Capa da publicação Empresas estatais e imunidade tributária: releitura dos votos do ministro Ayres Britto no STF
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Empresas estatais e imunidade tributária:

uma breve releitura dos votos do ministro Ayres Britto relativos aos arts. 150, incisos II e VI, alínea ‘a’, e 173, § 2º, Constituição Federal

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4 MANIFESTAÇÕES DO MINISTRO AYRES BRITTO

Principio pelo julgamento do citado RE 601.392, cuja dissidência vencedora foi inaugurada pelo ministro Ayres Britto, conforme aludido. Nesse feito, o ministro Ayres revela a sua extrema dificuldade para equacionar o tema da imunidade recíproca no que envolve empresa estatal, mormente a ECT. O voto que proferiu, nada obstante curto, é preciso e revelador de sua compreensão sobre esse tema. Seguem algumas passagens dilucidadoras:

Paro para refletir sobre o conteúdo significante, a extensão eficacial dessa expressão constitucional "manter" o correio aéreo nacional e os serviços postais e telegráficos - manter. Quando a Constituição usa esse verbo "manter", o faz num contexto de grande importância institucional. Por exemplo: manter a polícia civil aqui no Distrito Federal; manter o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública; manter as atividades de diplomacia. Manter o serviço entregue à cura da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos cada vez mais me parece que é manter a qualquer custo, a qualquer preço, de qualquer maneira, ainda que sob retumbante, acachapante prejuízo. É uma atividade que não pode deixar de ser prestada, que não pode sofrer solução de continuidade; é obrigação do Poder Público manter esse tipo de atividade. Por isso que o lucro eventualmente obtido pela Empresa não se revela, com muito mais razão, como um fim em si mesmo; é um meio para a continuidade, a ininterrupção dos serviços a ela afetados.

De outra parte, sabemos que os Correios - o Ministro Nelson Jobim lembrava isso - são destinados a um atendimento de modo a alcançar todos os municípios brasileiros, distritos, as subdivisões geográficas-territoriais desses municípios, em busca desse valor mais alto da integração nacional - que Vossa Excelência, Ministro César Peluso, chamou de "coesão nacional" em uma das nossas discussões. Isso tudo obriga os Correios e Telégrafos a adotar uma política tarifária de subsídios cruzados, ou seja, buscar obter lucro aqui para cobrir prejuízo certo ali. E como os Correios realizam também direitos fundamentais da pessoa humana, como a comunicação telegráfica e telefônica e o sigilo dessas comunicações, praticando uma política de modicidade tarifária, eles alcançam a maior parte da população carente, da população economicamente débil. Assim, nesta oportunidade, com um pouco mais de clareza ou menos dubiedade, parece-me que os Correios são como uma longa manus, uma mão alongada das atividades da União, um apêndice da União absolutamente necessário. Estender aos Correios o regime de imunidade tributária de que fala a Constituição está me parecendo uma coisa natural, necessária, que não pode deixar de ser, independentemente se a atividade é exclusiva ou não. No caso, parece-me que os fins a que se destinam essas atividades são mais importantes do que a própria compostura jurídica ou a estrutura jurídico-formal da empresa. O conteúdo de suas atividades é que me parece relevar sobremodo, à luz da Constituição.

Como se vê, para o ministro Ayres Britto, as obrigações sociais da ECT, e de quaisquer outras estatais, podem justificar a extensão da imunidade ou de eventuais privilégios a elas. Esse entendimento já tinha sido manifestado por ocasião do julgamento paradigmático da ACO 765.

Essa linha já tinha sido adotada no julgamento do RE 582.264, que discutiu a imunidade de Hospital que era uma sociedade de economia mista. Também nesse julgamento, o relator originário, ministro Joaquim Barbosa, votou pelo não conhecimento da imunidade tributária recíproca, forte no argumento segundo o qual  “sempre que os serviços forem prestados por particulares ou por entidades públicas, com vistas ao acúmulo patrimonial (art. 199 da Constituição) ou estatal em interesse secundário, não haverá a extensão da salvaguarda constitucional, pois a imunidade recíproca não opera como garantia de agentes de mercado”.

