Artigo Destaque dos editores

Redutibilidade salarial no período de pandemia da covid-19: Análise da Lei n° 14.020/20

Exibindo página 3 de 4
Leia nesta página:

Divergência sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da medida de redução salarial

O estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo 6/2020 expressa uma situação de emergência internacional enfrentada pelo Brasil em decorrência da rápida disseminação da COVID-19. A fim de orientar a população aos meios para combater tal crise, foi promulgada a Lei nº 13.979/2020, prevendo a possibilidade de adoção de medidas excepcionais pelas autoridades, com objetivo de proteção da coletividade (BRASIL, 2020c).

O Governo Federal, em resposta rápida à necessidade de regulamentar os diversos campos ao enfrentamento dessa grave crise, incluindo o campo trabalhista, editou Medidas Provisórias, destacando-se a MP 936/2020, que será tratada neste capítulo. A MP em questão autoriza a redução do salário proporcional à jornada, bem como a suspensão contratual, sem a participação sindical. Também trata de como se dará a participação financeira da União nas perdas dos trabalhadores, quando realizarem alguma das medidas supracitadas.

De maneira concisa, cabe ressaltar que a MP 936, editada em 1º de abril de 2020, surgiu da necessidade de atender ao disposto pela Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro do mesmo ano, no sentindo de especificar as medidas de enfrentamento ao estado de calamidade pública. Posteriormente, a medida provisória em questão foi convertida na Lei nº 14.020, de 6 de julho de 2020.

À primeira vista, o texto trazido pela MP 936/2020, retirando a participação dos sindicatos nos acordos firmados entre empregado e empregador, “é inconstitucional, e, portanto, nulo de pleno direito” (CASSAR, 2020). A discussão sobre a constitucionalidade da medida aprofundou-se, agravando a insegurança nas relações de trabalho, como também severas críticas de associações ligadas ao Direito do Trabalho. Dessa forma, um dia após a publicação, foi proposta, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), uma ADIn, pelo Partido Rede Sustentabilidade, em face da referida MP. A ação teve como objeto alguns dispositivos da MP 936/2020, os quais travam sobre a possibilidade do empregador realizar os acordos de redução proporcional da jornada e de salário por acordo individual, pelo prazo máximo de noventa dias, desde que respeitasse o valor do salário-hora de trabalho e que o empregado recebesse o acordo com antecedência mínima de dois dias corridos. Para os acordos de suspensão temporária do contrato de trabalho, o prazo máximo permitido era de sessenta dias, podendo ser fracionado em até dois períodos de trinta dias, podendo também ser realizado por acordo individual. O texto da medida ainda previa que o contrato de trabalho se reestabelecesse no prazo de dois dias corridos a partir da cessação do estado de calamidade pública ou da data prevista no acordo individual como termo de encerramento.

O BEm, segundo o texto da referida MP, poderia ser acumulado com o pagamento de ajuda compensatório mensal, em decorrência da redução de jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária de contrato de trabalho. O valor da ajuda compensatória deverá ser definido no acordo individual ou em negociação coletiva. Os acordos previstos pela MP poderiam ser realizados por meio de negociação coletiva ou por acordos individuais. Em caso de acordo individual, o empregador deverá comunicar ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data da celebração.

As medidas de redução salarial proporcional à jornada ou a suspensão temporária do contrato de trabalho se aplicam aos empregados com salário igual ou inferior a R$ 3.135,00 (três mil cento e trinta e cinco reais) ou aos portadores de diploma de nível superior, que percebam salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. Para o demais empregados não explicitados no caput, as medidas previstas pela MP somente poderão ser estabelecidas por convenção ou acordo coletivo, com exceção a redução de jornada de trabalho e de salário de vinte e cinco por cento, prevista na alínea a do inciso III do caput do artigo 7°, que poderá ser pactuada por acordo individual (BRASIL, 2020).

No intuito de esclarecer os fundamentos constitucionais e inconstitucionais da medida, antes de adentrar nas questões expostas pela ADIn 6.363, cabe brevemente salientar a regulamentação da irredutibilidade salarial no texto constitucional e, posteriormente, a análise infraconstitucional.

A MP 936/2020, convertida na Lei 14.020/2020, foi promulgada em tempos de calamidade pública, como já dito. Em contrapartida às medidas permitidas por tal lei, houve a garantia dos postos de trabalho e empregos, ajuda às empresas e, consequentemente, a diminuição dos impactos na economia. No entendimento de Cassar (2020), as medidas apresentadas possuem “finalidade pública, coletiva e social”.

