Foi sancionada pelo Presidente da República a Lei 14.132/21, de 31 de março de 2021, que acrescenta o art. 147-A ao Código Penal, para prever o crime de perseguição e revoga o art. 65 da Lei das Contravencoes Penais. O novo tipo incriminador tem como nomen iuris perseguição, que nada mais é do que o stalking e foi talhado no capítulo destinado aos crimes contra a liberdade individual:
Perseguição
Art. 147-A. Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.
Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
O termo stalking tem origem no verbo inglês tostalk (espreitar) e descreve o comportamento patológico que leva o agente a perseguir a vítima de forma extrema. O agente, denominado stalker, pratica ações tão exageradas para perseguir e manter contato com a sua vítima que esta passa a sentir medo e angústia. São exemplos de stalking os numerosos telefonemas e mensagens indesejadas a fim de molestar e amedrontar a vítima. Atualmente existe o cyberstalking que se configura na perseguição, causando danos à integridade psicológica ou à reputação, realizada por meio do correio eletrônico ou das redes sociais¹.
Discorrendo sobre o assunto, ensina Damásio de Jesus²:
“Não é raro que alguém, por amor ou desamor, por vingança ou inveja ou por outro motivo qualquer, passe a perseguir uma pessoa com habitualidade incansável. Repetidas cartas apaixonadas, e-mails, telegramas, bilhetes, mensagens na secretária eletrônica, recados por interposta pessoa ou por meio de rádio ou jornal tornam um inferno a vida da vítima, causando-lhe, no mínimo, perturbação emocional. A isso dá-se o nome de stalking”.
Cuida-se, pois, de crime habitual (há quem diga que não), isto é, configurar-se-á mediante a reiteração dos atos. Além do mais, o crime é de ação múltipla (ou de conteúdo variado). Assim, se o agente praticar mais de uma conduta (perseguir, ameaçar, perturbar etc.), no mesmo contexto fático, responderá por crime único. É crime de ação livre, visto que admite variadas formas para a prática da conduta típica.
No Brasil, até então, mencionado comportamento não era considerado crime, e, sim, (poucos se atentavam a isso), contravenção penal de perturbação de tranquilidade, consoante se infere da análise do revogado artigo 65 da Lei de Contravencoes Penais (Decreto-lei 3.688/41), verbis:
Perturbação de tranquilidade
Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável:
Pena prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa.
Ocorreu o que se chama de supressão formal do art. 65 da Lei de Contravencoes Penais. No escólio de Rogério Sanches Cunha “o princípio da continuidade normativo-típica significa a manutenção do caráter proibido da conduta, porém com o deslocamento do conteúdo criminoso para outro tipo penal. A intenção do legislador, nesse caso, é que a conduta permaneça criminosa”, finaliza o mestre.
Portanto, o crime de perseguição passa a substituir esse ato na legislação brasileira.
Forma majorada
O parágrafo 1º do artigo 147-A do Codex Penal estabelece que a pena do infrator poderá ser aumentada de metade se o crime é cometido:
I - contra criança, adolescente ou idoso;
II - contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º-A do art. 121 deste Código;
III - mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas ou com o emprego de arma.
Assim, o legislador estabeleceu um aumento (em metade) da pena quando as vítimas tratarem-se daqueles considerados vulneráveis a violência doméstica, assim como previu o aumento de pena para o concurso de agentes e uso de arma. Observem que o legislador não distingue o tipo de arma utilizada (branca ou de fogo), podendo haver, até mesmo, concurso formal entre perseguição e porte ilegal de arma de fogo (Lei 10.826/03).
Já o § 2º estabelece que as penas são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência. Em outras palavras, se algum ato de perseguição for feito com o emprego de violência (lesão corporal, por exemplo) o agente responderá pelo delito do art. 147-A em concurso com o crime contra a vida. Por intermédio desse sistema, o juiz primeiro individualiza a pena de cada um dos crimes praticados pelo agente, somando todas ao final. Por exemplo, o agente é condenado à pena máxima do crime de perseguição (2 anos) e à pena mínima de lesão corporal grave (1 ano). Ao agente é imposta a pena de 3 anos. Comparado aos sistemas da exasperação e da absorção, é o mais gravoso ao réu, frisa-se.
Os Tribunais, ante a ausência de tipificação específica, vinham considerando a prática do stalking como circunstância judicial desfavorável em outros delitos (como ameaça ou lesão corporal), conforme se extrai da decisão exarada pela 6ª turma do STJ:
“(...) As condutas do paciente, consistentes em incessante perseguição e vigília; de busca por contatos pessoais; de direcionamento de palavras depreciativas e opressivas; de limitação do direito de ir e vir; de atitudes ameaçadoras e causadoras dos mais diversos constrangimentos à vítima, aptos a causarem intensa sensação de insegurança e intranquilidade, representam o que é conhecido na psicologia como stalking, o que confirma a instabilidade dos traços emocionais e comportamentais do paciente, aptos a justificar a elevação da basal, inexistindo teratologia ou ilegalidade a ser reparada”.
