Considerações iniciais:
Desde que entrou em vigor a Lei 9.099/95, que, em especial no tangente ao regramento dos Juizados Especiais Criminais, estabeleceu os princípios norteadores da informalidade, celeridade, oralidade e economia processual (art. 62 da Lei 9.099/95), sempre houve uma preocupação da sociedade brasileira acerca de até que ponto a nova tendência para um direito penal conciliador e mais flexível, baseado na vontade do ofendido, não colocava em risco as fragilizadas vítimas da violência doméstica.
Com efeito, endêmica no Brasil, como de resto nas nações latino-americanas, a violência contra a mulher é comprovada, se não suficientemente pelas estatísticas apresentadas por ONGs e órgãos públicos, pela simples observação das atividades policiais e forenses onde a criminalidade intra-lares ocupa significativo espaço. Nas classes sociais mais desfavorecidas é resultado do baixo nível educacional, de uma lamentável tradição cultural, do desemprego, drogadição e alcoolismo e mesmo nas classes economicamente superiores, relaciona-se à maioria destes mesmos fatores. Todavia, sem dúvida que ao longo da história, tanto no aspecto legal, quanto no operacional, o Direito pouco fez para transformar esta realidade cultural, de modo que também a impunidade se erige como um dos fatores criminógenos da violência familiar.
Que fazer então para transformar uma realidade cultural secular de violência contra a mulher? Optou o legislador pelo uso da lei, com seu reconhecido poder contrafático, apostando em que o Direito, longe de ser um consectário dos costumes de uma sociedade, pode ser um instrumento de transformação da realidade prenhe de desigualdades e injustiças. O Direito pode e deve transformar realidades iníquas, mas para tanto, é preciso reconhecer que a norma legal não tem existência autônoma em face da realidade, sua essência é sua vigência, ou seja, o "telos" da norma é concretizar a situação por ela regulada. Para além de uma função conservadora, própria das sociedades antigas e imutáveis, o caráter plenamente dinâmico da civilização contemporânea, impõe admitir-se plenamente este poder metamórfico do Direito,
Concebendo-se a norma não apenas como uma forma vazada em palavras solenes, mas como um texto que anseia por tornar-se substância, por ser eficaz, resulta impossível separar a norma e a realidade histórica em que se encontra contextualizada, pois é esta realidade o solo mesmo do vigor normativo ou do seu definhamento. Essa pretensão de eficácia da norma jurídica, para atingir sua meta, deve, portanto, levar em conta as condições técnicas, naturais, econômicas e sociais de uma realidade, bem como o substrato espiritual de cada sociedade, traduzido nas concepções sociais concretas e no arcabouço axiológico que permeia a comunidade. Não se trata de a norma submeter-se a esta realidade, aviltando-se à condição de seu mero reflexo, pois a pretensão de eficácia é um apanágio autônomo da norma constitucional [e de qualquer norma legal] pelo qual esta procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. [1]
Parte-se, destarte, do reconhecimento sociológico de que não há, substancialmente, uma igualdade entre homens e mulheres. Tal isonomia em terra brasilis ainda é apenas formal, circunscrita que está a um encomiástico princípio constitucional, refletido múltiplas vezes na legislação ordinária, todavia não se transferiu da solenidade dos textos constitucionais para a praxis cotidiana.
Esta igualdade de gêneros se constitui, sem sombra de dúvidas, em um direito humano basilar cuja ausência é consectário da mutilação ou inocuidade de vários outros direitos humanos dele decorrentes. O valor histórico da igualdade, como consabido, se enquadra dentre os direitos humanos de segunda geração, relativos que são a uma importante conquista pós-iluminista. Todavia, a inserção da igualdade no quadro dos direitos humanos carreou alterações à própria concepção precedente de liberdade que caracterizava os direitos de primeira dimensão. A liberdade, depois da aceitação da igualdade material como uma pretensão social legítima, já não era uma liberdade de poucos, mas uma liberdade disseminada que só se faria sentir e vivenciar completamente a partir da igualdade real. No horizonte da segunda dimensão dos direitos humanos, a liberdade não é uma liberdade burguesa individualista, mas uma liberdade adjetivada pela isonomia material, que ampliava os horizontes de realização pessoal, derrubando obstáculos situados no preconceito e na discriminação.
É neste panorama que o Estado Democrático de Direito deve perseguir obstinadamente a homogeneidade social, sem a qual nenhuma liberdade será efetiva, posto que remanescerão "buracos negros" de opressão, servilismo, discriminação que, como se sabe, são antagonistas da liberdade. Forçoso, então abandonar uma atitude hipócrita e admitir a desigualdade real como pressuposto para a sua desconstrução [2].
Parte, pois, o legislador hodierno da evidente constatação de que, em nossa sociedade, a mulher ainda é, reiteradamente, oprimida, especialmente pelo homem, e que tal opressão é particularmente mais grave porque ocorre principalmente no ambiente doméstico e familiar, sendo, por isso mesmo, a gênese de outras desigualdades. E enquanto persistir esta situação de violência contra a mulher, o Brasil não será uma sociedade nem livre, nem igualitária e nem fraterna e, conseqüentemente, não se caracterizará como um Estado Democrático de Direito.
Tem-se, pois, que a Lei 11.340/06 objetiva erradicar ou, ao menos, minimizar a violência doméstica e familiar contra a mulher, violência que, na acepção do art. 7º da referida lei, abrange formas outras que a vis corporalis. Ademais, o legislador pretende sejam utilizados diversos instrumentos legais para dar combate à violência contra a mulher, sendo o direito penal apenas um deles. Depreende-se disso que este diploma legal não se constitui em lei penal, mas uma lei com repercussão nas esferas administrativa, civil, penal e, inclusive, trabalhista. Elogiável a previsão da defesa judicial de direitos coletivos e difusos provenientes da referida lei contida no art. 37, legitimando-se, para tanto, o Ministério Público ou associação cujas finalidades guardem pertinência com o tema da violência doméstica e, nesse ponto, permitiu inclusive a dispensa da pré-constituição ânua, quando se verificar a inexistência de outras associações ou entidades para representar os interesses transindividuais albergados na nova lei, que estão elencados no art. 3º da Lei Maria da Penha [3].
É verdade que, como normalmente ocorre, e neste ponto, contrariando infelizmente justos postulados do minimalismo, será o direito penal o ramo jurídico mais convocado a dar sua contribuição no enforcement destinado à implementação dos objetivos da novel legislação, visto que sua maior força coativa, seus custos orçamentários mais baixos do que as políticas públicas e sua menor dependência ideológica, habilitam-no a um papel sempre mais imediatista na concretização dos objetivos legais.
Todavia, é lamentável admitir que a falta de precisão técnica do legislador ao elaborar a lei que ora se introduz no ordenamento jurídico, em muito solapará seus elogiáveis objetivos. Este artigo dará foco prioritário aos aspectos criminais da nova legislação, confrontando-o com a Lei 9.099/95, o Código Penal e o de Processo Penal, revelando alguns pontos de estrangulamento sistêmico que serão submetidos à árdua tarefa hermenêutica da doutrina e da jurisprudência. Pretende-se, ainda, desvelar o efeito predominante simbólico da nova lei, tanto que anunciada em meio a grande estardalhaço, sendo ingênuo acreditar inexistirem objetivos eleitorais em sua precipitada promulgação [4].
O conceito de violência doméstica e familiar adotado pela Lei Maria da Penha é tão amplo que contempla não apenas a clássica vis corporalis, como também as formas de vis compulsiva. É preciso convir, todavia, que ao especializar tipos penais preexistentes com a característica complementar da violência doméstica ou familiar, o legislador quase exclusivamente atinge os delitos de menor e médio potencial ofensivo sujeitos à Lei 9.099/95, como se verá na seqüência deste artigo. Em relação a crimes de maior potencial ofensivo ou hediondos as alterações operadas são menores, reduzindo-se à incidência de uma agravante genérica (art. 43) e à possibilidade, agora prevista em lei, de medidas protetivas a serem determinadas pelo Juiz Criminal (arts. 22 a 24), mediante pedido da ofendida, instrumentado pela polícia, ou requerimento do Ministério Público.
1. Dos aspectos criminais materiais da nova Lei.
A Lei 11.340/06 não cria novos tipos penais, mas traz em si dispositivos complementares de tipos pré-estabelecidos, com caráter especializante, em referência aos quais exclui benefícios despenalizadores (art. 41), altera penas (art. 44), estabelece nova majorante (art. 44) e agravante (art. 43), engendra novas possibilidades de prisão preventiva (arts. 20 e 42), etc. A partir de sua vigência, haverá, por exemplo, versões especiais de lesões corporais leves praticadas em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher, do mesmo modo, ameaças, constrangimento ilegal, crime de periclitação da vida e da saúde, exercício arbitrário das próprias razões, dano, crimes contra a honra, todos em situações específicas que, como se sabe, prevalecem sobre as formas gerais.
Os dispositivos especializantes são os dos art. 5º [5] e 7º [6] da Lei 11.340/06, que, em conceituando as diversas formas de violência doméstica, farão incidir seus efeitos sobre tipos penais genéricos do Código Penal, operando complementações particularizantes. A configuração da violência doméstica e familiar, todavia não prescinde da presença simultânea e cumulativa de qualquer dos requisitos do art. 7º em combinação com algum dos pressupostos do art. 5º da mencionada lei. Assim, somente será violência doméstica ou familiar contra a mulher aquela que constitua alguma das formas dos incisos do art. 7º, cometida em alguma das situações do art. 5º. Poder-se-ia até estabelecer o seguinte quadro sinóptico:
Formas de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 7º) |
Violência Física: é a ofensa à vida, saúde e integridade física. Trata-se da violência propriamente dita, a vis corporalis. |
Violência Psicológica: é a ameaça, o constrangimento, a humilhação pessoal. É um conceito impróprio de violência, pois tradicionalmente o que aqui se denomina violência psicológica é a grave ameaça, a vis compulsiva. |
Violência Sexual: constrangimento com o propósito de limitar a auto-determinação sexual e reprodutiva da vítima, inclusive obrigá-la à prostituição, impedi-la de usar métodos anti-conceptivos, etc. Tanto pode ocorrer mediante violência física como através da grave ameaça (violência psicológica). |
Violência Patrimonial: qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. |
Violência Moral: em linhas gerais, são os crimes contra a honra praticados contra a mulher. |
Âmbito/vínculo/relações exigidas |
Âmbito doméstico: nesse caso, privilegia-se o espaço em que se dá alguma forma de violência referida na coluna anterior, bastando que tal se consume na unidade doméstica de convívio permanente entre pessoas, ainda que esporadicamente agregadas e sem vínculo afetivo ou familiar entre si. Reforçará a proteção da norma na realidade dos grandes centros onde o convívio em sub-moradias, locais precaríssimos, será abrangido pela lei. |
Âmbito familiar: aqui já não prevalece a caráter espacial do lar ou da coabitação, mas sim o vínculo familiar decorrente do parentesco natural, por afinidade ou por vontade expressa (civil). Assim, mesmo fora do recinto doméstico, a existência de relações familiares entre agressor e vítima, já permitirá a caracterização da violência doméstica. |
Relações de afeto: nesta modalidade dispensa-se tanto a coabitação sob o mesmo teto, quanto o parentesco familiar, sendo suficiente relação íntima de afeto e convivência, presente ou pretérita. É o caso de namorados ou casais que não convivem sob o mesmo teto. |
Em análise ao quadro acima, são lícitas quaisquer combinações entre as colunas da direita e da esquerda, de modo que poderá haver violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral contra a mulher, no âmbito doméstico, familiar ou em razão de relações afetivas. Mas se qualquer dessas formas de violência contra a mulher não for praticada nesses âmbitos ou em razão de relações afetivas, já não se poderá falar em violência contra a mulher, com a característica especializante de que aqui se cuida.