A CRFB/1988, no âmbito dos direitos trabalhistas, assegura a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, fundada nos princípios da busca pelo pleno emprego, da função social da empresa, na estabilidade da economia, além da promoção de uma sociedade justa e solidária, para o bem de todos (BRASIL, 1988, artigos 1°, 3° e 170). É importante destacar que todos os princípios apontados se fazem presentes no texto da Lei nº 14.020/2020, uma vez que “A finalidade da medida foi a de garantir a sobrevivência das pessoas naturais e jurídicas, mantendo empregos e postos de trabalho” (CASSAR, 2020). Todavia, há de se observar os princípios e valores que regulam os direitos e garantias dos trabalhadores, uma vez que configuram cláusulas pétreas. A irredutibilidade salarial, expressamente inscrita no inciso VI do artigo 7° da Carta Magna, decorre do princípio da proteção ao trabalhador, proibindo alterações lesivas ao empregado e, dessa forma, tornando obrigatória a participação do sindicato para validade da redução. Por conseguinte, têm-se um conflito de normas, visto que “as regras decorrem dos princípios, que lhe dão conteúdo normativo” (SLAIBI FILHO, 2004, pp.65-66).

Os interesses citados, que devem ser garantidos pelo Estado, são incompatíveis, posto que a Lei nº 14.020/2020 proporciona a sobrevivência das empresas e das relações de emprego, apesar de autorizar a redução do salário do empregado sem a devida fiscalização realizada pelos sindicatos. Tal situação conflituosa é denominada “antinomia”. Para Maria Helena Diniz (1998), “antinomia é a presença de duas normas conflitantes, sem que se possa saber qual delas deverá ser aplicada ao caso singular”. E como ensina Tércio Sampaio Ferraz Jr. (1978), antinomia é:

A oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo que colocam o sujeito numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída dos quadros de um ordenamento dado (FERRAZ JR., 1978 APUD DINIZ, 1998, p.19).

Segundo o entendimento de Vólia Bomfim Cassar (2020), os parâmetros utilizados para a solução de antinomias – o cronológico, o hierárquico e o da especialidade – são ineficazes para a resolução de conflito entre normas constitucionais. No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso (2009, p.329) consolida que “não existe hierarquia em abstrato entre princípios, devendo a precedência relativa de um sobre o outro ser determinada à luz do caso concreto”. O jurista leciona que “princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam determinada direção a seguir. Ocorre que, em ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não é só possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso a sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou importância. À vista dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis, como os que existem entre a liberdade de expressão e privacidade, a livre iniciativa e a intervenção estatal, o direito de propriedade e a sua função social. A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação” (BARROSO, 2003, grifos do autor).

Ainda sob o aspecto constitucional, o inciso VI do artigo 7° da CRFB/1988 não trata de toda e qualquer alteração no contrato de trabalho e redução do salário. Dessa forma, entende-se que o dispositivo não veda todas as hipóteses de redução nominal do salário. Inclusive, o próprio texto constitucional permite que ocorra a variação do salário de acordo com as condições de trabalho (MIRANDA, 2020). No mesmo sentido, o texto do dispositivo mencionado estabelece a possibilidade de o empregado receber salário variável, desde que nunca inferior ao mínimo legal (BRASIL, 1988, artigo 7°, VII). Assim, poderá constar, desde logo, no contrato de trabalho, a variação do salário em razão das alterações de condições trabalhistas. Ainda é permitido, pela CRFB/1988, a compensação do trabalho extraordinário; dessa forma, o empregado deixa de receber se já realizou a prestação do serviço.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Como demonstrado, a CRFB/1988 põe sob a proteção do sindicato quando se tratar de redução do salário que não decorra da alteração das condições do trabalho. A CLT, como norma infraconstitucional, regula o que poderá ser objeto de alteração contratual. Assim, o legislador apresenta inúmeras situações em que é possível a percepção variável do valor do salário.

Primeiramente, a CLT disciplina as hipóteses de redução do valor salarial em razão de alterações que estão expressamente definidas na Lei, tais como gratificações, adicionais, comissões e gorjetas. Nessas situações, uma vez inexistindo a condição eleita, o valor sofrerá redução, posto que o legislador estabelece uma relação direta entre a condição do trabalho e a remuneração. Para tanto, há a relevância da distinção entre remuneração e salário, justamente para taxar aquilo que pode ou não ser objeto de redução. Conceituando, brevemente, têm-se que o “salário é toda contraprestação ou vantagem em pecúnia ou em utilidade devida e paga diretamente pelo empregador ao empregado, em virtude do contrato de trabalho” (CASSAR, 2018, p.176). Já a “remuneração é a soma do pagamento direto com o pagamento indireto, este último entendido como toda contraprestação paga por terceiros ao trabalhador” (CASSAR, 2018, p.176).

O mesmo ocorre nas hipóteses de suspensão do contrato de trabalho. A CLT traz o tema em seus artigos 471 e seguintes. Nessa situação, o empregado deixa de perceber qualquer salário, como em caso de afastamento para serviço militar. Igualmente, ocorre nos contratos de trabalho em que é estipulado o valor da remuneração em razão de tarefa; e nos contratos intermitentes, hipóteses em que há a variação do salário.

À luz do entendimento de Delgado (2017), a redução direta ou nominal do salário é vedada e protegida pelo texto constitucional no artigo 7°, inciso VI. Entretanto, as alterações realizadas no contrato de trabalho, ainda que repercutam no salário nominal do empregado, são permitidas pela CLT, como exposto anteriormente.

