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O reconhecimento legal do conceito moderno de família:

o art. 5º, II e parágrafo único, da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)

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2. BREVES NOTAS SOBRE A LEI Nº 11.340 (LEI MARIA DA PENHA)

No dia 07 de agosto de 2006, foi sancionada pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva a Lei n. 11.340, que "Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências".

A referida Lei foi prontamente alcunhada de Lei Maria da Penha, em uma justíssima homenagem à biofarmacêutica Maria da Penha, vítima de um caso de violência doméstica que se tornou emblemático.

Em 29 de maio de 1983, o marido de Maria da Penha tentou mata-la com disparos de arma de fogo enquanto a mesma dormia, sendo que procurou encobertar a sua ação alegando que houve uma tentativa de roubo em sua residência.

Após ficar hospitalizada por duas semanas, Maria da Penha retornou ao lar com a seqüela permanente da paraplegia nos seus membros inferiores. Não obstante, seu marido voltou a atentar contra sua vida, tentando eletrocuta-la durante o banho.

Felizmente, Maria da Penha conseguiu sobreviver, mas seu marido ficou impune durante longos 19 (dezenove) anos e 6 (seis) meses, quando, finalmente, veio a ser condenado e preso.

Destarte, diante desta imensa morosidade, o caso foi levado até a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Caso n. 12.051/OEA), que, em resposta, publicou o Relatório n. 54, de 2001, no qual consta a recomendação dirigida à República Federativa do Brasil para que fosse realizada uma profunda reforma legislativa com o fito de proporcionar um efetivo combate aos casos de violência doméstica praticada contra a mulher.

Atendendo a esta recomendação é que o país, em muito boa hora, fez surgir a Lei Maria da Penha. Através deste instrumento legislativo, verificou-se a implementação de medidas que verdadeiramente passaram a contribuir no combate à violência doméstica contra mulheres, a exemplo da possibilidade de retirada do agressor do convívio da agredida (inclusive com a decretação da prisão preventiva daquele), do apoio psicossocial da vítima etc.

Não obstante, ao menos para os fins deste trabalho, a maior inovação trazida pela Lei Maria da Penha vem estampada no seu art. 5º, II e parágrafo único. É o que será visto no próximo capítulo.


3. O RECONHECIMENTO LEGAL DO CONCEITO MODERNO DE FAMÍLIA: O ART. 5º, II, DA LEI NO 11.340 (LEI MARIA DA PENHA)

Após todo o arcabouço teórico desenvolvido, até o momento, neste trabalho, fica muito fácil perceber que a Lei Maria da Penha, ao estatuir, no seu art. 5º, II, que a família deve ser "compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa" acabou se tornando a primeira norma infraconstitucional a reconhecer categoricamente o conceito moderno de família.

Note-se que o dispositivo sub occulis destaca que é considerada família não apenas a comunidade tida como tal pelo ordenamento jurídico ("comunidade formada por indivíduos que são aparentados", ou seja, "unidos por laços naturais" e, "por afinidade"), mas também aquela na qual os seus componentes "se consideram aparentados", ou, em outras palavras, são "unidos por vontade expressa". Desta forma, pode-se afirmar que a presente norma consagra, pela primeira vez, no âmbito infraconstitucional, a idéia de que a família não é constituída por imposição da lei, mas sim por vontade dos seus próprios membros.

Em definitivo, tem-se como assente o entendimento de que a entidade familiar ultrapassa os limites da previsão jurídica (casamento, união estável e família monoparental) para abarcar todo e qualquer agrupamento de pessoas onde permeie o elemento afeto (affectio familiae). Por conta disso, o ordenamento jurídico deverá sempre reconhecer como família todo e qualquer grupo no qual os seus membros enxergam uns aos outros como seu familiar.

Nesse cenário, impende destacar que, embora o caput do art. 5º da Lei mencione que o conceito de família aqui tratado valha apenas para os seus próprios fins, é óbvio que, com base no que foi explanado no capítulo 1 deste trabalho, tal conceito deve ser estendido para todo o ordenamento jurídico pátrio.

