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Violência doméstica e familiar contra a mulher.

Lei "Maria da Penha". Alguns comentários

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03/10/2006 às 00:00
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As medidas protetivas de urgência, a prisão preventiva do agressor, o afastamento da Lei nº 9.099/95, a competência jurisdicional, dentre outros aspectos, constituem o objeto da presente abordagem.

PALAVRAS-CHAVE: Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher – Juizados Especiais Criminais – Novas Regras.

RESUMO: A Lei nº 11.340/06 pegou a comunidade jurídica de surpresa e, como tudo o que é novo, tem despertado bastante discussão, principalmente pelo afastamento dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados Especiais Criminais nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Cuida-se, sem dúvida, de uma ação afirmativa feita em boa hora em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar, tendo em vista que o modelo dos Juizados Especiais Criminais, não tanto por suas regras, mas principalmente por sua operacionalização, se mostrou ineficiente e inadequado para o enfrentamento de um problema que, lamentavelmente, ocorre diuturnamente. O objetivo deste ensaio é refletir sobre alguns dos principais institutos desta Lei, com o fito de suscitar o saudável debate acadêmico. As medidas protetivas de urgência, a prisão preventiva do agressor, o afastamento da Lei nº 9.099/95, a competência jurisdicional, dentre outros aspectos, constituem o objeto da presente abordagem.


1. Considerações iniciais. Antecedentes Legislativos. Origem da norma

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Em vigor desde o dia 22 de setembro último, a Lei nº 11.340/06, conhecida como "Lei Maria da Penha" em homenagem a uma mulher vítima de violência doméstica, veio com a missão de proporcionar instrumentos adequados para enfrentar um problema que aflige uma grande parte das mulheres no Brasil e no mundo, que é a violência de gênero.

É impressionante o número de mulheres que apanham de seus maridos, além de sofrerem toda uma sorte de violência que vai desde a humilhação, até a agressão física. A violência de gênero é, talvez, a mais preocupante forma de violência, porque, literalmente, a vítima, nesses casos, por absoluta falta de alternativa, é obrigada a dormir com o inimigo. É um tipo de violência que, na maioria das vezes, ocorre onde deveria ser um local de recesso e harmonia, onde deveria imperar um ambiente de respeito e afeto, que é o lar, o seio familiar.

Um antecedente legislativo ocorreu em 2002, através da Lei nº 10.455/02, que acrescentou ao parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099/95 a previsão de uma medida cautelar, de natureza penal, consistente no afastamento do agressor do lar conjugal na hipótese de violência doméstica, a ser decretada pelo Juiz do Juizado Especial Criminal. Outro antecedente ocorreu em 2004, com a Lei nº 10.886/04, que criou, no art. 129 do Código Penal, um subtipo de lesão corporal leve, decorrente de violência doméstica, aumentando a pena mínima de 3 (três) para 6 (seis) meses.

Nenhum dos antecedentes empolgou. A violência doméstica continuou acumulando estatísticas, infelizmente. Isto porque a questão continuava sob o pálio dos Juizados Especiais Criminais e sob a incidência dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95. Alguma coisa precisava ser feita: era imperiosa uma autêntica ação afirmativa em favor da mulher vítima de violência doméstica, a desafiar a igualdade formal de gênero, na busca de restabelecer entre os sexos a igualdade material.

Veio, então, a Lei em comento – a Lei "Maria da Penha" –, cuja origem, não se tem dúvidas em afirmar isto, está no fracasso dos Juizados Especiais Criminais, no grande fiasco que se tornou a operação dos institutos da Lei nº 9.099/95, não por culpa do legislador, ressalva-se, mas, sem dúvida, por culpa do operador do Juizado, leiam-se, Juízes e Promotores de Justiça – que, sem a menor cerimônia, colocaram em prática uma série de enunciados firmados sem o menor compromisso doutrinário e ao arrepio de qualquer norma jurídica vigente, transmitindo a impressão de que tudo se fez e se faz com um pragmatismo encomendado simplesmente e tão-somente para diminuir o volume de trabalho dos Juizados Especiais Criminais [1].

E o pior: não satisfeitos com isto e alheios ao autêntico "cartão vermelho" imposto aos Juizados Especiais Criminais pela Lei "Maria da Penha", Juízes do Estado do Rio de Janeiro, reunidos em Búzios este mês de setembro, reafirmaram aqueles enunciados, agregando outros decorrentes da "análise" da Lei "Maria da Penha" – que, em resumo, poderiam ser sintetizados no seguinte: "considerando que não nos agradou, fica revogada a Lei nº 11.340/06" [2].

Sem mais delongas, inicia-se com a análise de dois pontos principais da Lei "Maria da Penha", um deles deturpado nos enunciados acima referidos.


2. É constitucional afastarem-se os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 na hipótese de violência doméstica? Pode a Lei Federal impor aos Estados regra de competência de Juízo? Análise dos arts. 33 e 41 da Lei nº 11.340/06.

Concluiu-se, no Estado do Rio de Janeiro, que o art. 41 da nova Lei seria inconstitucional por supostas ofensas ao art. 5º, I, da Constituição Federal (princípio da igualdade de gênero) e ao art. 98, I, também da Constituição Federal (que prevê a criação dos Juizados Especiais Criminais e alguns de seus institutos despenalizadores). Seriam, portanto, aplicáveis os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 às infrações penais que, mesmo praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher, se enquadrassem na definição de infração penal de menor potencial ofensivo (pena máxima cominada não superior a dois anos) [3].

A fragilidade das conclusões se percebe da simples leitura do art. 98, I, da Constituição, que se reporta à Lei – "nas hipóteses previstas em lei" – para definir a incidência dos institutos despenalizadores que prevê (neste ponto, aliás, menção expressa é feita apenas à transação penal, e como exceção – "permitidos" –, o que autoriza concluir que a regra é não haver transação, que é, pois, medida de exceção).

A transcrição do dispositivo se impõe, como medida didática:

Art. 98 - A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau; [4]

Sua simples leitura já bastaria para mostrar que cabe à lei infraconstitucional estabelecer quais as infrações penais sujeitas à transação e aos demais institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95. Aliás, é a própria lei infraconstitucional que define quais as infrações penais de menor potencial ofensivo e, portanto, da alçada do Juizado Especial Criminal: art. 61 da Lei nº 9.099/95, com a redação atual, dada pela Lei nº 11.313/06. A transcrição é, outra vez mais, didática:

Art. 61. Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.

Tem-se, pois, uma relação de regra e exceção: são infrações penais de menor potencial ofensivo e, portanto, da competência dos Juizados Especiais Criminais, sujeitas, assim, aos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, todas as infrações penais cuja pena máxima cominada não exceda a 2 (dois) anos, exceto aquelas que, independente da pena cominada, decorram de violência doméstica ou familiar contra a mulher, nos termos dos arts. 41, c/c 5º e 7º da Lei nº 11.340/06, estes últimos adiante analisados.

Só para recordar, na primeira versão do art. 61 da Lei nº 9.099/95, estavam fora do conceito de infração penal de menor potencial ofensivo e, portanto, fora do alcance dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, os crimes em que havia, simplesmente, previsão de procedimento especial, ainda que a pena máxima cominada fosse inferior a 1 (um) ano. E, nos termos do art. 90-A, da Lei nº 9.099/95, acrescentado pela Lei nº 9.839/99, estão fora do âmbito de incidência da primeira os crimes militares, independente da pena [5]. Nunca se reclamou disto, na perspectiva da constitucionalidade, não fazendo sentido pretender deslegitimar a exclusão imposta pela Lei "Maria da Penha".

Nem se diga que a competência dos Juizados Especiais Criminais é de natureza constitucional. Tal afirmação nunca empolgou. Se assim fosse, seriam inconstitucionais os arts. 66, parágrafo único, e 77, § 2º, da própria Lei nº 9.099/95, que prevêem a remessa do feito ao Juízo comum, nas hipóteses, respectivamente, de réu não encontrado para ser citado, já que inexiste citação por edital nos Juizados, e de necessidade de diligências complexas que contrariem o princípio da celeridade imanente ao rito do Juizado. Também seria inconstitucional a remessa ao Juízo comum do feito em casos de conexão e continência, na hipótese do crime conexo não ser de menor potencial ofensivo, remessa a que sempre foi favorável a maioria da doutrina e jurisprudência, o que foi recentemente contemplado de forma expressa pela Lei nº 11.313/06, que deu nova redação aos arts. 60 da Lei nº 9.099/95 e 2º da Lei nº 10.259/01 [6].

No tocante à suposta ofensa ao princípio da igualdade de gênero, já foi dito acima que a Lei em comento é resultado de uma ação afirmativa em favor da mulher vítima de violência doméstica e familiar, cuja necessidade de evidenciava urgente. Só quem não quer não enxerga a legitimidade de tal ação afirmativa que, nada obstante formalmente aparentar ofensa ao princípio da igualdade de gênero, em essência busca restabelecer a igualdade material entre esses gêneros, nada tendo, deste modo, de inconstitucional. Outras tantas ações afirmativas têm sido resultado de políticas públicas contemporâneas e, em que pesem algumas delas envoltas em polêmicas, não recebem a pecha de inconstitucionalidade. Citem-se as quotas para negros e estudantes pobres nas universidades, as quotas para deficientes em concursos públicos, as quotas para mulheres nas eleições etc.

Em resumo, não há o menor problema com o art. 41 da Lei "Maria da Penha". Não se aplicam, portanto, os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher. Deste modo, em se configurando a violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer que seja o crime e sua pena, não cabe transação penal nem suspensão condicional do processo nem composição civil dos danos extintiva de punibilidade, não se lavra termo circunstanciado (em caso de prisão em flagrante, deve ser lavrado auto de prisão em flagrante e, se for o caso, arbitrada fiança), deve ser instaurado inquérito policial (com a medida paralela prevista no art. 12, III, e §§ 1º e 2º da Lei nº 11.340/06), a denúncia deverá vir por escrito, o procedimento será o previsto no Código de Processo Penal, em se tratando de lesão corporal leve a ação penal será de iniciativa pública incondicionada etc [7].

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Tocante ao art. 33 da Lei "Maria da Penha", uma ponderação deve ser feita, em homenagem ao pacto federativo que, ultimamente, tem sido muito maltratado. É que a lei federal, ao pretender atribuir às Varas Criminais a competência transitória para o processo e julgamento dos crimes praticados em decorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher, dispôs sobre competência de juízo, invadindo, deste modo, a competência legislativa dos Estados em matéria de organização judiciária, ressalvada pelo art. 125, § 1º, da Constituição Federal. Não pode a Lei federal definir competência de juízo, até porque não há como a União descer às idiossincrasias de cada Estado para saber qual a necessidade de demanda dos órgãos jurisdicionais dos Entes Federativos em suas diversas Comarcas. Inconstitucional, deste modo, o art. 33 da Lei "Maria da Penha". Correto, portanto, o enunciado nº 86 do até então criticado Encontro de Búzios [8].

Nada impede, portanto, que os Estados, através de Lei de iniciativa do Presidente do Tribunal, atribuam aos Juizados Especiais Criminais competência para processar e julgar os crimes decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher, transformando-os de modo que passem a ser, também, Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Lembra-se, todavia, que, independente do crime e da pena, seja ou não compreendido no conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, não se aplicam os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, como já exposto [9].


3. A restrição à aplicação de penas de multa e "cestas básicas"

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Mantendo a homogeneidade de seu espírito e ainda sob o trauma do fracasso dos Juizados Especiais Criminais, vedou a Lei "Maria da Penha" que, em caso de condenação, seja aplicada ao réu somente penas de prestação pecuniária e multa.

Sem dúvidas, tal vedação é resultante do descrédito de tais penas, decorrente, dentre outras coisas, do simples fato de não poderem, em caso de descumprimento injustificado por parte do réu, ser convertidas em pena privativa de liberdade.

Não vedou a Lei, no entanto, se cabível, a aplicação das outras penas restritivas de direitos que, se descumpridas, são passíveis de conversão em prisão, na forma do art. 44, § 4º, do Código Penal.

Não há qualquer inconstitucionalidade na vedação em comento, sob a perspectiva do princípio da individualização da pena, a uma porque não se vedou a aplicação de outras penas restritivas de direitos, como visto; e a duas porque o art. 5º, XLVI, da Constituição Federal, estabelece que caberá à Lei regular tal individualização [10].

Quis a Lei "Maria da Penha", com isto, que o réu acusado da prática de qualquer crime resultante de violência doméstica e familiar contra a mulher, independente da pena cominada, seja julgado por tal infração penal [11] e, na hipótese de condenação, seja-lhe aplicada uma pena que, ainda que venha a ser substituída por pena restritiva de direitos, possa, em caso de descumprimento injustificado, ser convertida em prisão, de modo que o apenado se sinta afligido com a sanção penal imposta e, deste modo, seja demovido da idéia de persistir na prática de infrações penais deste jaez.


4. Definição conceitual de violência doméstica e familiar contra a mulher. Competência da Justiça Estadual e eventual deslocamento de competência. Os arts. 5º, 6º e 7º da Lei "Maria da Penha".

São os arts. 5º e 7º os responsáveis por determinar o âmbito de incidência da Lei em comento, já que são eles que definem o que configura e quais as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Seu exame conjunto, portanto, mostra-se fundamental para estabelecer quando se aplica a Lei "Maria da Penha".

Uma primeira observação que se deve fazer diz respeito a que mulher está sujeita à proteção legal. À míngua de qualquer exclusão constante do texto da Lei, conclui-se que qualquer mulher está por ela tutelada, independente da idade, seja adulta, idosa ou, até mesmo, criança ou adolescente. Nestes últimos casos, haverá superposição de normas protetivas, pela incidência simultânea dos Estatutos do Idoso e da Criança e Adolescente, que não parecem excluir as normas de proteção da Lei "Maria da Penha" que, inclusive, complementam a abrangência de tutela. Bom que se lembre que a Lei "Maria da Penha" não se restringe à violência doméstica, abrangendo, igualmente, a violência familiar, do que não estão livres, infelizmente, crianças, adolescentes e idosos.

Outro ponto a ser considerado, positivo por sinal, diz respeito à ausência de preconceito no que tange às relações domésticas que unam mulheres homossexuais. Qualquer delas, independente do papel que desempenham na relação, está sujeita à proteção legal, como estabelece o parágrafo único do art. 5º [12].

Para ser sujeito passivo tutelado pela norma basta, portanto, que a pessoa se enquadre no conceito biológico de "mulher".

Não pode escapar à crítica, no entanto, o elastério conceitual de que se valeram os arts. 5º e 7º, ao definirem o âmbito de incidência da Lei, permitindo a formulação de juízos de adequação excessivamente abertos, vagos e imprecisos e, portanto, contrários à idéia de segurança jurídica que deve nortear o Direito Penal.

Do art. 5º, só para exemplificar, se pode extrair a idéia de "sofrimento sexual por omissão" [13]. E do art. 7º a idéia de "vigilância constante" [14] como forma de violência psicológica.

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. [15]

Caberá ao Juiz, diante do caso concreto, podar eventuais excessos interpretativos, de modo a não permitir, por exemplo, que se queira aplicar a Lei ao marido que simplesmente não cumpra regularmente com suas obrigações sexuais para com sua esposa, rejeitando, se for o caso, por atipicidade material, eventual queixa que, neste sentido, por absurdo, imagine tal comportamento como capaz de configurar crime de injúria.

A definição conceitual do que seja violência doméstica e familiar contra a mulher e a prudência que se espera dos operadores do Direito, em especial Juízes e Promotores, no mister de restringir sua incidência diante de normas tão abertas, é vital em se levando em conta que qualquer crime previsto no Código Penal ou em Leis Especiais, que tutelem as integridades física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da mulher, podem, em tese, estar sujeitos às prescrições da Lei "Maria da Penha". Neste sentido, são alvos de preocupação específica os crimes que, pela pena, conformar-se-iam na definição de infração penal de menor potencial ofensivo, por conta, principalmente, no caso de atraírem a aplicação desta Lei, do afastamento da incidência dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, das limitações à aplicação de determinadas penas restritivas de direitos e da previsão excepcional de prisão preventiva [16].

Finalmente, há que se analisar o alcance e as intenções do art. 6º:

Art. 6º A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos. [17]

Cuida-se de dispositivo encomendado para poder dar ensejo a eventual Incidente de Deslocamento de Competência, na forma dos arts. 109, V-A e § 5º da Constituição Federal, dispositivos introduzidos pela Emenda Constitucional nº 45. Bom frisar que os crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher continuam, em princípio, sendo de competência da Justiça Estadual. Assim como são, também em princípio, quaisquer crimes contra os direitos humanos. Isto porque a competência da Justiça Federal em casos tais pressupõe a procedência do Incidente de Deslocamento, julgada pelo Superior Tribunal de Justiça, por iniciativa do Procurador-Geral da República. Não é automática a competência da Justiça Federal diante do simples fato de se tratar de crime contra os direitos humanos, eis que o art. 109, V-A da Constituição condiciona a regra de competência ao Incidente de Deslocamento, ao fazer remissão expressa ao § 5º, não permitindo que, antes disto, seja estabelecida a competência da Justiça Federal.

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Sobre o autor
Marcelo Lessa Bastos

promotor de Justiça do Rio de Janeiro, mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos, doutorando pela Universidade Gama Filho, professor de Processo Penal da Faculdade de Direito de Campos (Centro Universitário Fluminense)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher.: Lei "Maria da Penha". Alguns comentários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9006. Acesso em: 23 dez. 2024.

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