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A suposta afirmação do sistema acusatório no processo penal com a Lei Anticrime n. 13.964/2019

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11/02/2021 às 12:40
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5 O CONTROVERSO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO 

Não havia consenso na doutrina brasileira quanto ao enquadramento do processo penal brasileiro em um dos sistemas mencionados.

Para alguns estudiosos, a Constituição de 1988 recepcionou o sistema acusatório, haja vista o preceito constitucional do artigo 5º, inciso LV, que solidifica as garantias do contraditório e da ampla defesa no processo penal, e pela leitura do artigo 129, que confere exclusividade ao Ministério Público para iniciativa e promoção da ação penal pública, separando assim as atribuições de acusar, julgar e defender.

Outros defendiam que o processo brasileiro era eminentemente misto, tendo por base o inquérito como uma fase integrante do processo penal, dividindo o sistema pátrio em duas fases: a primeira composta pela investigação preliminar – predominantemente inquisitiva; e a segunda com início do oferecimento da denúncia ou queixa e a instauração do processo propriamente dito, esse com viés acusatório.

Imperioso ressaltar que antes da Constituição de 1988, o Código de processo penal tinha um viés misto, haja vista o caráter inquisitorial da fase inicial da persecução penal, entretanto iniciado o processo propriamente dito, consolidava-se a fase acusatória. Todavia, com a promulgação da “Magna Carta”, se estabeleceu a divisão das funções e atribuições de acusar, defender e julgar, bem como pôs o processo sob a égide dos princípios do contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, devido processo legal, etc.

Nota-se o entendimento de Brasileiro Lima (2020, p.45), quanto à transição do sistema processual nacional:

Quando o Código de Processo Penal entrou em vigor, prevalecia o entendimento de que o sistema nele previsto era misto. A fase inicial da persecução penal, caracterizada pelo inquérito policial, era inquisitorial. Porém, uma vez iniciado o processo, tínhamos uma fase acusatória. Porém, com o advento da Constituição Federal, que prevê de maneira expressa a separação das funções de acusar, defender e julgar, estando assegurado o contraditório e a ampla defesa, além do princípio da presunção de não culpabilidade, estamos diante de um sistema acusatório.

Aliás, em todo processo de tipo acusatório, vigora os princípios, segundo o qual o acusado, isto é, a pessoa em relação a quem se propõe a ação penal, goza do direito “primário e absoluto” da defesa. O réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariá-la, evitando assim possa ser condenado sem ser ouvido. (TOURINHO FILHO, 2018).

Acontece que, algumas alterações no Código de Processo Penal no decorrer do tempo, foi suplementando o entendimento minoritário pelo Sistema misto, a Lei nº 11.690 de 2008 alterou alguns dispositivos relativos à prova, a inovação se deu no art. 156, I, ao qual facultava ao juiz de ofício ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes.

Em um sistema acusatório, cuja característica básica é a separação das funções de acusar, defender e julgar, não se pode permitir que o magistrado atue de ofício na fase de investigação. Essa concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa, o juiz inquisidor, além de violar a imparcialidade e o devido processo legal, é absolutamente incompatível com o próprio Estado Democrático de Direito, assemelhando à reunião dos poderes de administrar, legislar e julgar em uma única pessoa, o ditador, nos regimes absolutistas. A tarefa de recolher elementos para a propositura da ação penal deve recair sobre a Polícia Judiciária e sobre o Ministério Público, preservando-se, assim, a imparcialidade do magistrado. (BRASILEIRO LIMA, 2015, p.64).

De mais a mais, findando a divergência acalorada, a Lei nº 13.964 de 24 de Dezembro de 2019, conhecida como Lei Anticrime, trouxe a previsão legal de uma estrutura acusatória do Processo Penal brasileiro, senão vejamos: “Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.”

Nesse sentido, no melhor entendimento, houve a revogação tácita da regra do art. 156, I do CPP, que facultava ao juiz, de ofício, ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes. Quanto ao art. 156, II do CPP onde é facultado ao juiz, de ofício, determinar, no curso da instrução, ou antes, de proferir sentença, a realização de diligência para dirimir dúvida sobre ponto relevante, em consonância com o art. 3-A, do CPP, somente admite-se essa inciativa em favor do réu, sendo que o juiz não substituirá a atuação probatória do órgão de acusação, devendo preservar, com afinco, sua imparcialidade.

De fato, houve a positivação do sistema acusatório com a reforma legislativa, todavia deve-se analisar, se a simples previsão legal concretiza a complexa estrutura acusatória desejada pelo legislador. Num olhar ideológico, o projeto do Pacote Anticrime tem um viés encrudescedor do sistema criminal, servindo como instrumento de repressão, e como já visto, trata-se de uma reforma parcial em um Código com base inquisitorial.

Por óbvio que algumas mudanças reafirmam o anseio pelo sistema acusatório, tais como: a implementação da figura do Juiz de garantias – art. 3°B - (Suspenso por prazo indeterminado pela decisão cautelar, proferida nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux); Arquivamento do inquérito policial pelo órgão de acusação – art. 28 (Também suspenso pelas AdIs anteriores); Acordo de Não persecução Penal – art. 28-A e a Manutenção da cadeia de custódia da prova penal – art. 158-A.

Contudo, não há um otimismo nas mudanças processuais, pois reformas pontuais não alteram toda a estrutura sistematizada, nas palavras Bruno Milanez, 2020:

[...] ainda que a reforma produzida pelo pacote anticrime fosse integralmente positiva – o que não é o caso –, seria necessário uma mudança de mentalidade, pois de nada adianta a modificação de leis sem a necessária modificação de práticas. Se seguirmos pensando os institutos processuais a partir de uma matriz inquisitorial, qualquer modificação legislativa que se promova será inserida na engrenagem autoritária e produzirá seus efeitos deletérios.

É nítido que a prática não acompanhará as mudanças processuais, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do HC. 583.995/MG entenderam ser possível a conversão da prisão em flagrante em medida cautelar pessoal, inclusive a prisão preventiva, mesmo sem pedido expresso do Ministério Público ou da autoridade policial, contrariando ao artigo 311 do (CPP), com a nova redação dada pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime).

E essa não é uma decisão isolada, como se observa nas jurisprudências:

PRISÃO PREVENTIVA – FLAGRANTE – CONVERSÃO DE OFÍCIO – ILEGALIDADE – AUSÊNCIA. Atendidos os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, a conversão de flagrante em preventiva independe de provocação do Estado-acusador ou da autoridade policial. PRISÃO PREVENTIVA – TRÁFICO DE DROGAS – GRADAÇÃO. A gradação do tráfico de drogas revela estar em jogo a preservação da ordem pública. (HC 174102, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 18/02/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-049 DIVULG 06-03-2020 PUBLIC 09-03-2020).

[...] 1. O Juiz, mesmo sem provocação da autoridade policial ou da acusação, ao receber o auto de prisão em flagrante, poderá, quando presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, converter a prisão em flagrante em preventiva, em cumprimento ao disposto no art. 310, II, do mesmo Código, não havendo falar em nulidade. (RHC 120.281/RO, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 05/05/2020, DJe 15/05/2020).

Pois bem, não obstante a proclamada adoção de um processo penal com estrutura acusatória, a prática judiciária tem agasalhado diversas situações em que se realizam atividades jurisdicionais com viés inquisitorial, isso porque, nossa cultura é inquisitiva, o Brasil, após a sua independência, da qual resultou produção legislativa diversa da que regia Portugal, sempre tendeu por um maior ou menor inquisitorialismo na sua estrutura processual penal. Em seu pioneiro Código de Instrução Criminal do Império (1832), manteve as práticas inquisitoriais que nos colocavam mais próximos do sistema francês (modelo reformado ou misto) do que do modelo adversarial inglês, simbolizado pelo julgamento popular. SCHIETTI, 2020.

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Abre-se um parêntese, diante desse cenário, para as mudanças na justiça penal experimentadas em alguns países da América Latina. Na vanguarda de uma consolidada estrutura acusatória, temos o Processo penal Chileno e o Uruguaio. Os Chilenos passaram de uma estrutura inquisitorial, e hoje têm um sistema acusatório materializado. Apesar de muita resistência souberam transpor os obstáculos, submeteram os juízes a reciclagens para que pudessem aprender as novas regras pertinentes aos princípios do Sistema Acusatório. (MOREIRA, 2020). No Uruguai o novo Código de Processo Penal modificou substancialmente o procedimento penal, passando do Sistema Inquisitório para o Sistema Acusatório, essencialmente oral e público. O Ministério Público (Fiscalía) passou a dirigir as investigações, há um Juiz de garantias na fase de Formalización e outro na etapa de Acusación no Juicio Oral definitivo, assegurou-se a imparcialidade dos juízes, consolidando a estrutura acusatória. (MOREIRA, 2017).

Assim, na contramão dos demais países da América latina, o sistema processual penal brasileiro necessita de severas mudanças para solidificar a então almejada estrutura Acusatória, mudanças essas que vão além da simples positivação da norma como estabelecido pela Lei Anticrime – Lei n° 13.964/2019, deve-se alcançar os paradigmas jurídico-culturais, para que cada ator processual entenda com clareza sua função na persecução penal almejada, nas palavras de Lenio Streck, 2009: “Discutir o “sistema acusatório” é discutir paradigmas. Mais do que isso, é tratar de rupturas paradigmáticas”.


CONSIDERAÇÕES FINAIS  

Observa-se que mesmo com a reforma legislativa proposta pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) afirmando a estrutura acusatória do nosso Processo Penal, conservamos os fortes ranços inquisitoriais, tanto em alguns dispositivos da legislação processual, quantos nas práticas forenses, especialmente no que diz respeito às iniciativas judiciais antes e durante a ação penal.

Essa falta de compreensão do nosso modelo processual causa um nefasto conflito normativo e funcional entre os atores processuais, quais sejam: os juízes, promotores, policiais e a defesa, com interferências recíprocas em atribuições e competências que deveriam possuir um contorno delimitado.

Não obstante, a mudança legislativa é necessária, mas é apenas um começo, e não o “Telos” da norma. Sem esse entendimento, torna-se inconcebível que os juízes, membros do Ministério Público e defensores ocupem as novas funções estabelecidas pela reforma legislativa, em outras palavras a principal mudança deve ser a jurídico-cultural.

Por fim, analisando as transformações processuais nos países Latinos Americanos, demonstrou-se a importância da capacitação dos profissionais, especialmente quanto aos procedimentos inovadores para conseguir a mudança cultural que é preciso para uma reforma substancial na estrutura Processual Penal, cuja origem é enraizada em bases inquisitoriais.

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Sobre o autor
Ederson Luiz Reis dos Santos

Mestrando em Ciências Criminológico-Forenses pela Universidade de La Empresa/Uruguai (2020). Pós-graduando em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (2020). Especialista em Direito aplicado pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná (2019). Membro do IBCCRIM. Atualmente é servidor público na Prefeitura Municipal de Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Ederson Luiz Reis. A suposta afirmação do sistema acusatório no processo penal com a Lei Anticrime n. 13.964/2019. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6434, 11 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88245. Acesso em: 30 abr. 2024.

Mais informações

Artigo publicado na Revista de Direito Público da Procuradoria –Geral do Município de Londrina/ Associação dos Procuradores do Município de Londrina – APROLON / Procuradoria –Geral do Município de Londrina, - v.9,n.1, (Dez, 2020) – Londrina, 2020. Anual ISSN: 2317-4188.

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