Embora ao longo do texto legal, o legislador use sempre a expressão violência doméstica e familiar, é mais acertada a conclusão de que a lei pretenda diferenciar as duas hipóteses em casos de violência doméstica e de violência familiar, reservando à primeira, a situação em que as diversas formas de violência dão-se no âmbito da unidade doméstica, sem necessidade de vínculos parentais, conforme previsão do art. 5º, I, da Lei 11.340/06, enquanto as situações de violência familiar estariam notadamente relacionadas às formas de violência praticadas entre parentes ou pessoas com vínculo afetivo (art. 5º, II e III). Partindo-se dessa distinção seria mais correto dizer-se "violência doméstica ou familiar" contra a mulher.
Outro aspecto que convém salientar é que a Lei 11.340/06 refere-se exclusivamente à violência contra a mulher, estabelecendo um sujeito passivo próprio dessas formas de violência específica, mas não pré-determina nenhum sujeito ativo próprio, de modo que, não apenas o homem, mas também outra mulher pode ser sujeito ativo de violência doméstica ou familiar contra a mulher [7].
Conforme já se afirmou alhures, a nova lei não cria novos tipos penais [8], entretanto redimensiona a pena fixada para a preexistente hipótese do art. 129, § 9º, do Código Penal, que já se referia à violência doméstica, e havia sido acrescentada pela Lei 10.886/2004, a qual efetivamente criara nova qualificadora ao tipo penal relativo às lesões leves, quando praticadas contra "ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade" [9]. Agora, a Lei 11.340/06 manteve integralmente o texto da lei anterior, apenas ampliando a pena máxima para três anos e reduzindo a mínima para três meses. Ou seja, se a pena anterior para a lesão corporal praticada em situação de violência doméstica era de 06 meses a 01 ano, a partir da nova lei passará a ser de 03 meses a 03 anos. Aqui já se entrevê a primeira crítica que se pode tecer à Lei Maria da Penha, pois qual a baliza da discricionariedade punitiva mais importante para a dosimetria da pena: a mínima ou a máxima? Obviamente que a mínima, de sorte que, se aparentemente o legislador aumentou a severidade penal incidente sobre a conduta ao ampliar a pena máxima de um para três anos como vem sendo propalado, a verdade é que ele reduziu esta severidade na mesma medida em que diminuiu por metade a pena mínima de seis para três meses. Isto é particularmente verdadeiro, quando consabido que a redução do parâmetro inferior do apenamento é mais importante que o seu incremento no tocante ao marco superior, porque desde que se repete acriticamente que a dosimetria judicial da pena deve sempre partir do limite penal mínimo e que, a cada circunstância judicial desfavorável, o juiz só pode aumentar timidamente a pena mínima, isto se tornou uma verdade absoluta que ninguém ousa jamais invectivar sob pena de ser excluído da comunidade dos conhecedores do Direito.
Assim, seria muito mais eficaz do ponto de vista de um incremento da efetividade punitiva da norma, aumentar em alguns meses o marco inferior da pretensão punitiva do que incrementá-la em anos no balizamento superior. É verdade que, ao fixar em três anos o limite superior das lesões leves praticadas em situação de violência doméstica, o legislador excluiu esta modalidade típica da categoria dos delitos de pequenos potencial ofensivo e, portanto, afastou a aplicação das medidas ditas despenalizadoras da Lei 9.099/95. Tal opção, como se verá, veio na contramão das tendências mais modernas do Direito Penal e não se pode afirmar que irá traduzir-se em maior severidade ou eficácia punitiva.
Vale frisar outro aspecto curioso da Lei 11.340/06: a contradição endógena entre seus dispositivos iniciais, que, a toda evidência, configuram como sujeito passivo da proteção legal, exclusivamente, a mulher, enquanto o § 9º do art. 129 do Código Penal, recepcionado expressamente, no art. 44 da nova Lei, não faz distinção entre homens e mulheres. Assim, para efeitos deste dispositivo legal importa a violência praticada no ambiente doméstico contra homens e mulheres, adultos e crianças. Futuramente, este paradoxo poderá levantar a tese de que, como os objetivos da nova lei são exclusivamente a proteção da mulher, o dispositivo do § 9º, ora em comento, deve ser restrito ao sujeito passivo feminino. Não é, todavia, esta a solução correta, primeiro, porque ela contradiz o texto expresso da lei e, destarte, refoge a uma interpretação literal do dispositivo, sempre recomendada em termos de tipicidade penal. Em segundo lugar, a Lei 11.340/06 é espécie da qual a anterior Lei 10.886/04 era gênero, pois enquanto aquela se refere especificamente à violência contra a mulher, instrumentalizando diversos meios para sua dissuasão, esta se refere a outros tipos de violência doméstica cujo combate é também socialmente relevante como a violência contra criança e idosos, e, como tal, subsiste íntegra em face do princípio da proibição de retrocesso social. Forçoso concluir, entretanto, que sempre que a forma qualificada de lesões leves do art. 129, § 9º, do CP for praticada em situação específica de violência contra a mulher, então as demais restrições da Lei 11.340/06 se farão incidentes, como se explicará melhor na seqüência desta análise.
