I – O FATO
Informou o Estadão, em sua edição de 6 de março do corrente ano, que o cartório onde o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) registrou a compra de uma casa de R$ 6 milhões em Brasília escondeu informações da escritura pública do imóvel, documento com os dados do negócio que deveria ser acessível a qualquer pessoa que o solicitar. O ato, do 4.º Ofício de Notas do Distrito Federal, contraria a prática adotada em todo o País e representa tratamento diferenciado ao filho do presidente Jair Bolsonaro, segundo especialistas consultados pelo Estadão. As leis que tratam da atividade cartorial não preveem o sigilo.
Na cópia da escritura obtida pela reportagem no cartório, que fica em Brazlândia, região administrativa a 45 km de Brasília, há 18 trechos com tarjas na cor preta. Foram omitidas informações como os números dos documentos de identidade, CPF e CNPJ de partes envolvidas, bem como a renda de Flávio e da mulher, a dentista Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro.
Observa-se ainda daquela reportagem:
“Procurado, o titular do cartório, Allan Guerra Nunes, disse ao Estadão que tomou a medida para preservar dados pessoais do casal. Em um primeiro contato, ele não soube explicar em qual norma embasou sua decisão. Mais tarde, em nota, Nunes afirmou que as informações são protegidas pela Lei 105/2001, que dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras. A regra, porém, não se aplica a cartórios de notas. “Ele (Flávio) não me pediu nada. Quem decidiu colocar a tarja fui eu. Quando eu fui analisar o conteúdo da escritura, acidentalmente tem essa informação da renda”, disse Nunes.”
II – O PRINCIPIO DA PUBLICIDADE REGISTRAL
Se isso ocorre há evidente afronta ao princípio da publicidade.
Como explicam Paschoal de Angelis Neto e Rodrigues Felix Rodrigues (Princípios do direito registral imobiliário brasileiro, in Ius navigandi) (o direito de propriedade e os demais direitos reais só passam a existir com o registro do respectivo título. E são direitos erga omnes. Isto é, enquanto o direito obrigacional diz respeito exclusivamente às pessoas participantes do ato, ou das partes (vendedor e comprador, credor e devedor), o direito real projeta-se sobre o imóvel, conferindo ao seu titular um direito oponível contra todos. O registro, portanto, dá ao direito adquirido uma publicidade constitutiva ou material.
Essa situação jurídica dos imóveis, criada ou alterada em razão dos atos praticados à vista dos títulos e documentos que são apresentados ao registrador deve, porém, ser do conhecimento público.
A essa publicidade denominamos formal. Ela tanto pode ser verbal como escrita, uma vez que o registrador tem obrigação legal de fornecer aos interessados as informações que lhe forem solicitadas e também expedir certidões quando requeridas. Tais certidões podem referir-se a registros e averbações constantes nos livros do cartório ou a documentos arquivados. Podem ser requeridas por qualquer pessoa sem a necessidade de indagação quanto à razão ou interesse do pedido (artigo 17 da LRP). Atualmente, estando o imóvel matriculado, tais informações encontram-se espelhadas na certidão da matrícula, expedida por processo reprográfico. Mesmo a existência de ônus pré-existentes, originários da transcrição anterior estarão presentes na nova matrícula, uma vez que a averbação de tais atos é imperiosa para a abertura da matrícula (artigo 230, LRP).
Assim sendo, a simples leitura da matrícula revela quem é o proprietário e quais são os gravames existentes. Por fim, uma análise sobre a natureza jurídica da matrícula nos leva a concluir que “se trata de um ato de registro, no sentido lato, que dá origem à individualidade do imóvel na sistemática registral brasileira, possuindo um atributo dominial derivado, quase sempre, da transcrição da qual se originou” (Gandolfo, 2002, p.7).
O princípio da publicidade está intimamente ligado ao sistema de aquisição de imóveis no Brasil, na medida em que o Código Civil dispõe que a propriedade imóvel se transfere por ato entre vivos mediante o registro no cartório competente ou, traduzido no jargão “só é dono quem registra”.
Com o registro ou averbação, há a publicidade não apenas do ato, mas também de uma série de dados dos envolvidos como, por exemplo, em uma compra e venda, via de regra, há a publicização do nome completo, CPF/MF, RG, estado civil e domicílio dos agentes, dentre outros, em atenção ao disposto no art. 176 da Lei 6.015/73.
Disse bem Leonardo Brandelli (Publicidade registral imobiliária e a Lei 13.097/2015) que a publicidade é o oposto da clandestinidade, e pode ser definida, nas precisas palavras de José Maria Chico y Ortiz, como "aquel requisito que, añadido a los que rodean a las situaciones jurídicas, asegura frente a todos la titularidad de los derechos y protege al adquirente que confia en sus pronunciamentos, facilitando de esta manera el crédito y protegiendo el tráfico jurídico." 1 A oponibilidade erga omnes, que é característica fundamental dos direitos reais, bem como da eficácia real dos direitos obrigacionais, não pode ser alcançada pela pura dicção legal, no sentido de que um tal direito, trata-se de um direito real, sem que seja dado aos terceiros a possibilidade real de conhecer tais direitos que lhes devem afetar. Mister se faz, para tanto, que haja um meio de cognoscibilidade para os terceiros que não participaram da relação jurídica, mas que podem ser por ela afetados, sem o que, não lhes pode ser oponível a situação jurídica, a qual, portanto, não pode ter eficácia real.
Em verdade, como ainda aduziu Leonardo Brandelli, o registro cria uma publicidade muito mais sólida e eficiente do que os institutos de publicidade até então existentes, como a tradição e a posse, por exemplo.
A esse respeito ensinou Pontes de Miranda (Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. t. XI) que os "direitos, as pretensões, as ações e as exceções existem no mundo jurídico, porque são efeitos de fatos jurídicos, isto é, de fatos que entraram no mundo jurídico" e que lá "são notados, vistos (em sentido amplíssimo) pela aparência deles [...]. Mas a aparência do fato e do efeito, ou só de efeito, pode ser falsa [...], às vezes há o ser que não aparece, e há o que aparece sem ser. A técnica jurídica tenta, com afinco, obviar a esse desajuste entre a realidade jurídica e a aparência". E arremata mostrando que é a publicidade registral quem tem a nobre missão de conseguir tal intento.
Sendo assim qualquer pessoa pode ter acesso ao registro para obter informações acerca de um negócio jurídico ali registrado.
Observo o artigo 172 da Lei 6.015/73, Lei dos Registros Públicos:
“Art. 172 - No Registro de Imóveis serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, " inter vivos" ou " mortis causa" quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para a sua disponibilidade. (Renumerado do art. 168 § 1º para artigo autônomo com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).”
Somente a publicidade registral é publicidade, em seu sentido técnico-civil, no que toca a direitos imobiliários com eficácia ultra partes. E assim o é porque somente o registro imobiliário, instituição publicitária dedicada, contém certos requisitos essenciais a caracterizar alguma instituição como tal, a saber, a destinação a externar, a tornar cognoscível a terceiros determinada situação jurídica, de forma constante (característica que deve sempre estar presente no instituto) e duradoura (a informação publicizada deve estar acessível de forma não efêmera), decorrendo daí algum efeito jurídico em relação a terceiros.
Todos as situações jurídicas imobiliárias, que pretendam ter eficácia ultra partes, devem ser publicizadas no registro imobiliário, com efeito mínimo declarativo têm previsão legal para a publicidade. É o chamado princípio da inscrição.
Sendo assim o princípio de publicidade investe de certeza os assentos, as informações e certidões que se presumem exatos, ainda que o conteúdo da inscrição possa ser apenas uma simples aparência formal, que não reflita a realidade jurídica do momento.
A Lei, assim, abre as portas do Registro de Imóveis ao público em geral, para ter acesso às situações inscritas e documentos pertinentes.
III – O PRINCÍPIO REPUBLICANO
O fato notório de que Flávio Bolsonaro é filho do atual presidente da República não lhe dá situação de privilégio, por óbvio. Isso afronta ao princípio republicano.
O Supremo Tribunal Federal já decidira sobre a existência de cláusulas pétreas implícitas ou seja, existem cláusulas pétreas que, embora não esteja descritas no art. 60, §4 da Constituição, por um raciocínio lógico, lá são incluídas pois que, caso contrário, o sistema jurídico sofreria um colapso. Ademais, o STF possui julgado abordando o princípio republicado, a saber:
“O postulado republicano – que repele privilégios e não tolera discriminações – impede que prevaleça a prerrogativa de foro, perante o STF, nas infrações penais comuns, mesmo que a prática delituosa tenha ocorrido durante o período de atividade funcional, se sobrevier a cessação da investidura do indiciado, denunciado ou réu no cargo, função ou mandato cuja titularidade (desde que subsistente) qualifica-se como o único fator de legitimação constitucional apto a fazer instaurar a competência penal originária da Suprema Corte (CF, art. 102, I, b e c). Cancelamento da Súmula 394/STF (RTJ 179/912 - 913). Nada pode autorizar o desequilíbrio entre os cidadãos da República. O reconhecimento da prerrogativa de foro, perante o STF, nos ilícitos penais comuns, em favor de ex-ocupantes de cargos públicos ou de ex-titulares de mandatos eletivos transgride valor fundamental à própria configuração da ideia republicana, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade. A prerrogativa de foro é outorgada, constitucionalmente, ratione muneris, a significar, portanto, que é deferida em razão de cargo ou de mandato ainda titularizado por aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado, sob pena de tal prerrogativa – descaracterizando-se em sua essência mesma – degradar-se à condição de inaceitável privilégio de caráter pessoal. Precedentes.” (Inq 1.376‑AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 15-2-2007, Plenário, DJ de 16 - 3 -20).
IV – CONSEQUÊNCIAS
O cartório está sujeito a duas leis, a federal, que institui ou mantém o registro e regula os seus efeitos, e a estadual, que dispõe sobre a nomeação do encarregado, a subordinação administrativa; a discriminação de competência, a substituição e os emolumentos cobráveis pelos atos do ofício. A subordinação funcional do encarregado ao juiz assegura a solução de dúvidas e o exercício da correição.
Em sentido lato, o registrador é um funcionário público
Não se pode ter um Registro Público que atue de forma clandestina, negando-se a fornecer dados das negociações ali objeto de registro.
Se assim age o registrador atua em improbidade administrativa por evidente afronta aos ditames do artigo 11 da Lei nº 8.429/92. Caberá ainda ao Desembargador Corregedor competente tomar as providências que se fizerem necessárias.
Caberá ao órgão ministerial que está à frente das investigações com relação a conduta de Flávio Bolsonaro requerer em juízo que o registrador informe os dados ali existentes que se fizerem necessários a bem da sociedade. Aliás, fica a pergunta: Seria a aquisição do dito imóvel objeto de lavagem de dinheiro e como tal objeto de apuração por crime de ação penal pública incondicionada? Aguardemos.