Não obstante a Constituição Federal ter sido a verdadeira responsável pela criação deste moderno conceito de família, não há que se olvidar acerca da imensa importância da previsão infraconstitucional do mesmo, para fins de incremento da segurança jurídica na resolução das lides forenses, principalmente nos termos propostos no parágrafo anterior, ainda mais quando se leva em conta o mau hábito que por muito tempo habitou o Direito Civil de se dar mais valor ao Código Civil do que ao Texto Constitucional [21].

A outra conclusão a que se chega é que esse conceito legal acaba por expressamente reconhecer, no mundo jurídico, a união homossexual (ou homoafetiva). Aliás, a própria Lei Maria da Penha não deixa dúvidas de que é possível considerar a união homoafetiva como entidade familiar ao dispor, no parágrafo único do art. 5º, que "as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual". Desde já, ressalte-se que, apesar do referido dispositivo tratar apenas do homossexualismo feminino, é óbvio que, com base no princípio constitucional da igualdade, tal regra também deve ser aplicada ao homossexualismo masculino.

Esta conclusão implica na perda de interesse na aprovação de qualquer projeto de lei que venha a disciplinar esta matéria, pois, na verdade, já há lei tratando expressamente dela. Além disso, afasta-se por completo a incidência da famigerada Súmula n. 380 do STF, visto que as uniões homoafetivas não são sociedades de fato e sim entidades familiares, daí porque sua apreciação deve se dar sempre na Vara de Família, nunca em uma Vara Cível.

Arrematemos esta questão transcrevendo as brilhantes palavras da festejada Professora Maria Berenice Dias [22]:

"Diante da expressão legal, é imperioso reconhecer que as uniões homoafetivas constituem uma unidade doméstica, não importando o sexo dos parceiros. Quer as uniões formadas por um homem e uma mulher, quer as formadas por duas mulheres, quer as formadas por um homem e uma pessoa com distinta identidade de gênero, todas configuram entidade familiar. Ainda que a lei tenha por finalidade proteger a mulher, fato é que ampliou o conceito de família, independentemente do sexo dos parceiros. Se também família é a união entre duas mulheres, igualmente é família a união entre dois homens. Basta invocar o princípio da igualdade. A partir da nova definição de entidade familiar, não mais cabe questionar a natureza dos vínculos formados por pessoas do mesmo sexo. Ninguém pode continuar sustentando que, em face da omissão legislativa, não é possível emprestar-lhes efeitos jurídicos (...).Diante da definição de entidade familiar, não mais se justifica que o amor entre iguais seja banido do âmbito da proteção jurídica, visto que suas desavenças são reconhecidas como violência doméstica".


CONCLUSÃO

Ao final deste trabalho, é forçoso concluir que:

1. A partir da Constituição Federal, através do princípio do reconhecimento da união estável (art. 226, parágrafo 3º) e da família monoparental (art. 226, parágrafo 4º) e do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a família, antes tratada pelo Código Civil de 1916 sob uma única modalidade (a família matrimonializada) e com um enfoque eminentemente patrimonialista, passou a ser considerada um agrupamento aberto, plural, multifacetário, personalista, irradiador da felicidade de cada um dos seus membros, onde o afeto é o seu solitário requisito de constituição;

1.O conceito moderno de família foi consagrado pela primeira vez, no plano infraconstitucional, a partir do art. 5º, II, da Lei n. 11.340 (Lei Maria da Penha);

2.Por questão de coerência com a Constituição Federal e para garantir uma maior segurança jurídica, o conceito previsto na Lei Maria da Penha deve permear todo o ordenamento pátrio;

3.Por força deste conceito legal e ainda com base no que dispõe o parágrafo único do art. 5º da Lei Maria da Penha, está definitivamente reconhecida a união homoafetiva (entre mulheres e, pelo princípio constitucional da igualdade, também entre homens) como entidade familiar, o que implica na perda de interesse na aprovação de qualquer projeto de lei que venha a disciplinar esta matéria, bem como afasta-se por completo a incidência da famigerada Súmula n. 380 do STF, pois tal união não é sociedade de fato (e sim entidade familiar), daí porque sua apreciação deve se dar sempre na Vara de Família, nunca em uma Vara Cível.