Com efeito, embora não crie novos tipos penais, a Lei 11.340/06, certamente opera como complemento de tipos penais precedentes, sendo conveniente uma reflexão acerca dos limites desta influência, isto porque ao se configurar qualquer crime como praticado em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher nos termos da lei em questão, uma conseqüência importante se sobressai: a não aplicação da Lei 9.099/95.
Trata-se de uma opção do legislador que, aparentemente, caracteriza-se como desprestígio à Lei 9.099/95 e aos Juizados Especiais Criminais, instalados que foram na esperança de agilização e facilitação do acesso à justiça e agora tidos como insuficientes à repressão dos delitos praticados em situação de violência contra a mulher. Esta solução merece crítica, pois o fato de os juizados colimarem o consenso e aplicarem normalmente penas alternativas não significa serem eles tribunais tolerantes ou ineptos, bastaria estabelecer regras a serem aplicadas em seu âmbito, impondo, por exemplo, determinadas penas mais severas em caso de violência doméstica e se alcançaria suficiente aumento da severidade sem o risco de desmontar um sistema recém criado cujo aperfeiçoamento pleno ainda sequer havia sido alcançado, prenunciando agora outras novidades, como os juizados especiais de violência doméstica e familiar contra a mulher, cuja instalação somente se afigura viável em grandes centros, onde a demanda justifique tais unidades judiciárias especializadas.
1.1 O afastamento (total ou parcial?) da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica ou familiar contra a mulher.
Contudo, apesar das críticas, fato concreto é que o legislador afastou a Lei 9.099/95 no caso de violência doméstica contra a mulher, conforme dicção expressa do art. 41 da Lei 11.340/06 [10], donde se concluir que, nas demais hipóteses de violência doméstica (contra crianças e idosos, especialmente, os do sexo masculino), previstas no § 9º do art. 129 do Código Penal, a referida Lei 9.099/95, segue, em parte, incidente. Diz-se "em parte", porque, a transação penal está afastada de qualquer modo neste tipo de lesão leve com violência doméstica ou familiar, como corolário da ampliação do teto penal para três anos o que descaracteriza a infração penal como de menor potencial ofensivo, todavia, resta ainda possível a exigência de representação, conciliação civil e a possibilidade de suspensão condicional do processo, que seguem incidentes nos restantes casos em que a violência doméstica não é específica contra a mulher, pois seus pressupostos são outros que não o limite superior da pena em dois anos. Assume-se aqui esta conclusão, pois, na medida em que o afastamento da Lei 9.099/95 foi determinado apenas quanto aos crimes praticados com violência doméstica ou familiar contra a mulher, as demais formas de violência persistem sujeitas às regras anteriores. Deste modo, no caso de lesões corporais leves contra outros sujeitos passivos, ainda que praticadas nas hipóteses de violência doméstica do art. 129, § 9º, do CP, continua a exigência de representação do art. 88 da Lei 9.099/95 e, como corolário lógico, a possibilidade de conciliação precedente à decisão sobre representar ou não. Da mesma forma, segue possível, em tais casos, a suspensão condicional do processo do art. 89 da referida Lei, pois pressupõe que pena mínima não seja superior a um ano, nada referindo em relação ao limite máximo.
Problemático será o caso do art. 129, § 9º, do CP em casos de violência específica contra a mulher, em relação ao qual o legislador aparentemente afastou in totum a aplicação da Lei 9.099/95 e, como em seu bojo encontra-se a exigibilidade de representação nos crimes de lesões corporais leves (art. 88 da Lei 9.099/95) parece certo que também estará afastada esta condição de procedibilidade para tal forma delitiva. O assunto, contudo, não será pacífico e dará margem a alguma controvérsia doutrinária e jurisprudencial. Pede-se vênia, destarte, para alinhavar alguns dos argumentos que poderão ser invocados para ambas as correntes de entendimento.
1.1.1 A dispensa da representação na hipótese do art. 129, § 9º, do CP contra a mulher.
Tal entendimento lastreia-se em uma interpretação literal e um tanto isolada do art. 41 da Lei 11.340/06, mas tem supedâneos extra-penais convincentes.
O primeiro deles está em afirmar que o legislador quis afastar dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher as medidas despenalizadoras da Lei dos Juizados Especiais Criminais, tidas como insuficientes para o enfrentamento da criminalidade doméstica, eleita como uma das mais nefandas. Partindo-se desse pressuposto, é preciso convir que, embora a Lei 9.099/95 seja uma lei específica sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, em cujo âmbito estão previstas medidas despenalizadoras como a transação penal e a suspensão condicional do processo, a verdade é que a exigência de representação também é uma medida despenalizadora clássica, compartilhando deste modo da mesma natureza que as demais ali estabelecidas, na medida em que constitui obstáculo evidente ao direito de punir estatal [11]. E quando estabelecida essa exigência pela Lei 9.099/95 houve quem se preocupasse com seu efeito despenalizador especialmente no âmbito das relações domésticas, onde a pressão pela renúncia ou desistência da representação se faria mais evidente [12].
Frise-se, por oportuno, nem se poder afirmar que a exigência de representação em crimes de lesões corporais seja da tradição do nosso direito. Ao contrário, tal condição de procedibilidade só foi incluída no sistema jurídico pela Lei 9.099/95. Antes disso, a manifestação da vítima no sentido de que não tinha interesse em que prosseguisse o feito, uma vez que o casal havia se reconciliado, que o fato foi isolado, que o agressor havia feito tratamento contra o alcoolismo, podia ser relevada para os efeitos de arquivar-se o IP ou absolver-se o acusado, invocando-se razões de "boa política criminal" ou ausência de justa causa, fundamentos de ordem pragmática que bem podem significar burla ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. Em 1995, talvez para fazer respeitar este princípio e, simultaneamente, contribuir para a desburocratização do sistema, esta praxis acabou sendo legitimada pelo legislador na regra do art. 88 da Lei 9.099/95, que transforma o crime de lesões corporais em delito de ação penal pública condicionada. É possível que agora o legislador tenha reavaliado esta questão, concluindo que não foi de boa política criminal deixar-se ao alvedrio de fragilizadas vítimas, a possibilidade de representar ou não em delito que causa tantos prejuízos à coletividade, pois, na base da violência doméstica estão todas as outras formas de violência. Seria simples acolhimento do aforismo iluminista de que "na luta do fraco contra o forte, a lei liberta e a liberdade escraviza".
