1. INTRODUÇÃO
As questões que versam acerca da vida, liberdade e dignidade, dificilmente serão dirimidas de forma uníssona, pois estão intrinsicamente ligadas aos direitos fundamentais da pessoa humana. Sobre essa questão, cabe sobrelevar que, ainda que sejam fundamentais, não tem caráter absoluto, isto é, podem ser relativizados à medida em que entrarem em conflito entre si, ou com os demais direitos constitucionais.
Sob essa ótica, a controvérsia entre a liberdade religiosa e a preservação da vida - questão que permeia diversas demandas judiciais do nosso país, especialmente nos casos de transfusão de sangue em pacientes adeptos à religião Testemunhas de Jeová - apontou a necessidade de novas formas de enfrentamento da matéria, sem, contudo, esgotá-la, ao passo que os pensamentos e convicções compõem o íntimo de cada indivíduo e podem passar por toda uma vida sem serem exteriorizados.
O campo de estudo da bioética, por sua vez, surge com intuito de facilitar o embate de questões interdisciplinares, que demandam a compreensão de mais de um ramo científico. A princípio, o célebre Van Potter, introduziu a bioética voltada a um compromisso global de preservação e equilíbrio dos seres humanos com o ecossistema, no entanto, sem prever a rapidez dos avanços tecnológicos, mormente a biotecnologia, a abordagem da bioética resultou em um novo ramo de conhecimento que propiciasse uma “ponte” entre a ciência e o ser humano. É daí que se extrai a frase de que “nem tudo que é cientificamente possível é eticamente aceitável”.
Para LEONE, PRIVITERA e CUNHA[1], a bioética é a ciência que tem como objetivo indicar os limites e as finalidades da intervenção do homem sobre a vida, identificar os valores de referência racionalmente proponíveis e denunciar os riscos das possível aplicações.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. Teoria dos Princípios da Bioética
Foi pelos ensinamentos de Beauchamp e Childress, em “The Principles of Bioethics”, que a bioética, em linhas vindouras, foi intitulada como “principialismo”, assente em quatro princípios básicos, sendo dois de ordem deontológica, e outros dois de linha teleológica. São estes, respectivamente: a não maleficiência e justiça; e a beneficência e autonomia.
2.1.1. Beneficência/não maleficência
A beneficência, modernamente intitulada por benevolência é, em suma, o princípio que vai contra à teoria de Thomas Hobbes de que a natureza do ser humano é majoritariamente dominada pelo egoísmo. Tem-se, então, que o egoísmo não é a única força que rege a vontade humana, pois toda pessoa tem, dentro de si, ainda que residualmente, empatia para os que convive. Segundo Shaftesbury é a teoria que define o senso moral das relações. Para Hume, no entanto, trata-se de uma tendência que promove os interesses dos homens e procura a felicidade da sociedade.
Daí que se extrai que a beneficência é uma virtude das pessoas para agir de maneira correta, ou de maneira simplícita, significa “fazer o bem”. Por outro lado, pode-se dizer que a não maleficência consiste em “evitar o mal”, porquanto se traduz na obrigação de não causar danos.
Desse modo, nos preceitos de Gillon[2], cria-se o hábito de duas coisas: socorrer ou, ao menos, não causar danos. A validação de sua teoria se dá, sobremaneira, na prática da medicina, ao passo que sempre que o profissional propuser um tratamento ao sujeito, deverá reconhecer a dignidade do paciente e considerá-lo na sua totalidade física, espiritual, social e psicológica, a fim de que seja propiciado o melhor recurso terapêutico.
Com efeito, nos casos em que existe a teoria moral do duplo efeito, como por exemplo, um paciente com melanoma em uma das mãos e que poderá perder o braço para salvar sua vida, o princípio da beneficência indica que o da não maleficência não tem caráter absoluto e que, por consequência, nem sempre terá prioridade em todos os conflitos.
Qualquer dano que venha à ser causado ao ser humano deve levar em conta, primordialmente, o benefício do próprio paciente, à medida que os interesses da família ficam em segundo plano.
2.1.2. Autonomia
Um dos pontos cruciais da relação médico e paciente repousa no momento de tomar as decisões, especialmente na escolha dos tratamentos que necessitam ser realizados. De um lado temos o profissional especializado, que conhece os pontos pertinentes de cada terapia, ou seja, aquele que deveras tem o conhecimento e aptidão técnica. Em contrapartida, está o paciente, pessoa humana, dotado de autonomia e livre convicções, sejam de ordem religiosa, social, moral, que em sua maioria são desprovidas de qualquer embasamento científico.