Ação penal
No que tange à persecução penal, o crime é perseguido mediante ação penal pública condicionada à representação (art. 147-A, § 3º, CP). Aqui, convém rememorar que a representação deve ser oferecida perante a autoridade policial, o Ministério Público ou o juiz, pelo ofendido ou por procurador com poderes especiais.
Benefícios despenalizadores
O recém-chegado tipo incriminador, na sua forma simples (caput, art. 147-A, CP), prevê uma pena muito baixa o que o classifica – doutrinariamente - como crime de menor potencial ofensivo.
Nesse rumo, o procedimento especial estabelecido pela Lei 9.099/95 prevê que não se imporá prisão em flagrante ao autor do fato que for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer. Partindo-se de tal premissa, o agente detido por haver praticado uma infração de menor potencial ofensivo não será autuado em flagrante, desde que assine – frisa-se - o termo de compromisso previsto no artigo 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95. De outro vórtice, imaginar-se-ia admissível, sim, a decretação de sua prisão, cabendo à autoridade policial arbitrar a fiança, nos moldes do artigo 322 do Código de Processo Penal.
Portanto, em que pese a pena cominada prevista para o delito de perseguição, é oportuno frisar, ad argumentandum, que não é ilógica (àqueles que entendem não se tratar de delito habitual) a possibilidade de prisão daqueles que vierem a ser imputado o novo crime.
Consequentemente, torna-se fácil perceber que não se trata de garantismo penal positivo, mas tão somente o que o diploma legal estabelece.
De mais a mais, conforme exposto alhures, o crime de perseguição somente se procede mediante representação da vítima. Desse modo, cabível, em tese, o instituto da transação penal, talhado no art. 76 da Lei 9.099/95, que determina que o representante do Ministério Público, na audiência preliminar, formule a referida proposta, ao autor do fato, desde que não seja hipótese de arquivamento e, sendo caso de crime de ação penal pública condicionada à representação, tenha havido a manifestação da vítima. Nessa toada, desde que preenchidos os requisitos para a formulação da proposta de transação penal (§ 2º do art. 76), nada impede o seu oferecimento pelo órgão de acusação.
Outrossim, a pena cominada ao delito admite a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), ainda que incidente a majoração da pena (§ 1º).
No que tange ao não menos polêmico acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP), ao menos três apontamentos devem ser observados aqui. O primeiro ponto a ser observado diz respeito à impossibilidade de proposta de ANPP, caso cabível a benesse da transação penal (§ 2º, I, art. 28-A, do CPP). Em segundo lugar, praticado o crime de perseguição acompanhado de violência ou grave ameaça, refreia-se a proposta de ANPP (art. 28-A do CPP, caput). E a perseguição praticada no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, obstaculiza, ainda, a proposta de ANPP (art. 28-A, § 2º, IV, CPP).
Convém ressaltar que a Lei Maria da Penha – Lei 11.340/06, aspirando à erradicação da violência doméstica e familiar contra a mulher, prevê medidas protetivas de urgência para proteger as vítimas, em casos de violência psicológica, as quais, por vezes, vêm acompanhadas de práticas caracterizadoras de perseguição.
Vale frisar, todavia, que praticada a perseguição no âmbito de violência doméstica ou familiar contra a mulher, eventual retratação da representação ficará condicionada à realização de uma audiência judicial para confirmar a voluntariedade do ato, isso porque nos termos do art. 16 da Lei Maria da Penha nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida, só será admitida a renúncia (leia-se retratação) à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.
A lei entrou em vigor na data de sua publicação - 01/04/2021 (e não é mentira!), de modo que não se aplica a fatos ocorridos antes dessa data, homenageando-se, dessa forma, o princípio da irretroatividade da lei penal maléfica – lex gravior.
1. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 1334.
2. JESUS, Damásio E. de. Stalking. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1655, 12jan.2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10846. Acesso em 03 de abril de 2021.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral (arts. 1º ao 120). 8ª ed. ver e atual. Salvador: JusPODIVM, 2020.
Tribunal Superior de Justiça. Habeas Corpus. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/463859663/agravo-em-recurso-especial-aresp-1076784-ms-2017-0074344-0/decisao-monocratica-463859682. Acesso em 03 de abril de 2021.
Decreto-Lei nº 2.848 – Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 03 de abril de 2021.
Decreto-Lei 3.689/41 – Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em 03 de abril de 2021.
Lei 14.132/21. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14132.htm. Acesso em 03 de abril de 2021.
Lei 9.099/95. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9099.htm. Acesso em 03 de abril de 2021.
Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em 03 de abril de 2021.