz:
Portanto, quanto à iniciativa probatória, o juiz não pode ser dotado do poder de determinar de ofício a produção de provas, já que estas devem ser fornecidas pelas partes, prevalecendo o exame direto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob o ponto de vista probatório, aspira-se uma posição de passividade do juiz quanto à reconstrução dos fatos. A gestão das provas é, portanto, função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais.
Nota-se atualmente que o sistema acusatório, dentro do contexto de sua aplicabilidade, consagra a efetiva igualdade processual entre as partes, mas especificamente na “paridade de armas” entre acusação e acusado, de modo que a relação processual traz garantias para a efetiva busca à justiça.
Nestes termos, ensina Mirabete, (2006, p.40):
No direito moderno, tal sistema implica o estabelecimento de uma verdadeira relação processual com o actum trium personarum, estando em pé de igualdade o autor e o réu, sobrepondo-se a eles, como órgão imparcial de aplicação da lei, o juiz. No plano histórico das instituições processuais, apontam-se como traços profundamente marcantes do sistema acusatório: "a) o contraditório, como garantia político-jurídica do cidadão; b) as partes acusadora e acusada, em decorrência do contraditório, encontram-se no mesmo pé de igualdade; c) o processo é público, fiscalizável pelo olho do povo; excepcionalmente permite-se uma publicidade restrita ou especial; d) as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas e, logicamente, não é dado ao juiz iniciar o processo (ne procedat judex ex officio); e) o processo pode ser oral ou escrito; f) existe, em decorrência do contraditório, igualdade de direitos e obrigações entre as partes, pois non debet licere actori, quod reo non permittitur; g) a iniciativa do processo cabe à parte acusadora, que poderá ser o ofendido ou seu representante legal, qualquer cidadão do povo ou um órgão do Estado".
Por fim, o sistema acusatório vigorou durante quase toda a Antiguidade grega e romana, assim como na Idade Média, nos domínios do direito germano. Entretanto, a partir do século XIII, com o surgimento do Direito canônico, esse entra em declínio, emergindo então o sistema inquisitivo.
3 SISTEMA INQUISITIVO
Base do direito canônico, século XIII, o sistema inquisitorial difundiu-se por toda a Europa, sendo empregado inclusive pelos tribunais civis até o século XVIII.
No sistema inquisitivo buscava-se a autodefesa da administração da justiça, em vez de um genuíno processo na apuração da verdade. Suas raízes no Direito Romano, quando, por influência da organização política do Império, permitia-se ao juiz iniciar o processo de ofício. Ergueu-se na Idade Média diante da necessidade de afastar a repressão criminal dos hereges e alastrou-se por todo o continente europeu a partir do Século XV diante da influência do direito penal da Igreja, entrando em declínio somente no período Iluminista com a Revolução Francesa. (MIRABETE, 2006).
Sua principal particularidade se evidência pelo fato de as funções de acusar, defender e julgar encontrarem concentradas em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz inquisidor.
[...] É o processo em que se confundem as figuras do acusador e do julgador. Em verdade, não há acusador nem acusado, mas somente o juiz (o inquisidor), que investiga e julga, e o objeto de sua atividade (o inquirido). É considerado primitivo, já que o acusado é privado do contraditório, prejudicando-lhe o exercício da defesa. Aduz-se também, como característica desse sistema, o fato de inexistir liberdade de acusação, uma vez que o “juiz” se converte ao mesmo tempo em acusador, assumindo ambas as funções. Costuma vigorar no sistema inquisitório o modelo escrito, mediato, disperso e sigiloso de seus atos; (MOUGENOT, 2017, p.85).
Observa-se que quando o Juiz concentra em suas mãos os poderes de acusar e julgar haverá uma decisão, em tese, injusta, tendo vista que não há como esperar que um juiz-inquisidor ao instruir a acusação, dentro de seu livre convencimento, haja com imparcialidade ao decidir a demanda, de modo que sua decisão será contaminada pelos atos da acusação. Assim, “[...] é fácil verificar como o sistema inquisitivo não convém à distribuição da justiça, em virtude do comprometimento do magistrado com a acusação que ele mesmo formulou”. (GRECO FILHO, 2015, p.79).
Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, invariavelmente, sua imparcialidade. De fato, há uma nítida incompatibilidade entre as funções de acusar e julgar. Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda, perdendo a objetividade e a imparcialidade no julgamento. Em virtude dessa concentração de poderes nas mãos do juiz, não há falar em contraditório, o qual nem sequer seria concebível em virtude da falta de contraposição entre acusação e defesa. Ademais, geralmente o acusado permanecia encarcerado preventivamente, sendo mantido incomunicável. (BRASILEIRO LIMA, 2020, p.42).
Nota-se que nesse sistema o acusado figura como mero espectador, haja vista sua forçosa inércia diante da acusação, frente a impossibilidade de se exercer o contraditório. Por outro lado, o juiz-inquisidor atua de oficio colhendo elementos suficientes para fundamentar sua decisão.