A divergência também foi inaugurada pelo ministro Ayres Britto. Segundo o ministro o direito à saúde é de todos e é dever do Estado, e são de relevância pública as ações e serviços públicos de saúde e, por consequência, se cuida de um dever de natureza pública. E a prestação de ações e serviços de saúde por sociedades de economia mista corresponde à própria atuação do Estado, desde que a empresa estatal não tenha por finalidade a obtenção de lucro.

Cuide-se que no julgamento do RE 599.628, o ministro Ayres Britto votou pelo reconhecimento do direito a pagar suas dívidas mediante precatórios judiciários a sociedade de economia mista, com ações negociadas em bolsa de valores, delegatária de serviço público, forte na tese de que no paradigma do constitucionalismo social a atividade é que deve ser protegida, não necessariamente a pessoa jurídica. Assinalou Ayres Britto:

15. Muito bem. Pergunto: em que se traduz o precatório, como instituto de direito constitucional? Qual a sua natureza jurídica e base de inspiração como categoria de direito positivo? Essa base de inspiração faz-se presente na figura do Estado enquanto prestador de serviços públicos?

16. Eis as respostas que me parecem hermeneuticamente corretas, à luz do caput e dos §§ 5º, 6º e 7º do art. 100 da CF:

I – precatórios, em linhas gerais, são ofícios de requisição de verba orçamentária para pagamento de débitos estatais formalmente reconhecidos e impostos em decisão judicial com trânsito em julgado. Ofícios expedidos: a) pelo presidente do tribunal judiciário ‘que proferir a decisão exequenda’, apresentados ‘até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão os seus valores atualizados monetariamente’; b) ofícios requisitórios, enfim, que já convertidos em verbas orçamentárias, serão pagos exclusivamente na sua ordem de apresentação e à conta dos seus créditos respectivos’;

II – assim positivado como ofício ou mandado requisitório, o instituto em causa tem a natureza jurídica de prerrogativa processual do Estado, pois, do ângulo dele, Estado, o precatório se traduz no direito de não ser financeiramente executado senão por um procedimento bem mais vantajoso. Um procedimento ou regime de execução especial da dívida por ficar a salvo, em regra, das constritivas e até vexatórias medidas da penhora, do arresto, do sequestro e assim avante. Prerrogativa que ainda opera pela possibilidade de solver os respectivos débitos até o final do exercício financeiro subsequente àquele da precitada inclusão orçamentária (o que implica alargamento temporal de pelo menos 18 meses);

III – tal regime especial de execução de dívidas já definitivamente constituídas em sede judiciária tem a sua razão de ser. Ele responde à necessidade maior, para não dizer absoluta, de impedir o risco de uma súbita paralisia nas atividades de senhorio estatal. Que são atividades de que dependem a qualidade de vida e até mesmo a sobrevivência física de toda uma população geograficamente situada e juridicamente personalizada. Atividades públicas, então, porque respeitantes aos mais encarecidos interesses do conjunto da sociedade. Por isso que marcadas pelo signo da irrestrita continuidade, devido a que seu abrupto estancamento não pode ser de pronto suprido pelos seus próprios destinatários. É dizer, faltando o Estado na prestação das atividades que lhes são inerentes, tudo o mais vai faltar à população. Notadamente aquela parcela populacional sacrificada em renda e patrimônio, que tem na ininterrupta e qualificada atuação estatal a sua própria tábua de salvação. O seu único e verdadeiro arrimo, em especial no campo das atividades de que falam os arts. 6º, 144 e 225 da CF, a compreender os setores de saúde e segurança públicas, educação, trabalho, assistência social, lazer, previdência social, assistência à maternidade e à infância, moradia, meio ambiente e recebimento contínuo de serviços públicos essenciais, como transporte coletivo, energia elétrica, água potável e tratamento de esgotos sanitários. Avultando a compreensão de que sem o regime de precatório seria absolutamente impossível o Estado se reprogramar para prosseguir sem trégua no desempenho de misteres que dão substância e propósito à sua concepção como realidade jurídica universalmente consagrada. Verdadeiro ponto de arremate e condição mesma da aventura humana enquanto projeto de vida civilizada, que é a vida rousseaunianamente em sociedade.

