I – O FATO
A deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) coletava, em fevereiro de 2019, assinaturas para revogar a 'PEC da Bengala', proposta de emenda à Constituição que elevou de 70 para 75 anos a idade da aposentadoria compulsória de magistrados, em 2015. Um efeito prático da revogação da medida seria ampliar de dois para quatro o número de integrantes do Supremo Tribunal Federal (STF), que deixariam a Corte durante o mandato presidencial de Jair Bolsonaro. Além do ministro Marco Aurélio Mello, que vai completar 75 anos em julho de 2021, se aposentariam também os ministros Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Seriam, de pronto, 4 ministros que seriam indicados pelo atual presidente da República, isto porque, com a aposentadoria recente do ministro Celso de Mello, o chefe do Executivo federal já conseguiu indicar um ministro.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 159/19, apresentada pela deputada Bia Kicis (PSL-DF), volta a fixar em 70 anos a idade para a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo Tribunal Federal, dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas de União.
Em análise na Câmara dos Deputados, a PEC revoga a Emenda Constitucional 88, resultante da chamada PEC da Bengala, que aumentou de 70 para 75 anos a idade da aposentadoria compulsória dos ministros.
“A elevação de idade para aposentadoria compulsória, além de não proporcionar à administração pública qualquer benefício considerável, revelou-se extremamente prejudicial para a carreira da magistratura, que ficou ainda mais estagnada do que já era”, afirmou a deputada.
II – RUMO À AUTOCRACIA
O projeto tem um claro objetivo: a tomada, pelo Executivo, de todos os órgãos existentes pelo Poder Executivo, e seu fortalecimento num projeto de poder autocrático.
É necessário ter o necessário cuidado para com a chamada “democracia de fachada”, dentro da construção de um poder discricionário, abusivo, para quem nada é obstáculo e tudo pode.
Na ação de Chávez, na Venezuela, a construção do poder discricionário demanda uma democracia de fachada, com eleições regulares e Parlamento em funcionamento, enquanto as estruturas democráticas vão sendo carcomidas. A imprensa livre é sufocada e a oposição é constrangida pela máquina de destruição de reputações. Já o Judiciário é tomado por governistas, transformando-se em pesadelo dos dissidentes do regime. Assim, estão dadas as condições para que a Constituição se torne letra morta.
Para isso, no passado, foi importante a edição do AI – 5, que castrou a democracia, instituiu a censura, deu caminho para o arbítrio, institucionalizou a tortura. O HC em matéria de delitos políticos foi eliminado e o Judiciário passou a se subordinar ao Executivo, com o Legislativo silenciado.
Umair Haque, em texto sobre o novo fascismo, afirmou:
“Acredito que o Novo Fascismo, em sua individualidade, é o acontecimento político mais importante de nossas vidas. Trata-se de um momento crítico para a sociedade global – um momento decisivo. E, como todo momento decisivo, é um teste. Um teste que avalia o melhor de nós: se as sociedades civilizadas podem, de fato, continuar civilizadas, no sentido mais essencial dessa expressão – ou se corremos o risco de mergulhar, outra vez, numa era de guerra mundial e genocídio.”
E ainda disse:
“O fascismo é sempre um produto de uma inconveniência econômica. A inconveniência cria uma sensação ardente de injustiça. O bolo da riqueza encolhe, desmorona e se deteriora. As sociedades começam a disputar a quem pertencem as fatias, que vão ficando cada vez mais finas, cada vez mais emboloradas.”
E aqui vem a segunda etapa do fascismo: vamos chamá-la demagogia, como concluiu Umair Haque:
Surge uma briga entre os líderes no sentido de fazer alguma coisa em relação ao problema da estagnação. Tanto a esquerda quanto a direita vão ficando mais extremadas. E aí acaba o centro. O vácuo que o centro ocupava dá espaço para um tipo de político inteiramente novo – um tipo de político que normalmente era freado pela esquerda em sua luta contra a direita, mas agora livre para combinar o que há de pior na esquerda e na direita.
Logo aparece um demagogo, que grita: o bolo pertence ao povo – e só ao povo! Ele sintetiza o que há de pior, tanto na esquerda quanto na direita. É um socialista, mas só para as pessoas certas. Mas também é um nacionalista e não reivindica apenas domínio e recursos, como terra: ele reivindica a superioridade, pelo sangue ou por deus, de um povo, para além dos recursos. Daí a expressão, paradoxal, “nacional socialismo”.
A perigosa apelação do demagogo é a seguinte: ele localiza a fonte de estagnação naqueles que não têm pertencimento, que são inferiores – não apenas moral, mas existencialmente – e os aponta com o dedo, aponta o veneno dentro da sociedade. É muito mais fácil acreditar que a sociedade está sendo envenenada por um conjunto de pessoas corruptas que não pertencem a ela, do que acreditar que o contrato social acabou e deve voltar a ser escrito – e assim se abre o caminho do demagogo para o poder.
E chegamos ao terceiro estágio do fascismo: a tirania.
Mas quem é “o povo”? Quem é, de fato, inferior e quem é superior? Quem merece os frutos do nacional socialismo – o direito a consumir fatias do bolo que encolhe, que é do que trata toda esta ideologia? E aí vem à tona a noção de volk: os verdadeiros moradores da terra, os herdeiros do destino, o direito de nascer, a superioridade. E como os definiríamos? Afinal, essa é uma pergunta traiçoeira, que não admite certezas óbvias. Você merece os recursos da Nação-Sociedade simplesmente por ter nascido ali? Ou porque você viveu ali? Ou seria porque seus avós já nasceram ali? É justamente a essas perguntas que a Nação-Sociedade, Na-Zi, começa a dedicar seus recursos. Imensas burocracias são organizadas, trilhas de papel são criadas, investigações são realizadas.
Sob o enfoque econômico, já se disse que o fascismo é o sistema de governo que opera em conluio com grandes empresas (as quais são favorecidas economicamente pelo governo), que carteliza o setor privado, planeja centralizadamente a economia subsidiando grandes empresários com boas conexões políticas, exalta o poder estatal como sendo a fonte de toda a ordem, nega direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos (como a liberdade de empreender em qualquer mercado que queira) e torna o poder executivo o senhor irrestrito da sociedade.
Não se pode criar um index totalitário que enxerga no professor alguém que está proibido de passar informações aos alunos, seja da natureza que for (ideológica, política, cultural, credo).
Há, no Brasil, por visíveis indícios o crescimento de um projeto visando a afirmação de um estado autoritário de extrema direita.
Esse projeto não conviveria com um Legislativo e um Judiciário livre, não poderia conviver com as garantias constitucionais, sobretudo imbuídas por normas constitucionais autoexecutáveis, por uma imprensa livre, pronta a apresentar o debate. As ações afirmativas das minorias seriam relegadas a nada, o meio ambiente perderia o papel de direito fundamental. Tudo isso é impactante.
Destaco recente afirmação do atual presidente, no UOL, em 15 de fevereiro de 2021:
‘O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) criticou, nesta segunda-feira (15), o Facebook, e defendeu o aumento da tributação das redes sociais no Brasil. Em outra reclamação contra políticas das mídias sociais contra a disseminação de notícias falsas, o mandatário disse que "o certo é tirar de circulação" veículos como Folha, O Globo, O Estado de S. Paulo e o site O Antagonista.”
III – NÃO HÁ DIREITO ADQUIRIDO a REGIME JURÍDICO
Por certo, não há falar em direito adquirido em face de diminuição de idade de aposentadoria.
Não há direito adquirido a regime jurídico.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro ensina que “a expressão regime jurídico administrativo é reservada tão-somente para abranger o conjunto de traços, de conotações que tipificam o Direito Administrativo, colocando a Administração Pública numa posição privilegiada, vertical, na relação jurídico-administrativa. Basicamente pode-se dizer que o regime administrativo resume-se a duas palavras apenas: prerrogativas e sujeições” (Direito Administrativo, 19ª edição, 2006, pág. 64).