O alicerce da medicina repousa no princípio da beneficência, porquanto o profissional se coloca sob juramento de buscar o bem-estar do próximo a qualquer custo, inclusive do próprio paciente. Contudo, seria egolatria admitir que a vontade médica se sobrepusesse de maneira absoluta ao arbítrio do enfermo. Ademais, conforme mencionado alhures, nenhum princípio, por mais nobre que seja, será soberano quando se contrapor à outro. In casu, verifica-se que a beneficência deixa de ser incondicional quando esbarra no livre arbítrio que o paciente tem de decidir se irá ou não submeter-se ao recomendado tratamento.
Nessas circunstâncias, a autonomia é o poder da pessoa de tomar decisões que afetam diretamente sua vida, saúde, integridade física e psíquica e relações sociais, isto é, por meio de um conjunto de alternativas que lhe são apresentadas, o indivíduo tem faculdade de escolher entre estas, aquela que por suas livres convicções acredite ser a melhor para o seu bem-estar.
A autonomia, contudo, não se confunde com o respeito a autonomia, como se infere das palavras de COSTA, GARRAFA e OSELKA:
"respeitar a autonomia é reconhecer que ao indivíduo cabe possuir certos pontos de vista e que é ele quem deve deliberar e tomar decisões segundo seu próprio plano de vida e ação, embasado em crenças, aspirações e valores próprios, mesmo quando divirjam daqueles dominantes na sociedade ou daqueles aceitos pelos profissionais de saúde”.[3]
À vista disso, para que se tenha o respeito à autonomia, são indispensáveis dois elementos: a liberdade e a informação.
A liberdade de decisão de um indivíduo, por sua vez, pode ser amplamente exercida quando ele não está adstrito às pressões extrínsecas que dificultem sua expressão, ao passo que, se, porventura, venha receber qualquer influência externa, podemos dizer que a pessoa tem sua autonomia limitada, situação ordinariamente presenciada com as crianças.
Soma-se isso à capacidade psicomotora ainda em desenvolvimento, para evidenciar que o infante naturalmente apresentará dificuldade em decidir o que é mais benéfico à sua saúde, sobretudo se envolver algum tratamento que lhe cause desconforto. Assim, cabe aos responsáveis pela criança eleger qual o tratamento mais adequado.
No entanto, cumpre esclarecer que o exercício da autonomia está intimamente atrelado à informação, uma vez que o indivíduo deve conhecer quais são as suas possibilidades, a fim de melhor exercê-las, seja para decidir para si ou em prol de terceiro por quem zele. Neste ponto, cumpre sobrelevar que a informação não se exaure com a primeira indicação clínica, pois o médico, sempre que possível deve reforçar e renovar as explicações sobre o tratamento apresentado.
Por outro lado, o profissional não pode meramente alegar a escusa de que o paciente é adulto e sua autonomia deve ser plenamente respeitada, tendo em vista que seus esforços devem ser dirimidos a atender ao princípio da beneficência em primeiro lugar. Por isso, não é incomum que a liberdade de algumas pessoas seja afastada em detrimento das demais, como por exemplo, a proibição de fumar em locais fechados.
2.1.3. Justiça
O terceiro princípio basilar da bioética é o da justiça. Consiste na igualdade de tratamento e à justa atribuição das verbas do Estado para os campos das ciências médicas, com intuito de garantir isonomia para todos, isto é, dar a cada pessoa o que lhe é devido segundo suas necessidades. É também a obrigação ética de tratar cada paciente de acordo com os costumes morais e corretos, despido de parcialidades religiosas, culturais, sociais ou financeiras.
Para Guy Durand[4]:
“há justiça quando se obtém o que se merece, recebe-se o que é devido, colhe-se aquilo a que se tem direito”.
Em compensação, é desse princípio que se extrai ainda a objeção de consciência, direito conferido ao profissional, de se eximir a realizar um procedimento, ainda que aceito pelo paciente ou até mesmo legalizado, desde que indique meios igualmente eficientes para que o enfermo não fique completamente desassistido. Verifica-se, contudo, que quando contraposta a objeção de consciência do profissional e a autonomia da vontade do paciente, impõe, via de regra, a flexibilização da objeção médica.
2.2. O juízo de ponderação no entendimento da jurisprudência
Deveras, a questão de o indivíduo poder ou não, recusar um tratamento médico por convicção religiosa, sob o prisma jurídico, envolve garantias constitucionais que se encontram, a priori, em um mesmo patamar.
A liberdade religiosa é fruto do Estado Democrático de Direito, precipuamente esculpida no artigo 5º, inciso V, da Constituição Federal, in verbis:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”
Nas palavras do célebre José Afonso da Silva[5], a liberdade religiosa compreende “(...) três formas de expressão (três liberdades): (a) a liberdade de crença; (b) a liberdade de culto; (c) e a liberdade de organização religiosa”.
Logo, o Estado, ou qualquer outra pessoa, não poderia constranger alguém com uma exigência que não faça parte de suas convicções pessoais, ainda quando referir-se a tratamento médico contrário às suas crenças religiosas. Cumpre esclarecer, contudo, que a liberdade de crença não se confunde com a aludida liberdade de consciência, como descreve Pontes de Miranda[6]:
“Ambas são inconfundíveis, pois, o descrente também tem liberdade de consciência e pode pedir que se tutele juridicamente tal direito, assim como a liberdade de crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter crença”
Assim, identificam-se dois direitos constitucionalmente assegurados no artigo 5º da Carta Magna: à liberdade religiosa, direito fundamental do indivíduo; e à vida, direito indisponível. Por consequência, quando contrapostos, a solução da questão se torna de difícil conclusão, sobretudo quando trata-se de um paciente em iminente risco de vida, pois para os profissionais médicos o respeito à autonomia do indivíduo, neste caso, pode resultar em vindouras complicações, inclusive na esfera penal.
No tocante à recusa de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová, em sendo um paciente capaz, que consegue plenamente expressar sua vontade na renúncia ao tratamento, prevalece a autonomia do paciente sobre a beneficência[7]. Por outro lado, a controvérsia cinge-se, sobremaneira, quando se trata de paciente incapaz, hipótese na qual, além da recusa dos pais, a própria criança ou adolescente, no exercício de sua liberdade religiosa, escusa-se da transfusão de sangue.
Por primeiro, cabe ponderar que, em havendo risco iminente de morte e nenhuma outra alternativa terapêutica, o médico deve realizar o procedimento, ainda que sem consentimento dos pais ou do menor. Isso porque a liberdade de crença dos responsáveis pela criança ou adolescente não encontra respaldo legal no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como na Convenção Internacional sobre os direitos da Criança, quando constituir ameaça à vida do mesmo.
A propósito, os diplomas legais supramencionados[8] têm previsão expressa de que toda criança tem direito inerente à vida que deve ser resguardado. Foi sob essa perspectiva, em decisão recente proferida pelo MM. Juízo Clauber Costa Abreu, da 15ª Vara Cível de Goiânia, que assim considerou:
Não se está a negar que as liberdades de consciência e de culto religioso sejam garantias fundamentais elencadas em nossa Carta Magna. Entretanto, o que se coloca em jogo, no caso, não é a garantia de um direito individual puro e simples, mas a garantia do direito de uma pessoa ainda incapaz, com natureza personalíssima e, portanto, irrenunciável" (TJGO, Proc. Nº 5112276.40.2019.8.09.0051, julgado em 01/03/2019)
Sob esse ângulo, nos deparamos com a parcela da jurisprudência que filia-se no sentido, sempre em favor da vida, independente da manifestação contrária dos responsáveis, ponderando a beneficência sobre a autonomia por representação dos pais ou a autonomia em desenvolvimento do adolescente.
Entretanto, de modo diverso ao entendimento acima exarado, tem-se outra parcela que defende prevalecer a decisão emanada pelos pais ou então responsáveis do menor, ao passo que em eventual morte do incapaz, os responsáveis não respondem na esfera penal.
Sem embargo, a omissão do profissional de saúde resulta em crime omissivo impróprio quando ocorrido o resultado morte. Isso porque, em se tratando de criança ou incapaz, como estes não possuem condições de consentir, o médico tem o dever de atuar para salvar suas vidas, ou seja, o médico atua no papel de garantidor, que tem plena legitimidade para decidir em situações de emergência, principalmente quando há evidente risco de vida, quando assume a responsabilidade de evitar o resultado morte.