1.1.2 Continua exigível a representação da vítima nos casos do art. 129, § 9º, do CP contra a mulher.
Esta outra possibilidade hermenêutica procura justificar-se sobre uma interpretação sistemática e teleológica da nova Lei, colimando harmonizar a regra geral do art. 41 da Lei 11.340/06, que determina o afastamento da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, com as normas específicas do art. 12, I, da mesma lei, em cujo texto consta que, lavrado o boletim de ocorrência, a autoridade policial deverá "ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada". Também no art. 16 estabelece que "nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta lei, só será admitida renúncia à representação perante o Juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público". Por fim, o art. 17 da Lei Maria da Penha também contribui com a tese ora apresentada ao assentar ser "vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa".
Assim é que, em uma interpretação sistemática dos dispositivos da Lei 11.340/06, antes citados, poder-se-ia concluir que o afastamento da Lei 9.099/95 é determinação genérica, relativa, precipuamente, aos institutos despenalizadores alheios à autonomia volitiva da vítima – a transação e a suspensão condicional do processo – ordinariamente vistos como institutos essencialmente despenalizadores e, como reiteradamente aplicados de forma benevolente, granjearam a má fama de serem benefícios causadores da impunidade. Entretanto, a representação continua exigível nos crimes de lesões corporais mesmo ante a qualificadora do § 9º do art. 129 do CP, visto que, apesar de ser também uma medida despenalizadora, ela concorre em favor da vítima, outorgando-lhe o poder de decidir acerca da instauração do processo contra o acusado [13]. E o legislador cercou esta decisão de garantias como a exigência de que a desistência ocorra em presença do juiz e seja ouvido o Ministério Público.
Ademais, o direito de decidir sobre representar ou não pressupõe a possibilidade de conciliação civil, o que, seguramente, atende a interesses da vítima, nem sempre sediados na exclusiva punição criminal do seu agressor, mas, fundamentalmente atrelados ao interesse reparatório dos danos sofridos, inclusive aqueles de caráter moral que, segundo afirma a doutrina da responsabilidade civil extramaterial, têm evidente caráter punitivo e pode importar em severa punição ao agressor.
Outrossim, o art. 17 da nova Lei manifesta a preocupação do legislador com punições insuficientes nos crimes em questão. Ao proibir a aplicação de "cestas básicas" e outras de prestação pecuniária ou multa isolada, o legislador está se dirigindo tanto ao Ministério Público, nas hipóteses em que ainda seja possível a transação penal ou suspensão condicional do processo e que, ab initio, parece ser apenas o caso de algumas contravenções penais (vias de fato e importunação ofensiva ao pudor) como também e principalmente ao Poder Judiciário, limitando as hipóteses de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos (art. 44 do CP). Todavia, poder-se-ia argüir que a redação desse dispositivo em consonância com o anterior revela que a intenção fundamental do legislador não era afastar a exigibilidade de representação e sim evitar, doravante, a aplicação de penas pecuniárias em caso de delitos praticados com violência contra a mulher.
1.1.3 A posição aqui adotada: persiste a exigência de representação nos crimes do art. 129, § 9º, do CP contra a mulher.
O entendimento ora adotado está sujeito ao amplo debate que novos aportes argumentativos possam desencadear, todavia, em princípio, ao menos, parece mais lógico deduzir que o legislador realmente não pretenda, com a redação do art. 41 da Lei 11.340/06, tornar o delito de lesões leves (mesmo quando presente a qualificadora do § 9º) novamente um crime de ação penal pública incondicionada, pois tal conclusão melhor harmoniza a nova lei, tanto internamente, conciliando seus próprios dispositivos que parecem privilegiar a representação da vítima, quanto externamente, conectando as novas regras com todo o sistema jurídico penal preexistente. Ademais, assim se atende de modo mais proveitoso aos seus próprios objetivos de prevenção da violência contra a mulher, como se verá na seqüência.
De início, convém abrir parênteses para analisar a história da vítima no processo penal [14]. Na aurora do Direito Penal, a vítima viveu uma "idade do ouro", pois era a grande protagonista do papel punitivo a ela outorgado quase exclusivamente. Assim, Homero, na Odisséia, registrara que Ulisses, ao retornar de longo afastamento em razão da guerra de Tróia, matou todos os pretendentes de Penélope e por tal crime enfrentou a ira dos parentes dos jovens falecidos, sendo forçado ao exílio para evitar a própria morte. Já no advento do Estado moderno, paradoxalmente, a vítima é relegada ao abandono da Justiça Criminal, tratada apenas com compaixão, demagogia ou filantropia e, deste modo, de sujeito passivo do crime foi neutralizada à condição de objeto.
É visível que o Direito Penal e a Criminologia intensificam seu foco de interesse na figura do infrator, em relação ao qual há todo um sistema de garantias, que pode ser facilmente vislumbrado em diversos incisos do art. 5º da Constituição, já com relação à vítima, em todo o texto constitucional, há apenas a tímida previsão de lei para dispor acerca das hipóteses em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da reparação civil a cargo do agressor (art. 245 da Constituição Federal). Os escassos investimentos públicos em construção de presídios, programas de ressocialização, etc, beneficiam sempre mais o infrator, deixando a vítima relegada a um total desamparo pelo sistema penal, sob o pretexto de que pode buscar sua reparação na Justiça Civil.
O objetivo inicial deste distanciamento entre sujeito ativo e passivo era facilitar a aplicação da lei penal de modo sereno e desapaixonado, o que seria dificultado pela presença emocional da vítima na cena sancionatória, cuja participação tenderia a transformar o julgamento em um momento de represália ou vingança. Assim, optou-se por caracterizar o crime como conduta geradora de dano ou perigo de dano a bens jurídicos ideais, e, como corolário, a vítima real foi sendo neutralizada no Direito Penal, tornando-se um objeto abstrato, anônimo e despersonalizado; quando muito se lhe reserva o papel de testemunha e, ainda, para mais aviltá-la, sob a alegação de que tem interesse pessoal em que se puna seu algoz, costuma-se diminuir o crédito de seu testemunho.
É dentro dessa realidade de neutralização, que a vítima sofre duas vitimizações: a primária decorrente do próprio crime, e a secundária, resultante do modo como é maltratada pelo sistema legal, cujo formalismo, criptolinguagem, burocracia e até mesmo aviltamento por descrédito, tornam-na mais um objeto do que um legítimo sujeito de direitos. Esta nefasta realidade distancia em muito a meta de trazer a vítima para dentro do sistema, ressocializando-a e reparando o dano sofrido, de forma mais pronta e solidária.
Ademais, nem se pode afirmar que o Direito Penal não possa existir sem a pena. Notadamente, quando se trata da pena de prisão, geralmente considerada ineficaz para a ressocialização (prevenção especial), sua aplicação deve ser reservada apenas para os casos extremamente necessários, quando imperam razões retributivas, de prevenção geral, ou mesmo de garantismo social. Como se sabe a realidade atroz de nossas prisões não recomenda, modo algum, lançar-se mão, largamente, da privação da liberdade, antes convém evitá-la sempre que possível, dando ensejo a outras sanções menos drásticas, tais as penas alternativas relacionadas expressamente no art. 43 do CP.
Outrossim, há uma forte tendência da moderna Criminologia e Direito Penal em facilitar a reparação do dano ao ofendido. Esta tendência está conforme com o princípio da intervenção penal mínima e subsidiária e não retira o papel do Direito Penal de controlador da vida social. Ao contrário, a simples ameaça de processo penal, com conseqüências bem mais rigorosas, coage o infrator ao atendimento expedito das exigências reparatórias do ofendido.
Assim, é que o Direito Penal moderno, notadamente a partir da 2ª Guerra Mundial, "redescobriu" a vítima, carreando-a para o seio do sistema, e alçando-a à elevada função de protagonista do próprio processo penal, na medida em que pode já ali perseguir a reparação do dano, sem necessidade de lançar mão de processo próprio na Justiça Civil. Não se trata de um retorno aos tempos da vingança privada, posto que o poder da vítima é controlado pelo Juiz e pelo Ministério Público e obstaculizado pelo direito de defesa do autor do fato, limitando-se, normalmente, à reparação do dano, mas, sem dúvida, representa um especial avanço frente aos institutos tradicionais da persecutio criminis. Tal protagonismo da vítima ganha mais realce nas pequenas e médias infrações, nas quais pode o Estado, mais justificadamente, abrir mão de parte de seu poder decisório e punitivo em favor de quem foi vitimado diretamente pelo delito. Em tais formas delitivas mais brandas, o interesse privado da vítima prevalece sobre o interesse público do Estado em exercer seu jus puniendi. Estas infrações menores, na lição de Luiz Flávio Gomes:
... fazem parte do âmbito de ‘consenso’, o que significa dizer que autorizam uma solução conciliatória para o conflito, bem diferente da tradicional, que exigia sempre inquérito policial, denúncia (obrigatória), processo, provas, contraditório, sentença, etc. Foi fundamental para esse giro político-criminal estrondoso, o reconhecimento da insuficiência (ou mesmo falência) do sistema penal clássico (assim como do modelo penal clássico de Justiça Criminal), que não reúne condições para fazer frente, com sua atual estrutura e organização, a todas as infrações. Acabou a crença no full enforcement. [15]
Destarte, embora pareça irrecusável que, em muitos casos, a mulher vítima de violência doméstica sofrerá pressão para desistir da representação oferecida e que, dependendo de sua condição econômica ou social esta pressão poderá exercer acentuada influência em sua decisão, não é menos certo asseverar que a Lei 11.340/06 também visa minimizar ou eliminar por completo esta constelação de fatores perversos que lhe diminuem a liberdade de escolha, criando condições propícias para uma decisão mais livre por parte da vítima, e o faz ao estabelecer importantes medidas protetivas que obrigam o agressor (arts. 22 e 23) e que beneficiam diretamente a ofendida (art. 24), além das garantias de transferência no serviço público e manutenção do vínculo empregatício (art. 9º, § 2º, I e II).
Ademais, sem sombra de dúvidas, se a exigência de representação é de fato uma medida despenalizadora, não menos certo é que deixar esta decisão no poder da vítima, que pode então utilizá-la como instrumento de barganha para uma justa reparação de danos civis, atende a dois objetivos: punir o sujeito ativo e beneficiar direta e imediatamente a própria vítima. Com efeito, é importante lembrar que o poder de representar pressupõe o de conciliar, de sorte que, mantida a representação, mantém-se também a conciliação e, nesse caso, o poder de barganha da vitima é fortalecido pela inexistência de outras medidas despenalizadoras posteriores, ou seja, ou o agressor aceita as condições do acordo proposto pela vítima, ou terá de submeter-se de vez ao processo criminal, sem direito à transação ou suspensão condicional do processo que lhe poderiam ser mais benéficas que a própria compensação dos danos civis. Deste modo, somente com excluir outros benefícios despenalizadores, o legislador incrementou a severidade legal em crimes de menor ou médio potencial ofensivo praticados contra a mulher, ainda que mantendo a exigência de representação.