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NOTAS

01 O Código Civil de 1916 e, posteriormente, também a Lei do Divórcio atribuíam ao cônjuge culpado pela separação judicial as sanções de perda da guarda judicial dos filhos, do direito a alimentos e do nome de casado.

02 Ana Maria Bock et al, Psicologias, 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 1996, p. 238.

03 Ibid., mesma página.

04 Família e casamento em evolução, in Revista Brasileira de Direito de Família, p. 7.

05 Temas de direito civil, passim.

06 Com o advento o Código Civil de 2002, o pátrio poder passou a ser chamado de poder familiar. Mantivemos neste trabalho, porém, o termo antigo por estarmos nos referindo justamente ao Código que o consagrou.

07 Temas de direito civil, p. 351-352.

08 Temas de direito civil, p. 328.

09 A família da pós-modernidade: em busca da dignidade perdida, in Revista Persona, Revista Electrónica de Derechos Existenciales, Argentina, n. 9, set. 2002, disponível em http://www.revistapersona.com.ar/9farias.htm, acesso em 04 jan. 2003.

10 Expressão utilizada por Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, in Direito de família e o novo código civil, p.xi.

11 O julgado RT 574/271 permitiu a concessão de alimentos para o cônjuge que vivia sob o mesmo teto do seu par, pois reconheceu a separação de fato entre eles.

12 Direito civil: direito de família, p. 38.

13 Direito civil: direito de família, p. 21.

14 Curso de direito civil, p. 35.

15 Manual de direito de família, p. 206-207.

16 Dever de coabitação, p. 87 e 89.

17 Reparação civil na separação e no divórcio, p. 62.

18 Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus, in JusNavigandi, Teresina, ano 6, n. 53, janeiro 2002, disponível em http://jus.com.br/artigos/2552, acesso em 27 de outubro de 2006.

19 A esse respeito, sugerimos a leitura do livro da Professora Maria Berenice Dias intitulado União Homossexual – o Preconceito e a Justiça, publicado pela Livraria do Advogado Editora.

20 A Súmula assevera que "Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum". Tal Súmula constitui uma construção jurisprudencial realizada pelo Pretório Excelso para amenizar os efeitos do não reconhecimento jurídico da união estável como entidade familiar. Através dela, a convivência dos concubinos era tida como uma sociedade de fato e, desse modo, era possível haver a dissolução desta convivência e a conseqüente partilha do patrimônio comum, só que em sede de Vara Cível (não na Vara de Família). Com o advento da Constituição Federal de 1988, o ordenamento jurídico nacional passou a reconhecer a união estável como entidade familiar e a Súmula 380 STF deixou de ser aplicada a ela. Algo semelhante vem ocorrendo com a união homoafetiva: inicialmente muitos autores sustentaram a aplicação da multi-citada Súmula a esta união, mas, modernamente, a doutrina vem se inclinando pelo reconhecimento da mesma como verdadeira entidade familiar, afastando-se assim a incidência do conteúdo sumular à situação em comento.

21 Este fenômeno de superposição do Código Civil à Constituição Federal é chamado por Gustavo Tepedino de "subversão hermenêutica", in Temas de Direito Civil, passim.

22 Violência doméstica e as uniões homoafetivas, in JusNavigandi, Teresina, ano 10, n. 1185, 29 set. 2006, disponível em http://jus.com.br/artigos/8985, acesso em 27 outb. 2006.

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Sobre o autor
Leonardo Barreto Moreira Alves

Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Especialista em Direito Civil pela PUC/MG Mestre em Direito Privado pela PUC/MG Professor de Direito Processual Penal de cursos preparatórios Professor de Direito Processual Penal da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais (FESMPMG) Membro do Conselho Editorial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Membro do Conselho Editorial da Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Leonardo Barreto Moreira. O reconhecimento legal do conceito moderno de família:: o art. 5º, II e parágrafo único, da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1225, 8 nov. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/9138. Acesso em: 21 nov. 2024.

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