IV – agora já se percebe, sem o menor esforço mental, que toda essa base de inspiração do precatório como figura de direito comparece no âmbito do Estado enquanto prestador de serviços públicos. Ao menos quanto aos serviços públicos de nominação constitucional, que são de caráter objetivamente essencial (se não o fossem deixariam de ter na própria Constituição o seu qualificado locus de positividade) e também titularizados pelo Estado. E titularizado pelo Estado em razão do seu necessário vínculo de atendimento a necessidades coletivamente sentidas, nomeadamente junto àqueles que não têm outro patrimônio que não sejam os serviços públicos mesmos [...];

17. Sob essas coordenadas mentais, voto pela extensão do regime de precatórios à parte recorrente. Não sem antes enfatizar que os serviços públicos se inscrevem nos quadros do moderno constitucionalismo social, pela sua peculiaridade de implicar postura prestacional onerosa do Estado, sobretudo em favor dos indivíduos e da cidadania. Por eles é que o Poder Público dá concretizadora vazão aos direitos sociais, transformando-os em cotidianas políticas públicas de afirmação e promoção humana. Donde sua definição como específica atividade material com que o Estado-administração busca instituir e elevar continuamente os padrões de bem-estar da coletividade, fazendo-o pela oferta de préstimos ou comodidades que, do ângulo dos seus beneficiários, têm a peculiadridade do desfrute direto, individual e contínuo.

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Nada obstante essa fundamentação, a Corte acompanhou a divergência inaugurada pelo ministro Joaquim Barbosa, no sentido de que os privilégios da Fazenda Pública são inextensíveis às sociedades de economia mista que executam atividades em regime de concorrência ou que tenham como objetivo distribuir lucros aos seus acionistas.

E, para finalizar, o julgamento paradigmático da sempre recordada ADPF 46. Nesse feito, o ministro Ayres Britto reafirma a convicção segundo a qual a compulsoriedade da prestação do serviço público, que deve ser mantido pela União, influencia o regime jurídico e não autorizaria a intervenção da iniciativa privada. Nessa perspectiva, essa peculiaridade, o caráter eminentemente público e social da prestação do serviço, reclamaria um tratamento normativo distinto.


5 CONCLUSÕES

À luz dos feitos analisados, podemos concluir que para o ministro Ayres Britto o regime normativo diferenciado para as empresas estatais, seja no plano tributário ou não, estava vinculado ao caráter social da atividade econômica desenvolvida pela estatal, independentemente de seu regime constitutivo, se empresa pública ou se sociedade de economia mista.

É que para o ministro Ayres Britto, à luz do constitucionalismo social, à Administração Pública, em sentido amplo, compete concretizar as promessas normativas dispostas na Constituição, especialmente as positivas de caráter social. E, segundo o ministro, para que a Administração Pública, aqui incluída a direta e a indireta, nesta entendida as empresas públicas e as sociedades de economia mista, possa viabilizar as suas finalidades, se faz necessário tratá-la distintamente em relação à iniciativa privada.

Para o ministro Ayres Britto, a Administração Pública não se revela como um “Leviatã faminto e voraz”, devorador de parcela das riquezas produzidas pela iniciativa privada. Da leitura de seus votos, vê-se que para ele, a Administração Pública deveria se apresentar como um conjunto de órgãos e entidades vocacionado para a prestação de serviços públicos de caráter eminentemente social e emancipatório.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. Empresas estatais e imunidade tributária:: uma breve releitura dos votos do ministro Ayres Britto relativos aos arts. 150, incisos II e VI, alínea ‘a’, e 173, § 2º, Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6525, 13 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90514. Acesso em: 2 nov. 2024.

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