Capa da publicação A quem caberá o ônus da prova da sucessão de empresa: contribuinte ou fisco?
Artigo Destaque dos editores

Quem tem o ônus de provar sucessão de empresa: o contribuinte que, autuado, a alega; ou o fisco?

Exibindo página 2 de 2
15/06/2021 às 14:10
Leia nesta página:

6. Caso em que a tese ora proposta foi aplicada

Na vigência do CPC de 1973, em auto de infração por creditamento indevido do ICMS, o contribuinte, sem conseguir demonstrar sua boa-fé, alegou ter havido sucessão da empresa emitente dos documentos, uma vez que, segundo Relatório de Apuração elaborado pelo próprio fisco, no local dessa empresa funcionava outra com o mesmo ramo de atividade. Deveria o fisco, portanto, exigir o ICMS da empresa que ficou no local antes ocupado pela emitente.

A Câmara aceitou o argumento do contribuinte e, por decisão unânime, deu provimento ao recurso ordinário, para cancelar o débito fiscal. Contra essa decisão, a Representação Fiscal (RF) interpôs recurso extraordinário endereçado ao Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo, de que fomos sorteados como relator.

De acordo com a redação do art. 48 da Lei 10.081,[15] do Estado de São Paulo, de 25/04/1968, que reorganizava o funcionamento do Tribunal de Impostos e Taxas, “caberá recurso extraordinário dos Representantes Fiscais, a ser julgado pelas Câmaras Reunidas, nos seguintes casos:

  1. das decisões não unânimes que deixarem de acolher totalmente os pedidos de reconsideração interpostos pela Fazenda do Estado; e
  2. das decisões unânimes em recurso ordinário e das unânimes ou não em pedido de reconsideração que contrariarem expressa disposição de lei ou a prova dos autos e desde que, em qualquer caso, não caiba pedido de revisão”.

O recurso extraordinário, então privativo da RF, era o único recurso cabível, visto que:

  1. não houve pedido de reconsideração (previsto no art. 42 da Lei 10.081), pois ele só podia ser interposto contra decisões não unânimes (cf. regra do caput do art. 42 da Lei 10.081);
  2. não cabia pedido de revisão (previsto no art. 43 da Lei 10.081), já que, pelo ineditismo do caso, a RF não conseguiu encontrar decisão proferida por qualquer das Câmaras, inclusive pelas Câmaras Reunidas, que divergisse, no critério de julgamento, da decisão recorrida (cf. regra do caput do art. 43 da Lei 10.081);
  3. a decisão não havia contrariado expressa disposição de lei.

Por tais razões, a RF alegou que a decisão havia contrariado a prova dos autos.

No recurso extraordinário, a RF alegou que a decisão recorrida não divergia do critério de julgamento de outra decisão do TIT, mas contrariava a prova dos autos, pois a autuada não apresentara comprovante algum de pagamento das compras. No recurso ordinário, a autuada alegara que a empresa encontrada no local da fornecedora era uma “sucessora disfarçada”, porquanto operava no mesmo ramo de atividade.

Para o julgador, se o ônus da prova da sucessão é de quem a alega como fato impeditivo do direito de a Fazenda Pública exigir o ICMS da autuada, era preciso examinar os autos do processo para verificar que, não apresentados comprovantes de pagamento, a decisão recorrida havia contrariado a prova dos autos. Nesse caso, o recurso deveria ser conhecido e provido. No entanto, se o ônus da prova é do fisco, antes de autuar a empresa adquirente, deveria o Agente Fiscal de Rendas solicitar documentos da suposta sucessora, para se certificar que não havia neles indícios de sucessão. Como essas provas não foram produzidas, a decisão recorrida não havia contrariado a prova dos autos, devendo então o recurso ser conhecido e não provido.

Interposto pela Fazenda Pública do Estado, conhecemos do recurso extraordinário e a ele negamos provimento, para manter a decisão que julgou improcedente a acusação, porque, ao encontrar no local do estabelecimento da emitente dos documentos fiscais outra empresa do mesmo ramo de atividade econômica, não cuidou o fisco de provar que não houve sucessão comercial.

No julgamento do recurso houve dois pedidos de vista. O primeiro “juiz” com vista conheceu do recurso e lhe deu provimento porque, inexistindo livros e documentos da firma inidônea, não havia como, mediante o exame da escrita fiscal ou comercial, apurar-se eventual sucessão, não ocorrendo a inversão do ônus probatório. Ademais, a autuada era reincidente na apropriação de créditos espúrios de ICMS. O segundo “juiz” com vista não conheceu do recurso, porque, se o fisco não cuidou de fazer a prova que lhe cabia (de que não houve sucessão), então essa prova não poderia ter sido contrariada.

No entanto, ao afirmar que o fisco não cuidou de fazer a prova que lhe cabia, o segundo “juiz” já conheceu do recurso.[16]

Efetuada a votação, houve 18 (dezoito) votos pelo conhecimento contra 17 (dezessete) pelo não-conhecimento, de modo que “juízes” que não conheceram do recurso, tiveram de decidir sobre o mérito. Por decisão não unânime, foi negado provimento ao recurso, o que firmou a tese: é do fisco o ônus de provar que houve sucessão de empresa ou de que não foram encontrados indícios suficientes para asseverar que a sucessão ocorreu.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Que significa “não conhecer” de um Recurso? Disponível em: <http://www.ablj.org.br/revistas/revista9/revista9%20%20JOS%C3%89%20CARLOS%20BARBOSA%20MOREIRA%20-%20Que%20significa%20%27n%C3%A3o%20conhecer%27%20de%20um%20Recurso.pdf>  Acesso em: 31/03/2021.

SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e prescrição no direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de Direito Processual Civil, 2° vol. São Paulo: Saraiva, 1989-1991.


NOTAS

[1] Embora “ônus” e “dever” sejam usados com o mesmo sentido, na linguagem jurídica: “dever” é obrigação que, descumprida, implica sanção; “ônus” é tarefa que, não realizada, coloca o sujeito a quem ela é atribuída em situação de desvantagem. Como a parte que prova o fato que alega fica em situação de vantagem, fala-se em “ônus da prova”.

[2] É a seguinte a redação do art. 104 da Lei 6.374/1989:

Artigo 104 - Todo aquele que tenha legítimo interesse pode formular consulta sobre interpretação e aplicação da legislação tributária estadual, nas condições estabelecidas em regulamento.

§ 1º - A apresentação da consulta pelo contribuinte ou responsável, inclusive pelo substituto, impede, até o término do prazo fixado na resposta, o início de qualquer procedimento fiscal destinado à apuração de infração relacionada com a matéria consultada.

§ 2º - A consulta, se o imposto for considerado devido, não elide a incidência da correção monetária e dos demais acréscimos legais, dispensada a exigência dos juros de mora e da multa de mora, se formulada no prazo previsto para o recolhimento normal do imposto e se o interessado adotar o entendimento contido na resposta, no prazo que lhe for assinalado” (negritamos).

[3] O ativo permanente é hoje denominado de ativo não circulante, pela Lei 11.941/2009.

[4] Nesse caso, o fisco paulista exige no auto de infração imposto igual ao produto do valor constante da Nota Fiscal de aquisição da máquina pela alíquota de 18% (dezoito por cento).

A multa por falta de pagamento do imposto, apurada por meio de levantamento contábil é de 80% (oitenta por cento) do valor do imposto (cf. alínea “a” do inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989, abaixo transcrita).

Artigo 85 - O descumprimento das obrigações principal e acessórias, instituídas pela legislação do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação, fica sujeito às seguintes penalidades:

I - infrações relativas ao pagamento do imposto:

  1. falta de pagamento do imposto, apurada por meio de levantamento fiscal – multa equivalente a 80% (oitenta por cento) do valor do imposto;
  2.  . . . ” (negritamos).

[5] De acordo com o art. 13 da Lei 13.457/2009 do Estado de São Paulo (que dispõe sobre o processo administrativo tributário decorrente de lançamento de ofício, e dá outras providências), abaixo transcrito, quando da correção de auto de infração, efetuada em decorrência de prova produzida nos autos, resultar penalidade de valor menos gravoso, será ressalvada ao interessado, expressamente, a possibilidade de efetuar o pagamento do débito fiscal no prazo de 30 (trinta) dias, contados da intimação, com desconto igual ao que poderia ter usufruído no decurso do prazo previsto para a apresentação de defesa.

Artigo 13 - Estando o processo em fase de julgamento, os erros de fato e os de capitulação da infração ou da penalidade serão corrigidos pelo órgão de julgamento, de ofício ou em razão de defesa ou recurso, não sendo causa de decretação de nulidade.

§ 1º - Quando da correção resultar penalidade de valor equivalente ou menos gravoso, será ressalvada ao interessado, expressamente, a possibilidade de efetuar o pagamento do débito fiscal no prazo de 30 (trinta) dias, contados da intimação, com desconto igual ao que poderia ter usufruído no decurso do prazo previsto para a apresentação da defesa.

§ 2º - A redução do débito fiscal exigido por meio de auto de infração, efetuada em decorrência de prova produzida nos autos, não caracteriza erro de fato” (negritamos).

[6] Nesse caso, de acordo com Eurico Marcos Diniz de Santi (2000, p. 168), a hipótese da regra jurídica que determina o termo inicial do prazo de decadência apresenta as seguintes condições, previstas no CTN:

  1. previsão de pagamento antecipado;
  2. ocorrência do pagamento antecipado;
  3. não-ocorrência de dolo, fraude ou simulação;
  4. não-ocorrência de notificação por parte do Fisco.

[7] “Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

( . . . )

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

 . . . ” (negritamos).

[8] “Art. 373. O ônus da prova incumbe:

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

§ 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.

§ 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.

 . . . ” (negritamos).

[9] No caso de mercadoria infungível (a identificável por número de série), basta provar que ela não se encontra no estoque de mercadorias da empresa – deve o fisco notificar o contribuinte a apresentá-la – e que não há NF-e que indique sua saída – deve o fisco notificar o contribuinte a apresentar essa NF-e. No caso de mercadoria fungível (substituível por outra da mesma espécie, qualidade e quantidade), a prova deve ser feita por meio de levantamento específico realizado no estabelecimento do adquirente. Deve ser apurado que, no fim do período do levantamento, a diferença entre os estoques contábil e físico daquele tipo de mercadorias era igual ou muito próxima da quantidade total daquele tipo de mercadorias discriminadas nas (NF-e)s emitidas pela suposta vendedora.

[10] “Artigo 36 - O Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação é não-cumulativo, compensando-se o imposto que seja devido em cada operação ou prestação com o anteriormente cobrado por este, outro Estado ou pelo Distrito Federal, relativamente a mercadoria entrada ou a prestação de serviço recebida, acompanhada de documento fiscal hábil, emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco.

§ 1º - Para efeitos deste artigo, considera-se:

1 - imposto devido, o resultante da aplicação da alíquota sobre a base de cálculo de cada operação ou prestação sujeita a cobrança de tributo;

2 - imposto anteriormente cobrado, a importância calculada nos termos do item precedente e destacada em documento fiscal hábil;

3 - documento fiscal hábil, o que atenda a todas as exigências da legislação pertinente, seja emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco e esteja acompanhado, quando exigido, de comprovante do recolhimento do imposto;

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

4 - situação regular perante o fisco, a do contribuinte que, à data da operação ou prestação, esteja inscrito no cadastro de contribuintes, se encontre em atividade no local indicado, possibilite a comprovação da autenticidade dos demais dados cadastrais apontados ao fisco e não esteja enquadrado nas hipóteses previstas nos artigos 20 e 21. (Redação dada ao item pela Lei 12.294/06, de 06-03-2006; DOE 07-03-2006; Efeitos a partir de 07-03-2006)

 . . . ”.

[11] Estabelecimento é todo complexo de bens organizados, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária (art. 1.142 do CC); fundo de comércio é o conjunto de bens materiais ou imateriais (ponto, fama, condição de negócio instalado, freguesia), que agregam um valor a favor do comerciante.

[12] Se a empresa emitente está extinta e ex-sócio dela integra o quadro social de empresa do mesmo ramo de atividade, é desta a responsabilidade por tributo devido por aquela (parágrafo único do art. 132 do CTN).

[13] Entendemos que o então ex-sócio da empresa sucedida e o sócio da empresa fornecedora das mercadorias teriam praticado o crime previsto no inc. II do art. 1° da Lei 8.137/1990 (a seguir transcrito): o primeiro, como autor; o segundo, como partícipe.

“Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei n° 9.964, de 10.4.2000)

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

( . . . )

Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

 . . . ” (negritamos).

[14] “Artigo 85 - O descumprimento das obrigações principal e acessórias, instituídas pela legislação do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação, fica sujeito às seguintes penalidades:

I - infrações relativas ao pagamento do imposto:

( . . . )

l) falta de pagamento do imposto, em hipótese não prevista nas demais alíneas deste inciso - multa equivalente a 100% (cem por cento) do valor do imposto; (Redação dada à alínea pela Lei 16.497, de 18-07-2017; DOE 19-07-2017)

( . . . )

VII - infrações relativas à apresentação de informação econômico-fiscal e à guia de recolhimento do imposto:

a) falta de entrega de guia de informação - multa de 2% (dois por cento) do valor das operações de saídas ou das prestações de serviço realizadas no período, nunca inferior ao valor correspondente a 350 (trezentas e cinquenta) UFESPs; entrega até o décimo quinto dia após o transcurso do prazo regulamentar – multa ...

§ 1º - A aplicação das penalidades previstas neste artigo deve ser feita sem prejuízo da exigência do imposto em auto de infração e das providências necessárias à instauração da ação penal cabível, inclusive por crime de desobediência.

 . . . ”.

[15] Disponível em: <https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1968/lei-10081-25.04.1968.html> Acesso em: 16/04/2021.

[16] Sobre conhecimento ou não conhecimento de recurso, transcrevemos a seguir para o leitor as lúcidas considerações de lavra do emérito jurista José Carlos Barbosa Moreira, no primoroso artigo “Que significa ‘não conhecer’ de um Recurso?”.

“É antes de examinar a substância de impugnação que o tribunal tem de decidir se vai ou não conhecer do recurso. Se lhe examinou a substância, dele já conheceu, por mais que se empenhe em fazer crer o contrário. No instante em que está deliberando se o recurso merece ou não merece ser conhecido, o tribunal ainda não sabe que juízo formará a respeito da decisão recorrida e das razões do recorrente; apenas o saberá, à evidência, se e quando examinar aquela e estas – noutras palavras, se e quando conhecer do recurso”.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Wagner Pechi

Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo aposentado. Ex-Delegado Tributário de Julgamento de São Paulo. Ex-integrante do Tribunal de Impostos e Taxas. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PECHI, Wagner. Quem tem o ônus de provar sucessão de empresa: o contribuinte que, autuado, a alega; ou o fisco?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6558, 15 jun. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91196. Acesso em: 26 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos