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A natureza jurídica da ordem pública e o clamor público como fundamento da prisão preventiva

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02/11/2006 às 00:00
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O elemento "clamor público" tem sido demasiadamente utilizado para privar a liberdade dos que respondem a um processo penal, ou estão sendo investigados (em sede de inquérito policial) pela suposta prática de um delito.

SUMÁRIO: 1 – Considerações iniciais; 2 – A Garantia da Ordem Pública e sua natureza jurídica; 3 – A posição da jurisprudência quanto à ordem pública; 3.1 – Crítica ao entendimento jurisprudencial; 4 - O Clamor Público; 4.1 – Impossibilidade da interpretação in malam partem e o princípio da legalidade; 4.2 – Inexistência de previsão legal do clamor público e sua inconsistência; 4.3 – A inconstitucionalidade do clamor público para a prisão preventiva; 5 – Conclusão.


Palavras-chave: prisão preventiva, garantia da ordem pública, clamor público ou social, liberdade.


1 – Considerações iniciais

            O presente estudo tem por fundamento a análise do elemento "clamor público", demasiadamente utilizado pelos magistrados para privar a liberdade das pessoas que respondem a um processo penal, ou estão sendo investigados (em sede de inquérito policial) pela suposta prática de um delito, sendo que tal requisito (clamor social) tem sido interpretado pela maioria dos Tribunais pátrios (e boa parte da doutrina) como pressuposto da garantia da ordem pública, disposto no art. 312 do Código de Processo Penal.

            Antes de adentrarmos ao tema objeto da presente, é preciso salientar que a prisão processual ou cautelar (já que existe a prisão decorrente da uma sentença condenatória transitada em julgado), poderá ocorrer em virtude da prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão decorrente da sentença de pronúncia, prisão originada da sentença penal condenatória não transitada em julgado (respectivamente prescritos nos arts 301, 312, 408, § 1º, e 393, I, todos do Código de Processo Penal), e a prisão temporária (Lei nº 7.960/89).

            Desse modo, importa advertir que a as prisões provisórias tem por escopo assegurar o processo e a prova, sendo vedado (e ilegal, conforme será demonstrado adiante) decretar uma prisão cautelar para a busca de fins penais, quais sejam, a prevenção especial e geral, visando infligir à punição da pessoa que sofre a sua decretação. [01]

            Assim, para enfrentar o tema em questão, é preciso deixar claro que o "o instituto da prisão cautelar – considerada a função processual que lhe é inerente – não pode ser utilizado com o objetivo de promover a antecipação satisfativa da pretensão punitiva do Estado, pois, se assim fosse lícito entender, subverter-se-ia a finalidade da prisão preventiva, daí resultando grave comprometimento do princípio da liberdade" [02].


2 – A Garantia da Ordem Pública e sua natureza jurídica

            Para a decretação de qualquer prisão cautelar, deve o julgador fundamentar a medida privativa da liberdade, com base no disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988, não bastando meras conjecturas ou fatos abstratos invocados pelo magistrado, sem se ater ao caso concreto, sob pena de nulidade de tal medida prisional.

            Mas isso não é suficiente, sendo necessário também que estejam presentes, para a possibilidade da prisão preventiva, dois requisitos, e condições (que são quatro), sendo que uma destas deve coexistir com aqueles dois, que são os indícios suficientes de autoria e materialidade do delito (prova da existência do crime).

            Segundo o magistério de Fernando da Costa Tourinho Filho, "não basta pois, a mera suspeita; a prova da materialidade delitiva é indispensável. Além da prova da existência do crime, a lei quer mais: "indícios suficientes de autoria" . E na velha lição de Borges da Rosa, esses indícios "devem ser tais que gerem a convicção de que foi o acusado o autor da infração, embora não haja certeza disto" [03].

            Partindo de tal premissa, uma das condições da prisão cautelar é a garantia da ordem pública, disposta no art. 312 do Código de Processo Penal, sendo que tal modalidade de prisão provisória possibilita uma interpretação muito ampla em relação ao conceito "ordem pública", gerando muita polêmica, chegando alguns autores até a considerar que a preservação da ordem pública não está entre os objetivos da prisão cautelar, porque, na verdade trata-se de um dos escopos do processo principal cujo fim é especificamente o restabelecimento da situação de equilíbrio social e de ordem violados com a prática do delito [04].

            Não obstante o entendimento supra, o que se verifica nos decretos prisionais, com base na "ordem pública", tão invocada nas decisões dos pedidos de prisões cautelares, é sua utilização genérica e de modo abstrato, gerando uma grave insegurança jurídica.

            Roberto Delmanto Júnior, ao comentar a decretação da prisão preventiva para garantir a ordem pública, assevera que "é de se esclarecer, porém, ser indisfarçável nesses termos a prisão preventiva se distancia de seu caráter instrumental – de tutela do bom andamento do processo e da eficácia de seu resultado – ínsito a toda e qualquer medida cautelar, servindo de instrumento de justiça sumária, vingança social etc." [05].

            Novamente, vale citar Borges da Rosa o qual critica o pressuposto "garantia da ordem pública", afirmando que tal condição "não tem significado especial e é meramente explicativo. Segundo esse autor, tal expressão poderia muito bem ser omitida do código, já que ‘toda prisão decretada em processo penal se destina a garantir a ordem pública, que é sempre perturbada, de maneira mais ou menos grave, com a prática da infração penal" [06].

            Ademais, conforme já alegado, não podemos olvidar de que a finalidade da prisão cautelar não é punir a pessoa investigada ou denunciada, mas sim e tão somente garantir a efetividade do processo de conhecimento, para que se possa realizar a produção probatória em certo momento da marcha processual ou do inquérito policial.

            Desse modo, é possível constatar que inexiste o caráter instrumental de efetividade do processo penal, medida esta inerente a toda medida cautelar prisional, em relação ao conceito de "garantia a ordem pública", atribuindo ao julgador uma imensa margem de discricionariedade para a sua definição, levando-se a uma grave insegurança jurídica, ainda mais quando se trata da liberdade do cidadão.


3 – A posição da jurisprudência quanto a ordem pública

            Reconhecendo a constitucionalidade do pressuposto em comento, são inúmeras as interpretações da jurisprudência a respeito da garantia da ordem pública para justificar a prisão preventiva.

            Nesse sentido, os Tribunais vêm admitindo a validade do decreto prisional para tutelar a segurança do próprio investigado (ou denunciado), mediante a preservação da ordem pública, "onde o mais seguro seria deixar o acusado preso, em razão da notoriedade do crime cometido e, consequentemente, livre dos perigos que correria se permanecesse solto. Enfim, tutelar-se-ia a vida ou a integridade física de alguém privando-o de sua liberdade, o que evidentemente não pode admitir" [07].

            Noutra vertente, os julgados mais comuns costumam identificar a ordem pública com a:

            a) credibilidade da justiça;

            b) necessidade de acautelar-se o meio social;

            c) gravidade do crime cometido [08];

            Importa ressaltar que muitas vezes os três aspectos acima mencionados são acompanhados de um quarto requisito, o clamor público, sendo que todos esses aspectos também não são inteiramente individualizados [09], e podem ou não decorrer um do outro.

            3.1 – Crítica ao entendimento jurisprudencial

            Segundo a lição de Aury Lopes Júnior, "as prisões preventivas para garantia da ordem pública ou da ordem econômica não são cautelares, e portanto, são substancialmente inconstitucionais" [10].

            Assevera o referido autor que "trata-se de grave degeneração transformar uma medida processual em atividade tipicamente de polícia, utilizando-as indevidamente como medidas de segurança pública" [11].

            Na esteira do entendimento supra mencionado, decretar uma prisão preventiva para garantir "a preservação da credibilidade da justiça" (como exemplo), é fugir dos ditames constitucionais do princípio da presunção da inocência, do devido processo legal, e do princípio da não culpabilidade, acarretando na aplicação de uma justiça sumária e arbitrária.

            No mesmo sentido, a gravidade do delito (conforme mencionado no tópico anterior), por si só, não pode ser justificativa de prisão cautelar, tendo já decidido o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (5ª Câmara Criminal) ser o elemento "ordem pública" requisito legal amplo, aberto e antidemocrático [12].

            Assim, é evidente que a prisão preventiva para a garantia da ordem pública, da forma como está disciplinada no Código de Processo Penal, viola os direitos fundamentais do cidadão, resultando em um instrumento repressivo contrário ao Estado Democrático e Social de Direito.


4 - O Clamor Público

            Se já é discutível a prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública, conforme as razões acima expendidas, é induvidoso a inconstitucionalidade da prisão provisória em face ao clamor público ou social, muitas vezes confundido com a própria garantida da ordem pública. Vejamos.

            4.1 – Impossibilidade da interpretação in malam partem e o princípio da legalidade

            Prevalecem no Direito Processual Penal as mesmas regras de hermenêutica que disciplinam a interpretação da lei nos demais ramos do Direito [13].

            Prescreve o artigo 3º do Código de Processo penal que "a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais do direito".

            Assim, é certo "que pode haver peculiaridades no que tange à interpretação ou entendimento de uma ou outra regra de processo penal. Isto, porém, não autoriza que se crie uma teoria especial de hermenêutica para o Direito Processual Penal" [14].

            Desse modo, é possível concluir que "como a privação da liberdade não pode ser a regra, mas constitui uma providência excepcional, as normas que regulam a prisão preventiva contém motivos taxativamente previstos (numerus clausus) e, por isso, devem ser interpretadas restritivamente, não podendo ser aplicadas por analogia, a não ser in bonam partem. As prisões cautelares submetem-se ao princípio da legalidade ou tipicidade processual (nulla coactio sine lege). A doutrina comparada firmou-se no sentido de que também no campo processual penal está vedada à analogia prejudicial ao acusado. Isso não significa que o recurso à analogia fique completamente vedado no direito processual penal, mas somente quando implique num enfraquecimento da posição ou numa diminuição dos direitos processuais do imputado (desfavorecimento do acusado, analogia in malam partem). O juiz não pode raciocinar por analogia ou preencher uma lacuna quando decide limitar a liberdade pessoal e deve cumprir o princípio da legalidade, assim como não pode criar em interpretação extensiva ou por analogia, os motivos da prisão preventiva" [15].

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            4.2 – Inexistência de previsão legal do clamor público e sua inconsistência

            O clamor público não está previsto no Código de Processo Penal como fundamento da prisão preventiva, sendo tal conceito disposto no inciso V, do art. 323, do referido diploma processual penal, no que tange a denegação da liberdade provisória com fiança.

            Não obstante inexistir tal previsão legal para a medida odiosa, os tribunais, bem como parte da doutrina, fazem "um exercício de ‘prestidigitação retórica’ e transmuda o clamor público, tout court, em fundamento de prisão preventiva, enquadrando-o no conceito indeterminado da ‘garantia da ordem pública" (art. 312 do Código de Processo Penal)" [16].

            Conforme o magistério de Antônio Alberto Machado, "o alarma social confunde-se como sentimento de revolta que frequentemente aflora quando determinados crimes, graves e altamente reprováveis, ainda não foram devidamente apurados e nem punidos os seus responsáveis" [17].

            Para Júlio Fabbrini Mirabete, "embora seja certo que a gravidade do delito, por si, não basta para a decretação da custódia, a forma e execução do crime, a conduta do acusado, antes e depois do ilícito, e outras circunstâncias podem provocar imensa repercussão e clamor público, abalando a própria garantia da ordem pública, impondo-se a medida como garantia do próprio prestígio e segurança da atividade jurisdicional" [18].

            No entanto, com a devida vênia, é inaceitável utilizar o clamor público como medida ou instrumento de punição (pena) para o acusado, no escopo de satisfazer os reclamos dos cidadãos ou da mídia, pois não é esta a função das medidas cautelares prisionais.

            Luigi Ferrajoli sustenta que "essa idéia primordial do bode expiatório é justamente uma daquelas contra a qual nasceu aquele delicado mecanismo que é o processo penal, que não serve, como já afirmei, para proteger a maioria, mas sim pra proteger, ainda que contra a maioria, aqueles cidadãos individualizados que, não obstante suspeitos, não podem ser tidos culpados sem provas" [19].

            Portanto, é injustificado avocar o clamor público tão somente para fundamentar a prisão preventiva, pois se trata de uma expressão ampla e genérica, a qual pode ter inúmeros significados, sendo incompatível com os ditames constitucionais e os direitos fundamentais.

            4.3 – A inconstitucionalidade do clamor público para a prisão preventiva

            É inconstitucional um decreto prisional provisório para controlar o clamor social, por mais respeitados que sejam os sentimentos de revolta ou vingança, pois a prisão preventiva não tem a finalidade de antecipação da pena, muito menos a da prevenção (especial ou geral), sendo vedado também ao Estado assumir esse papel vingativo [20].