Marçal Justen Filho tem a seguinte definição: “o regime jurídico de direito público consiste no conjunto de normas jurídicas que disciplinam o desempenho de atividades e de organizações de interesse coletivo, vinculadas direta ou indiretamente à realização dos direitos fundamentais, caracterizado pela ausência de disponibilidade e pela vinculação à satisfação de determinados fins” (Curso de Direito Administrativo, 2005, pág. 48).
Não se pode falar em direito adquirido a regime jurídico. Veja-se, para tanto, dentre diversos julgamentos, o Recurso Extraordinário 653.736 – DF, Relator Ministro Luiz Fux, onde se ratifica que não há falar em direito adquirido a regime jurídico, desde que observada a proteção constitucional à irredutibilidade de vencimentos.
Para Savigny (Traité de droit romain, Paris, tomo VIII, 1851, pág. 363 e seguintes), leis relativas à aquisição e á perda dos direitos eram consideradas as regras concernentes ao vinculo que liga um direito a um indivíduo, ou a transformação de uma instituição de direito abstrata em uma relação de direito concreto.
Por sua vez, as leis relativas à existência, ou modo de existência dos direitos eram definidas por Savigny como aquelas leis que têm por objeto o reconhecimento de uma instituição em geral ou seu reconhecimento sob tal ou tal forma.
Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969, 1971, volume V, pág. 51), na mesma linha de Reynaldo Porchat (Da retroatividade das leis civis, 1909, pág. 59 e seguintes), assim disse:
¨Partiu ele da afirmação da equivalência das duas fórmulas, a que corresponde ao critério objetivo(as leis novas não têm efeito retroativo) e a que corresponde ao critério subjetivo(as leis novas não devem atingir os direitos adquiridos) e assentar que somente a certas categorias de regras – as relativas a aquisição de direitos, à vida deles, escapam à duas expressões da mesma norma de direito intertemporal. E.g, a lei que decide se a tradição é necessária para a transferência da propriedade, ou se o não é, pertence àquela espécie; bem assim, a que exige às doações entre vivos certas formalidades, ou que as dispensa. De ordinário, na regra de aquisição está implícita a de perda. A não retroatividade é de mister em tais casos, quer as consequências sejam anteriores, quer posteriores ao novo estatuto.¨
É sabido que Carlo Gabba (Teoria della retroattivitá della legge, 3ª edição, volume I, pág. 191) fundamenta o princípio da irretroatividade das leis no respeito aos direitos adquiridos. Define-o como sendo todo o direito que é consequência de um fato apto a produzi-lo em virtude da lei do tempo em que foi o fato realizado, embora a ocasião de o fazer valer não se tenha apresentado antes da vigência de uma lei nova sobre o assunto e que, nos termos da lei sob a qual ocorreu o fato de que se originou, entrou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu.
Reynaldo Porchat (obra citada, pág. 11 e seguintes) lembra definições: direito adquirido é o que entrou em nosso domínio e não pode ser retirado por aquele de quem o adquirimos.
Para Bergman, citado por Reynaldo Porchat, é o direito adquirido de modo irrevogável, segundo a lei do tempo, em virtude de fatos concretos.
É certo que Paulo de Lacerda (Manual do Código Civil Brasileiro, vol. I, 1ª parte, pág. 115 a 214) obtemperou, ao aduzir que, na definição de Gabba, se encontra apenas defeito de redação, uma vez que, segundo ele, o patrimônio individual, mencionado na definição geral de direito adquirido, não há razão para ser entendido unicamente em sentido econômico, sendo a condição jurídica do indivíduo composta não só de direitos econômicos, mas de atributos e qualidades úteis pessoais de estado e de capacidade.
Na lição de Limongi França (A irretroatividade das leis e o direito adquirido, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1982, pág. 204), o direito adquirido é a consequência de uma lei, por via direta ou por intermédio de fato idôneo; consequência que, tendo passado a integrar o patrimônio material ou moral do sujeito, não se fez valer antes da vigência da lei nova sobre o mesmo objeto.
Tem-se que a capacidade jurídica das pessoas, portanto dos menores, a idade própria para se aposentar, funda-se sobre a lei e é simples faculdade, não constituindo direito adquirido, pelo que está sujeita a lei nova. Assim, quando a lei restringe ou amplia tais situações, deve receber imediata e geral aplicação.