É adequado ressaltar a não receptividade do artigo 503 da CLT pela CRFB/1988. Segundo tal dispositivo, em caso de força maior, os empregadores estariam autorizados a reduzir em até 25% a remuneração dos trabalhadores. Para Miranda (2020), a inconstitucionalidade encontra-se no fato de o dispositivo não prever a alteração das condições do trabalho, como trazido pela CLT.

Dessa forma, haveria a redução, por si só, do salário ajustado. Como exposto, a constitucionalidade da Lei nº 14.020/2020 foi questionada pela sua incompatibilidade com o inciso VI do artigo 7° da CRFB/1988. Foi com esse fundamento que a ADIn 6.363, ajuizada no STF, pedia liminarmente a declaração da inconstitucionalidade da norma, para fins de sua não aplicação aos acordos individuais. Dessa forma, entende-se que o sentido do dispositivo citado anteriormente é o de vedar a redução nominal do salário quando houver a manutenção das condições de trabalho, exceto quando ela ocorrer por meio de ACT ou CCT. A possibilidade de redução salarial proporcionalmente à jornada de trabalho trazida pela Lei nº 14.020/2020 representa uma alteração contratual, não legislando sobre a redução do salário em si, visto que as hipóteses de alteração do contrato de trabalho são de matéria infraconstitucional, conforme disciplina a CLT. Em caráter liminar, o Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADIn 6.363, acolhe o pedido em sentido contrário. Para o Ministro Ricardo Lewandowksi, relator do processo, ao possibilitar a redução da jornada de trabalho com a redução do salário e a suspensão do contrato por acordo individual, a MP 936 afronta o disposto no inciso VI do artigo 7° da CRFB/1988, bem como os direitos e garantias individuais dos trabalhadores (ADIn 6.363 MC-DF, 06/04/2020). Dessa forma, ao conceder à liminar a interpretação conforme o Texto Magno, o Supremo condicionou a validade dos acordos individuais de redução, como também os de suspensão do contrato, à anuência dos sindicatos. Na hipótese de inércia sindical, presume-se, tacitamente, a concordância. Em vista disso, houve o deferimento parcial da cautelar, conforme o texto do dispositivo explica “isto posto, com fundamento nas razões acima expendidas, defiro em parte a cautelar, ad referendum do Plenário do Supremo Tribunal Federal, para dar interpretação conforme à Constituição ao §4° do art. 11 da Medida Provisória 936/20, de maneira a assentar que “[os] acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho [...] deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração”, para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes.” (ADIn 6.363 MC-DF, 06/04/2020).

No entendimento de Fernando Hugo R. Miranda (2020), o pensamento utilizado no julgamento demonstra que a legislação em questão teria criado uma hipótese de acordo individual, autorizando a redução do salário, o que a tornaria inválida por autorizar a redução salarial por contrato individual, e não de forma coletiva. Contudo, não se levou em consideração o aspecto de que o acordo previsto pela lei ocorreria inteiramente nos parâmetros estabelecidos pela mesma, não podendo as partes agirem de outra maneira. Ainda para o autor, a possibilidade de alteração contratual trazida pela Lei nº 14.020/2020 não se trata de mero acordo individual, mas de uma “possibilidade de adesão a um programa governamental de auxílio social” (MIRANDA, 2020).

Posteriormente, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, em 17 de abril de 2020, derrubou a liminar concedida, parcialmente, pelo Ministro Relator. O plenário decidiu, por maioria, manter a validade dos acordos individuais realizados entre empregado e empregador no âmbito da Lei nº 14.020/2020 sobre redução salarial e suspensão de contrato de trabalho, independentemente de aquiescência dos sindicatos. Embora pacificado perante o tribunal guardião da Constituição, a decisão gerou muita insegurança jurídica para as empresas e os empregados, uma vez que os acordos poderiam ser invalidados no futuro. Dessa forma, os números de acordos individuais entre empregado e empregador registrados pelo Ministério da Economia, inicialmente, não alcançaram os patamares esperados.

Assuntos relacionados
Sobre os autores
Gabriela Ferreira Dornas de Andrade

Graduada em Direito pela Universidade Iguaçu – Campus V e Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Uniftec.

Marlene Soares Freire Germano

Mestre em educação, especialista em Planejamento e Educação, Bioética e Dignidade Humana. Professora da Universidade Iguaçu/CampusV.

Maria Carolina França Lima

Advogada. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho. Pós-graduada em Direito e Processo Civil.

Marcelo Lannes Santucci

Advogado; Especialista em Direito e Processo Civil, Coordenador do ESAJUR/NPJ-UNIG, Prof. de Prática Jurídica; Direito do Trabalho; e Deontologia, na Universidade Iguaçu-Campus V.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Gabriela Ferreira Dornas ; GERMANO, Marlene Soares Freire et al. Redutibilidade salarial no período de pandemia da covid-19: Análise da Lei n° 14.020/20. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6537, 25 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90583. Acesso em: 26 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos