4. PRINCIPAIS OBSTÁCULOS AO RECURSO DE AMPARO NO ORDENAMENTO JURÍDICO PORTUGUÊS. UMA SUPERAÇÃO POSSÍVEL E NECESSÁRIA
Ricardo Correia34, buscando compreender as questões afetas à rejeição do recurso de amparo no ordenamento jurídico português, os divide em quatro obstáculos.
O primeiro obstáculo, segundo o autor, é a dificuldade de harmonização entre o sistema de fiscalização concreto de constitucionalidade e o recurso de amparo constitucional35.
Muito embora o direito português conte com instrumentos que permitam o controle de constitucionalidade no caso concreto e em abstrato, está muito longe, no que tange a eficácia, do recurso de amparo. Portanto, é inevitável as discussões quanto a implementação do instituto, ou algum instrumento constitucional semelhante, sempre pensando na salvaguarda dos direitos fundamentais.
O controle de constitucionalidade é uma característica das chamadas constituições rígidas, isto é, para que o texto constitucional seja alterado é necessário a realização de um procedimento especial e solene previsto na própria Constituição, sendo essa a garantia de sua imperatividade, por meio da verificação da compatibilidade de uma lei ou ato com a Constituição.
Em primeiro lugar, a Constituição e as suas normas encontram-se no topo da pirâmide jurídica sob a qual está estruturado o ordenamento jurídico. Ela veicula normas jurídicas de caráter fundamental, dispondo sobre os direitos e garantias dos indivíduos; a estruturação, definição e limitação do poder; o estabelecimento dos Poderes do Estado; as formas de aquisição e perda do poder político; a forma de elaboração de outras normas jurídicas; e a definição das competências legislativas e administrativas dos entes políticos que compõem o Estado, entre outras determinações.
Nas palavras de José Igor Macedo Silva36, “a Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país”, ou seja, é a lei suprema, porquanto nela são consagradas as estruturas do Estado e dos seus órgãos, bem como as normas fundamentais. Isso lhe confere superioridade perante as outras normas jurídicas.
Em segundo lugar, para o reconhecimento da supremacia da Constituição e de sua força vinculante é necessário haver formas e modos de controle de constitucionalidade das leis e dos atos normativos do Poder Público para garantir sua supremacia.
Conforme Uadi Lammêgo Bulos37, mesmo sendo a Constituição dotada de supremacia ela não está imune a abusos e violações, e é exatamente aí que reside a razão de ser do controle de constitucionalidade, sendo um instrumento para ser acionado em caso de violação à ordem suprema do Estado.
A respeito do princípio da supremacia constitucional, Sylvio Motta e William Douglas38 ensinam tratar-se de uma característica das Constituições escritas, rígidas ou semirrígidas, conferindo-lhe superioridade em relação às demais normas, motivo pelo qual Gerges Burdeau, por exemplo, divide as normas em constitucionais e ordinárias, sendo aquelas superiores.
Por sua vez, José Igor Macedo Silva39 afirma que o princípio da supremacia requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição.
Ainda, de acordo com Barroso40, a supremacia constitucional apresenta-se como superlegalidade formal, sendo a Constituição a fonte primária da produção normativa, e como superlegalidade material, pois subordina toda a atividade normativa estatal.
Já para Alexandre de Moraes41, o controle de constitucionalidade configura-se como garantia de supremacia dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição que, além de configurarem limites ao Poder do Estado, são também uma parte da legitimação do próprio Estado, determinando seus deveres.
Neste mesmo entorno o constitucionalista Uadi Lammêgo Bulos42 leciona que o controle de constitucionalidade “é o instrumento de garantia da supremacia constitucional. Serve para defender a constituição das investidas praticadas pelos poderes públicos, e, também, dos atos privados atentatórios à magnitude de seus preceitos.”
Porém, as críticas são tecidas ao sistema português por não permitir que o indivíduo, de forma direta, provoque a Corte Constitucional para ver resguardados os seus direitos.
De fato, se há institutos que tutelam de forma menos eficaz, há de se reconhecer que a não consagração do recurso de amparo gera problemas aos jurisdicionados quando presente uma lesão a direitos fundamentais. Portanto, a rejeição acaba comprometendo o exercício de tais direitos, o que justifica o argumento de harmonização entre o sistema existente e o recurso de amparo consagrado em outros ordenamentos, a exemplo da Espanha, como já dito43.
E sobre o tema, Ricardo Correia44 chama a atenção para a “quase” tutela adequada dos direitos e liberdades fundamentais, que decorre de institutos semelhantes ao recurso de amparo, mas que não possuem o seu alcança. Em meio a esse cenário há uma errônea impressão de que as liberdades e garantias fundamentais se encontram tutelas, mas em face de uma violação percebe-se a fragilidade destes instrumentos.
O segundo obstáculo se pauta na necessidade de se esgotar as instâncias da justiça administrativa, para só então buscar, junto ao Tribunal Constitucional, a tutela dos direitos fundamentais.
Tal posicionamento, porém, acaba por contribuir para a concretização da lesão às liberdades ou garantias fundamentais. Ao exigir que se esgote as vias administrativas desponta um meio alternativo à tutela dos direitos fundamentais e retira do Tribunal Constitucional o papel que lhe é inerente, que é a defesa dos direitos fundamentais45.
Prossegue Ricardo Correia destacando que o fato de ter sido a justiça administrativa priorizada na reforma de 2004, não afasta a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, por meio da justiça constitucional, na tutela dos direitos e garantias fundamentais.