            Ademais, a ordem pública, ao ser confundida com o "clamor público", corre o risco de manipulação pelos meios de comunicação de massas, fazendo parecer que a referida opinião pública, na verdade, seja uma mera opinião publicada, com evidente prejuízo para toda a sociedade [21].

            Assim, "se põe em perigo o esquema constitucional do Estado de Direito, dando lugar a uma quebra indefensável do que deve ser um processo penal em um Estado Social e Democrático de Direito, pois vulnera o princípio constitucional da presunção de inocência e da liberdade de todo cidadão e a própria essência do instituto da prisão preventiva" [22].

            A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem corretamente proclamado (HC nº 80379, Rel. Min. Celso de Mello) que "o clamor público não constitui fator de legitimação da privação cautelar da liberdade – O estado de comoção social e de eventual indignação popular, motivado pela repercussão da prática da infração penal, não pode justificar, por si só, a decretação da prisão cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e grave aniquilação do postulado fundamental da liberdade. O clamor público – precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão processual (CPP, art. 312) – não se qualifica como fator de legitimação da privação cautelar da liberdade do indiciado ou do réu, não sendo lícito pretender-se nessa matéria, por incabível, a aplicação analógica do que se contém no art. 323, V, do CPP, que concerne, exclusivamente, ao tema da fiança criminal" [23].

            No mesmo sentido, decidiu também a 5ª Câmara Criminal, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no HC nº 70005916929, tendo como relator o Desembargador Amilton Bueno de Carvalho, que "o clamor público", "a intranqüilidade social" e o "aumento da criminalidade" não são suficientes à configuração do periculum in mora: são dados genéricos, sem qualquer conexão com o fato delituoso praticado pelo réu, logo não podem atingir as garantias processuais deste. Outrossim, o aumento da criminalidade se encarrega de multiplicá-los nas suas próprias excrescências. Assim, não é razoável que tais elementos – genéricos o suficiente para levar qualquer cidadão à cadeia - sejam valorados para determinar o encarceramento prematuro" [24].

            Não obstante às decisões supra, que militam em favor da Constituição Federal e do Estado Democrático e Social de Direito, há ainda inúmeras prisões preventivas sendo decretadas com supedâneo no clamor público, sendo evidente a sua inconstitucionalidade em virtude da violação dos princípios da legalidade (art. 5º, inciso XXXIX), da presunção da inocência (pois o decreto prisional através do clamor público nada mais é do que uma antecipação da pena, bem como da culpabilidade do investigado ou acusado), e, por fim, do princípio da proporcionalidade, o qual tem como função impor limite ao julgador quando analisar a possibilidade do decreto da prisão preventiva.


5 - Conclusão

            Ante o exposto, é possível constatar que a prisão preventiva para a garantia da ordem pública não é medida cautelar, visto que a mesma não assegura a efetividade do processo, e sim reveste-se de uma verdadeira antecipação da pena a ser eventualmente aplicada, como forma de demonstração do poder e coação Estatal em relação ao suspeito ou acusado.

            A invocação do clamor público ou alarma social, com o escopo de restringir a liberdade do cidadão, através da prisão preventiva, também se reveste de flagrante inconstitucionalidade, violando-se os princípios da legalidade e da taxatividade.

            Ademais, considerando a natureza dos direitos limitados, como a liberdade e a presunção de inocência, é inaceitável uma interpretação extensiva (in malan partem) ampliando o conceito de "cautelar" até o ponto de transformá-la em medida de segurança pública [25], para justificar a prisão provisória diante do clamor público, o qual poderá ser relacionado através de inúmeras expressões vagas e abstratas que não se coadunam ao fato criminoso, sendo evidente que a lei penal se restringe àquilo que seu texto declara, exceto quando sua alteração interpretativa gera benefício ao imputado, ressaltando a idéia de que o direito criminal deve atuar com a menor ênfase possível [26].

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Sobre o autor
Rodrigo José Mendes Antunes

advogado em Londrina (PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANTUNES, Rodrigo José Mendes. A natureza jurídica da ordem pública e o clamor público como fundamento da prisão preventiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1219, 2 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9120. Acesso em: 19 abr. 2024.

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