No caso do Habeas Corpus 268.459/SP, a controvérsia trouxe à baila diversos princípios que orientaram o deslinde da causa: os princípios da bioética, especialmente o da autonomia, em contraposição ao da beneficência, tal como os princípios da proteção prioritária e da autodeterminação do paciente na relação médico-paciente. Contudo, o principal ponto da divergência se deu entre o princípio da liberdade de crença religiosa e a percepção do direito à vida como princípio fundamental de todos os demais princípios, para ao fim, prevalecer sob o entendimento da Colenda Turma, a liberdade de crença dos pais.
3. ANÁLISE CRÍTICA E PESSOAL
A decisão proferida no Habeas Corpus 268.459/SP, ora objeto de análise, se coaduna ao entendimento preponderante adotado pela jurisprudência dos tribunais superiores, na medida em que: (i) a liberdade de crença do indivíduo plenamente capaz deve ser respeitada e sobrepõe à beneficência; (ii) também prevalece a liberdade de crença dos pais ou responsáveis, quando o paciente for criança ou adolescente, de modo que a recusa na transfusão pelos pais não resulta em responsabilidade penal; (iii) o médico, por sua vez, ainda que contrário ao consentimento dos responsáveis, deve atuar para salvar a vida do incapaz, sob pena de caracterizar crime omissivo impróprio.
No entanto, minhas convicções pessoais refutam, em parte, o posicionamento adotado no caso em comento. Por primeiro, pactuo com a postura frente à responsabilização dos profissionais médicos, quando estes deixam de realizar a transfusão de sangue, ainda que contra o consentimento dos pais, pois notadamente contrapõe os ditames éticos e deveres da medicina. Ademais, nessas situações o médico assume o papel de garantidor, pois é ele quem detêm dos conhecimentos acerca do tratamento, bem como as respectivas implicações de sua não aplicação.
Em contrapartida, no tocante à ausência de responsabilização penal dos genitores, verifica-se que o termo de consentimento informado que foi assinado pelos pais foi desconsiderado do conjunto probatório. Anote-se que a jovem contava com apenas 13 anos, de modo que o consentimento pertencia, de fato, aos seus genitores, que deveriam ter respondido pelos danos acometidos à filha, sobretudo porque se tratava do direito à vida. Assim, os pais ou responsáveis se encontram no mesmo patamar dos médicos, isto é, na qualidade de garantidores naturais do bem estar e da vida do menor, devendo responder judicialmente quando da sua ação ou omissão, resultar em danos ao tutelado.
Não obstante, o caso perdurou 20 anos aguardando julgamento e, por fim, eximiu totalmente a responsabilidade dos pais, imputando o ônus tão somente aos médicos. Tal posicionamento vislumbra a aceitação do judiciário à possibilidade de que todos os adeptos de religiões como Testemunhas de Jeová perpetuem a recusa de transfusões sanguíneas, necessárias aos filhos menores de idade, dificultando ainda mais o trabalho dos médicos que se esbarrem em situações semelhantes.
Parece-me muito imprudente blindar os pais da morte de seus filhos com fulcro na liberdade de crença, pois esta esbarra em outro direito fundamental, qual seja, o direito à vida. Nesse diapasão, filio-me ao posicionamento exarado pelo Ministro Schietti, de que nenhum princípio ou direito é absoluto, quando venha a confrontar com outro. A valer, o resultado morte não priva o menor tão somente da vida, mas também de todos os outros direitos que este, porventura, teria, inclusive, de desenvolver sua própria liberdade de crença.
Referências
[1] LEONE, S.; PRIVITERA, S.; CUNHA, J.T. (Coords.). Dicionário de bioética. Aparecida: Editorial Perpétuo Socorro/Santuário, 2001.
[2] Gillon R. Primum non nocere and the principle of non-maleficence. BMJ 1985;291:130-1.
[3] Iniciação à bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998, p. 56
[4] DURAND, Guy. Introdução Geral à Bioética, 2003, p. 40.
[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 232
[6] MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 com a emenda n. 1 de 1969, p. 119
[7] TJSP, Agravo de Instrumento nº2178279-13.2019.8.26.0000
[8] ECA, Art. 7º - A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Referências Bibliográficas
DURAND, Guy. Introdução Geral à Bioética: histórias, conceitos e instrumentos. Trad, Nicolás Nyimi Campanário. Edições Loyola, 2003. São Paulo.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
Iniciação à bioética: Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998.