É certo que a indenização não se constitui propriamente em uma sanção penal, tanto que a obrigação de reparar o dano, conseqüente à sentença penal condenatória, é efeito extrapenal da condenação (art. 91, I, do CP). Todavia, é certo que a agilidade com que se pode alcançar o ressarcimento, já antes da lide penal, constitui-se em benefício direto à vítima. Ademais, podendo a vítima estipular danos morais, dentro de critérios de razoabilidade, estes assumem uma função punitiva, visto ser este um de seus principais fundamentos: lenir a dor provocada pelo ato ilícito, mediante o pagamento de parcela pecuniária suplementar aos danos materiais.
Cumpre salientar, ainda, que conceder à vítima a possibilidade de decidir acerca de condição de procedibilidade do processo penal, arma-a de poderoso instrumento de persuasão contra aqueles agressores que ocultam patrimônio capaz de garantir dívidas. A pressão decorrente da ameaça de ação penal é mais eficaz que o mero risco de constrição patrimonial no seio do processo de execução Mas este poder da vítima, também não será absoluto, cumprindo ao Ministério Público, quando da opinio delicti, coibir eventuais abusos, desclassificando infrações penais ou postulando o arquivamento quando inexistentes as condições da ação penal.
Assim, em se conservando a exigência de representação e, conseqüentemente, a oportunidade de conciliação, esta inclusive com possibilidade de reparação dos danos, não se está neutralizando a vítima no processo penal, ao contrário, é ela valorizada e soerguida à condição de protagonista relevante, que pode beneficiar-se direta e imediatamente da possibilidade de decidir acerca do prosseguimento da ação penal.
Por tais razões, tem-se que a exigência de representação nos casos do art. 129, § 9º, do CP contra a mulher deve ser mantida, pois tal conclusão atende a uma interpretação sistemática da nova lei, harmonizando-a com o sistema e corresponde melhor ao telos da norma legal, pois, teleologicamente, a Lei Maria da Penha pretende reforçar o protagonismo da vítima mulher na punição do seu agressor.
Será necessário, entretanto, a utilização de algum mecanismo que garanta, através da ameaça do próprio processo penal, o cumprimento dos acordos de reparação de dano nesses crimes praticados com violência doméstica contra a mulher. O atual mecanismo explicitado no art 74 e seu parágrafo único da Lei 9.099/95, que prevê a mera constituição de título executivo judicial, através da homologação judicial do acordo, pressupondo, desde logo, a renúncia à representação, é insuficiente para as exigências protetivas da Lei 11.340/06. Uma sugestão seria tratar o assunto tal qual já vem ocorrendo em relação às transações penais, ou seja, levada a termo a conciliação, o procedimento (posto que ainda não há processo penal) ficaria suspenso até o seu adimplemento, e só aí o juiz o homologaria, extinguindo a punibilidade pela decadência. A extinção da punibilidade, imediata à realização do acordo, deixaria a ofendida à mercê da vontade do sujeito ativo, pois, máxime quando se tratasse de valores pequenos, não lhe sobraria suficiente motivação para demandar processo executivo.
1.3 A possibilidade de representação em outras infrações penais de menor potencial ofensivo.
Além das hipóteses do art. 129, § 9º, do CP contra a mulher, a regra do art. 16 da Lei 11.340/06 estará em vigor para outros crimes que deverão sofrer conseqüências oriundas do impacto da nova lei sobre o precedente ordenamento penal. É o caso do delito de ameaça em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, cuja pena não é alterada, mas que, agora se transfere da competência dos Juizados Especiais Criminais (JECRIM) para os juizados comuns, muito embora persista a exigência de representação, posto que sediada em parágrafo único do art. 147 do CP, afastados, porém, todos os institutos despenalizadores da Lei 9.099/95.
É conveniente assinalar, porém, que, mantida a representação no crime de ameaça, é corolário lógico que a conciliação permanece possível, mesmo afastada a incidência da Lei 9.099/95, pois conciliação e representação são institutos inter-relacionados, ou seja, a decisão sobre representar ou não sempre pode estar condicionada a algum tipo de conciliação, ainda que esta envolva a reparação de danos civis. Assim, uma vez que a nova lei previu a necessidade de uma autêntica audiência preliminar no Juízo Criminal como único momento em que possível renunciar à representação, nesta solenidade se oportunizará a possibilidade de acordo entre as partes, vedada apenas a transação, caso inexitosa a conciliação.
Ademais, instaurado o processo pelas ameaças, este prima facie não ficará sujeito ao sursis processual, o que é um retrocesso, visto que a suspensão condicional do processo, longe de fomentar a impunidade, é uma antecipação da pena final, com propósitos de agilização e desburocratização da justiça. O tema é, contudo, polêmico, e, a princípio, parece prevalecer como mais lógica a afirmação de que a suspensão condicional do processo está inviabilizada em qualquer crime praticado em situação de violência contra a mulher em face da regra do art. 41 da Lei 11.340/06. Na prática, é certo que esta regra será mal recebida no âmbito do Poder Judiciário, pois a suspensão condicional do processo é um instituto que aliviou o sistema do excesso de processos nas varas criminais. Além disso, tem ele caráter sancionatório, significando uma antecipação pragmática da suspensão condicional da pena. O que competia, com mais acerto ao legislador, era impor condições mais severas na suspensão condicional do processo, como a obrigação de prestar serviços à comunidade no primeiro ano da suspensão, a obrigação de comprovar o pagamento de pensão alimentícia durante a suspensão, de se afastar da casa da vítima e, inclusive, a proibição de ser beneficiado novamente com esta medida despenalizadora no prazo de cinco anos. Se tais soluções vierem a ser adotadas no cotidiano dos foros, talvez seja possível salvar, em primeiro grau, o instituto da suspensão condicional do processo da ameaça extintiva que a nova lei lhe lança em face.