O terceiro obstáculo consiste na possibilidade de ser a decisão proferida no âmbito do recurso de amparo a violadora do direito, liberdade ou garantia fundamental. Em tais situações, os que criticam e rechaçam a consagração do recurso de amparo no direito português defendem que possibilitar o pronunciamento dos Tribunais ordinários em matéria constitucional contribuiria para um conflito entre estes e o Tribunal Constitucional46.
Ainda em relação ao terceiro obstáculo, defendem que o Tribunal Constitucional é, por sua natureza, o especializado na análise das questões afetas à tutela dos direitos fundamentais, enquanto os Tribunais ordinários nem sempre possuem juízes com formação constitucional, não sendo viável exigir pronunciamento diário sobre questões relacionadas à justiça constitucional47.
O quarto e último obstáculo à consagração do recurso de amparo no Direito Português consiste no receio de um grande número de ações no âmbito dos tribunais e, principalmente no Tribunal Constitucional, o que comprometeria o funcionamento deste48.
De fato, como enfatiza Eliseo Aja Fernández49, em análise à reforma implementada na Espanha no ano de 2007 no que diz respeito à justiça constitucional, um dos problemas do recurso de amparo foi o grande número de recursos. Porém, há de se considerar a análise dos recursos de admissibilidade, pois se por um lado há uma maior demanda, por outro há também maior rejeição de recursos.
Na mesma senda lecionam Santiago, Calsing e Santos50, ressaltando a responsabilidade das instâncias inferiores tutelar e promover os direitos fundamentais, ou seja, a tutela destes direitos não pode ficar apenas a cargo da Corte Constitucionais. Logo, ainda que as reformas legislativas visem diminuir o número de recursos de amparo e, assim, contribuir para o bom funcionamento da Corte Constitucional, não retira desta o dever de tutelar as liberdades e direitos fundamentais, em conjunto com os juízes ordinários, que também tem o dever de afastar eventual incompatibilidade entre a legislação infraconstitucional e o texto da constituição.
Significa dizer, portanto, que o recurso de amparo é instituto voltado às lesões de direitos fundamentais que forem relevantes, pois não sendo, injustificado é o manejo do recurso em comento.
Em que pese tais observações, não se pode ignorar que já há, no direito português, um controle difuso, na análise dos casos concretos, e um controle concentrado, que é realizado pelo Tribunal Constitucional. Logo, tal objeção não encontra razão de ser.
Ricardo Correia51 ainda lembra que medidas foram adotadas pelo Tribunal Constitucional Português para possibilitar decisões sumárias, ampliar os casos de condenação por litigância de má-fé, dentre outras, para evitar um grande número de ações.
No Brasil, por exemplo, a repercussão geral é uma forma de obstar o grande número de ações no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A Emenda Constitucional nº 45/2004 introduziu, no ordenamento jurídico brasileiro, diversas modificações, dentre as quais consta o instituto da repercussão geral no recurso extraordinário, ao alterar o art. 102, § 3º da Constituição da República.
A repercussão geral é “um mecanismo de filtragem que torna o recurso extraordinário realmente excepcional, pois pode fazer com que ele deixe de ser visto como um direito do jurisdicionado”52, representando a derradeira tentativa de solucionar a persistente crise do Supremo Tribunal Federal53.
Desta feita, além dos requisitos gerais de admissibilidade dos recursos, deverá o recurso extraordinário atender, ainda, ao requisito da repercussão geral.
Portanto, há de se repensar, no Direito Português, a resistência à consagração do recurso de amparo, seja porque o atual sistema não proporciona efetiva proteção dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, seja porque os obstáculos supracitados podem ser contornados.
CONCLUSÃO
O recurso de amparo constitui um remédio jurídico que busca, em sua essência, a tutela dos direitos, garantias e liberdades fundamentais, proporcionando ao particular meios para provocar a Corte Constitucional a se pronunciar em caso de lesão a tais direitos.
Percebeu-se que embora o Brasil não conte com tal recurso, há institutos outros que permitem a efetiva tutela dos direitos e garantias fundamentais, o que não ocorre em Portugal.
Também restou claro que não é recente o recurso de amparo, previsto na Constituição Mexicana do final do século XIX, embora na atualidade tal instituto ganhe relevância em virtude da sua disciplina no direito espanhol.
Nota-se que o Tribunal Constitucional Português é composto por membros com notória expertise na seara constitucional. Negá-lo protagonismo na defesa dos direitos fundamentais outorgados aos cidadões significa minimizar o seu potencial. Trata-se de um Tribunal plenamente capacitado para aferir e coibir arbitrariedades praticadas em detrimento dos jurisdicionados via recurso de amparao constitucional.
A despeito das tentativas infrutíferas de consagração do instituto no âmbito do Direito Português, obstáculos são enfrentados. Apesar disso, estudos demonstram a necessidade de se aprofundar no tema e, principalmente, fomentar debates quanto a ineficácia dos institutos atualmente existentes, que não são suficientes para a efetiva tutela constitucional, não se coadunando com as modernas constituições e a necessidade de fortalecimento dos direitos fundamentais.
É premente, pois, a necessidade de positivação do recurso de amparo ou instrumento similar no ordenamento português, porquanto não basta a existência dos direitos. Deve haver, concomitantemente, mecanismos eficazes para resguardar os direitos existentes e, em se tratando de direitos, garantias e liberdades fundamentais, ninguém melhor do que o Tribunal Constitucional para tutelá-los mediante acesso direto dos cidadãos mediante, nomeadamente, recurso de amparo.
REFERÊNCIAS
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