Nesse toada, esclarece Lopes Jr. (2014, p.73):
Frente a um fato típico, o julgador atua de ofício, sem necessidade de prévia invocação, e recolhe (também de ofício) o material que vai constituir seu convencimento. O processado é a melhor fonte de conhecimento e, como se fosse uma testemunha, é chamado a declarar a verdade sob pena de coação. O juiz é livre para intervir, recolher e selecionar o material necessário para julgar, de modo que não existem mais defeitos pela inatividade das partes e tampouco existe uma vinculação legal do juiz.
Numa hermenêutica mediana, o acusado não é considerado sujeito de direitos é sim mero objeto do processo. Na busca da verdade material, admitia-se que o acusado fosse torturado para que uma confissão fosse obtida, ficando evidente a incompatibilidade do processo inquisitório com os direitos e garantias individuais, sendo rechaçados os mais elementares princípios do processo penal. (BRASILEIRO LIMA, 2020).
[...] O que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado, com igualdade de poderes e oportunidades, se transforma em uma disputa desigual entre o juiz-inquisidor e o acusado. O primeiro abandona sua posição de árbitro imparcial e assume a atividade de inquisidor, atuando desde o início também como acusador. Confundem-se as atividades do juiz e acusador, e o acusado perde a condição de sujeito processual e se converte em mero objeto da investigação. (LOPES JR., 2014, p.72).
Sendo assim, o sistema inquisitório predominou até finais do século XVIII, início do XIX, momento em que a Revolução Francesa inicia uma transição para o sistema misto, imergindo assim a valorização dos princípios inerentes a condição humana, princípios esses que repercutiram na persecução penal, passando o acusado a ser sujeito de direitos.
4 SISTEMA MISTO
Consolidado no Code d’Instruction Criminelle (Código de Processo Penal) francês, em 1808, constitui-se o sistema misto pela junção dos dois modelos anteriores, tornando-se, assim, eminentemente bifásico. Compõe-se primeiramente da fase inquisitiva, e em um segundo momento acusatória, instruída pelos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. (MOUGENOT, 2017).
O sistema misto, ou sistema acusatório formal, é constituído de uma instrução inquisitiva (de investigação preliminar e instrução preparatória) e de um posterior juízo contraditório (de julgamento). Embora as primeiras regras desse processo fossem introduzidas com as reformas da Ordenança Criminal de Luiz XIX (1670), a reforma radical foi operada com o Code D'Instruction Criminelle de 1808, na época de Napoleão, espalhando-se pela Europa Continental no século XIX. É ainda o sistema utilizado em vários países da Europa e até da América Latina (Venezuela). (MIRABETE, 2006, p.41).
Observa-se que a onda evolucionista francesa despertou vários anseios liberais no povo europeu, de modo que, após o período das trevas, marcado pela era inquisitiva, onde direitos e garantias não eram assegurados, começou a emergir com as correntes liberais, o desejo imediato pelos direitos inerentes à pessoa, em especial o aumento das garantias posto ao réu.
Esse sistema misto, que se espalhou por quase toda a Europa continental, no próprio século em que surgiu, começou a sofrer sérias modificações, dada a tendência liberal da época, exigindo fossem aumentadas as garantias do réu. E, realmente, na própria França, a Lei Constans, de 8-12-1897, assegurava ao acusado o direito de defesa no curso da instrução preparatória antes mesmo daquela lei francesa, outros Códigos europeus, como o austríaco, o alemão e o norueguês, já haviam sido atingidos pela corrente liberal. (TOURINHO FILHO, 2018, p.123).
Nota-se que o Sistema Francês ou Misto combina o caráter sigiloso e inquisitivo da investigação em uma fase preliminar do processo – dirigida em tese pela autoridade policial - com a publicidade e o contraditório somente em uma segunda fase, onde se verificaria a instrução definitiva e o julgamento. “[...] uniu as virtudes dos dois anteriores, caracterizando-se pela divisão do processo em duas grandes fases: a instrução preliminar, com os elementos do sistema inquisitivo, e a fase de julgamento com predominância do sistema acusatório” (NUCCI, 2017, p.121-122).
Nesse cerne, Brasileiro Lima (2020, p.45) explica detalhadamente ambas as fases que compõem tal sistema:
É [...] misto porquanto abrange duas fases processuais distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitorial, destituída de publicidade e ampla defesa, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Sob o comando do juiz, são realizadas uma investigação preliminar e uma instrução preparatória, objetivando-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade, a oralidade, a isonomia processual e o direito de manifestar-se a defesa depois da acusação.
Não obstante, é comum na doutrina processual penal a classificação de “sistema misto”, com a afirmação de que os sistemas puros seriam modelos históricos sem correlação com os atuais. Ademais, a divisão do processo penal em duas fases (pré-processual e processual propriamente dita) possibilitaria o predomínio, em regra, da forma inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, delineando assim o caráter “misto”. (LOPES JR., 2019).
No direito contemporâneo, o sistema misto combina elementos acusatórios e inquisitivos em maior ou menor medida, segundo o ordenamento processual local e se subdivide em duas orientações, segundo a predominância na segunda fase do procedimento escrito ou oral, o que, até hoje, é matéria de discussão. (MIRABETE, 2006, p.41).
Contudo, cumpre salientar que o sistema misto, traz um viés garantista ao acusado durante a instrução processual, todavia, na fase da investigação preliminar, aquele fica a mercê da própria sorte, figurando como mero espectador, haja vista a eminência do sistema inquisitorial.