Outro impacto interessante da nova lei será que, em todos os delitos antes sujeitos à apuração policial por termo circunstanciado, agora, afastada a incidência da Lei 9.099/95, tal apuração deverá dar-se pela via tradicional do inquérito. Sem dúvida esta mudança será impactante sobre a atividade da Polícia Judiciária, já acostumada, há mais de dez anos ao sumário termo circunstanciado. Deste modo, a escolha legislativa, longe de alentar a punição de pequenos crimes contra a mulher, acabará por estimular sua impunidade, pois nem a Polícia, nem a Justiça dispõem de meios para instaurar tantos inquéritos e processos. Com efeito, quem não lembra que, antes de entrar em vigor a Lei 9.099/95 era bem menor o número de inquéritos por ameaça do que por lesões corporais? Corretamente, incapaz de concluir cem por cento dos registros, a Polícia estabelecia como prioritária a apuração do delito mais grave de lesões corporais. Então, com a vigência da Lei 9.099/95 e a simplificação dos procedimentos, as ameaças assumiram estatisticamente o primeiro lugar, deixando para trás as lesões corporais. Agora, certamente, este delito menor voltará a integrar a cifra oculta da criminalidade, ante a impossibilidade virtual e, possivelmente óbvia, de, em face da reburocratização da persecutio criminis, judicializá-lo plenamente.
Assim, é que a opção legislativa da Lei 11.340/06 de afastar in totum a aplicação da Lei dos Juizados Especiais não parece correta frente aos seus declarados objetivos, pois, enquanto aplicável, esta lei favorecia a repressão destes delitos de menor potencial ofensivo contra a mulher, mediante instrumentos e princípios simplificadores da persecutio criminis, que facilitavam o acesso à justiça de demandas neles baseadas. Agora, retomados os instrumentos tradicionais mais burocráticos do inquérito e do processo criminal comum, as deficiências institucionais, defluentes das carências estruturais do Sistema de Justiça, levarão fatalmente a uma diminuição da ação punitiva em tais casos.
Outra importante forma delitiva que costuma apresentar-se nos Juizados Especiais Criminais é a contravenção penal de vias de fato, que, em face da nova legislação, mesmo quando praticada contra mulher em situação de violência doméstica ou familiar permanece sujeita a todo o regramento da Lei 9.099/95, isto porque, o art. 41 da Lei 11.340/06, afasta a aplicação dos institutos da Lei 9.099/95 apenas aos crimes praticados contra a mulher, nada referindo com relação às contravenções e não se poderia estender a vedação ao delito anão sem que com isso se laborasse em interdita analogia in malam partem. Isto é simples de resolver; complexo, contudo, é se saber como ficará a questão da representação em contravenções de vias de fato, uma vez que esta condição vinha sendo imposta como decorrência da analogia in bonam partem com o delito de lesões leves. Sustentando-se aqui que a exigência de representação nos delitos de lesões leves deverá ser mantido, é consectário lógico que, quanto a vias de fato, o mesmo ocorrerá. De qualquer forma, mesmo frente a entendimento contrário, serio possível evitar a ação penal sempre que a vítima assim expressamente o postulasse, com argumentos de ordem principiológica, como, por exemplo, a inarredável conclusão de que a inserção da Lei 9.099/95 no ordenamento jurídico mitigou o princípio da obrigatoriedade da ação penal, permitindo ao dominus litis avaliações de conveniência e oportunidade, de modo que, havendo afirmação textual da vítima no sentido de não ter interesse no prosseguimento do feito, tratando-se de mera contravenção penal, é razoável arquivar-se o termo circunstanciado por razões de política criminal e ausência de justa causa para a ação penal.
Insta, outrossim, frisar o impacto da nova lei no tocante aos crimes de ação penal privada, quando praticados em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher. Será o caso, exemplificativamente dos crimes de dano, exercício arbitrário das próprias razões e crimes contra a honra. Com relação a eles a nova lei apenas afastou a incidência da Lei 9.099/95, persistindo, porém, a regra da ação penal privada, com o que se pode afirmar que legislador foi paradoxal, pois, novamente, a pretexto de aumentar a repressão desses delitos, acabou laborando, inadvertidamente, para sua impunidade. Com efeito, desde que entrou em vigor a Lei 9.099/95 sempre houve forte tendência a se trazer para o âmbito dos Juizados Especiais Criminais os termos circunstanciados envolvendo delitos contra a honra, antes mesmo do ajuizamento das ações privadas, oportunizando-se, nessa quadra pré-processual, a conciliação e a transação penal [16]. Era uma forma de alentar o acesso à justiça e prevenir delitos mais graves pela via célere da justiça consensual. Além disso, sempre que impossível a conciliação ou a transação, a ofendida era então instruída a procurar um advogado ou os órgãos de assistência judiciária para propor a queixa-crime. Agora, afastada a Lei 9.099/95, a vítima de crime contra a honra terá de contar com a boa vontade da polícia judiciária, já assoberbada de trabalho, para a realização de um inquérito policial a ser concluído antes do prazo decadencial e, depois, dispondo do inquérito, procurar serviço de assistência judiciária gratuita com disponibilidade para a propositura da queixa-crime em tempo hábil. Não é preciso grande esforço para concluir que a nova lei jogou esta cifra delitiva para debaixo do tapete, inviabilizando, por completo, em face da atual realidade estrutural, o acesso à justiça destas espécies típicas.