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Solidão encarcerada:

Reflexões acerca da invisibilidade e do abandono das mulheres presas

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Reiteradas estatísticas revelam um perfil bastante comum da população carcerária feminina: mulheres jovens, solteiras, não brancas, com baixa escolaridade e que cometeram crimes relacionados ao tráfico de drogas.

O encarceramento em massa é um ponto recorrente e antigo de análise e debates dos profissionais do Direito Penal e dos Direitos Humanos. A superlotação dos presídios é um gargalo que só cresce com o passar dos anos, e as violações de direitos fundamentais e básicos a que são submetidas as pessoas privadas de liberdade estão sendo cada vez mais naturalizadas. 

O número de pessoas encarceradas no Brasil chegou a 726.712 em junho de 2016 - o terceiro maior do mundo. Ainda segundo o levantamento, o sistema prisional brasileiro tem 368.049 vagas, o que faz com que 89% da população prisional esteja em unidades superlotadas. São 78% dos estabelecimentos penais com mais presos que o número de vagas. Fazendo-se um recorte mais específico como o de gênero, percebe-se que dentro da modalidade feminina de encarceramento, o aumento populacional dos presídios do país foi alarmante desde o advento da Lei 11.343/06 (Lei de Tóxicos): são as mulheres que constituem a população carcerária cuja taxa de crescimento foi mais acelerada nos últimos anos. Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, entre os anos de 2000 a 2017, é possível observar o constante crescimento da população prisional feminina, sendo registrado um aumento de quase sete vezes do número total de presas, enquanto, no mesmo período, o aumento na quantidade total de presos no país foi de pouco mais de três vezes. Existem atualmente 37.828 mulheres privadas de liberdade no Brasil, e, dentre as 1.507 unidades prisionais existentes no país, somente 105 são exclusivamente dedicadas para o gênero feminino.

Dentro da modalidade feminina de encarceramento, o aumento populacional dos presídios trouxe uma avalanche de questões que precisam ser urgentemente problematizadas, analisadas e melhoradas, diante dos contextos de abandono e violações aos direitos das mulheres encarceradas. Além dos direitos fundamentais básicos garantidos a toda pessoa presa, o encarceramento feminino traz a necessidade de garantia dos direitos específicos das mulheres, como, por exemplo, a certificação de permanência com os filhos até os seis meses de idade e o direito à amamentação. Além disso, há também as peculiaridades de natureza biológica que as diferenciam dos homens, exigindo que o Estado garanta o fornecimento de produtos de limpeza e higiene pessoal específicos, bem como formas de tratamento e atividades laborais diversas, permitindo que a mulher presa cumpra a pena em ambiente que reconheça sua condição feminina. 

Não obstante a gravidade da violação desses direitos, é o abandono afetivo sofrido a principal diferença entre a mulher presa e o homem preso: as visitas íntimas são pouco frequentes, quando são permitidas; normalmente seus companheiros não estão dispostos a visitar suas mulheres no cárcere e mulheres presas que já possuíam relacionamentos homoafetivos fora da prisão precisam escolher entre receber visita das parceiras ou de parentes, escolha que não precisa ser feita por detentos homens que têm direito a visita íntima e familiar. Nesse sentido:

[...] “Os homens não estão dispostos a passar pela revista íntima, eles não estão dispostos a passar pela humilhação de transar num lugarzinho dentro de um presídio determinado em horário determinado, e a maioria dos homens ainda está preso na ideia de que uma boa parceira é uma parceira que lava, passa, cozinha e cuida das crianças e, quando as mulheres são presas, elas não servem mais pra isso, eles entendem que elas não servem mais pra eles”.

[...] “Uma das principais diferenças entre a situação de homens e mulheres na prisão é que, via de regra, quando um homem é preso, a sua família continua em casa, aguardando seu retorno e dando apoio a ele na prisão. Mas, quando uma mulher é presa, o marido a abandona na prisão e deixa a casa e os filhos sob os cuidados de outros familiares. Uma das evidências desse abandono é a ausência dos maridos na visita íntima, como relata a jornalista Nana Queiroz, autora do livro “Presos que menstruam: a situação das mulheres nas prisões brasileiras”, escrito com base em pesquisas e visitas a penitenciárias de todo Brasil entre 2010 e 2015.”

RÁDIO CÂMARA: Reportagem especial: Mulheres na prisão - peculiaridades femininas. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/radio/programas/575721-mulheres-na-prisao-peculiaridades-femininas/>

O perfil das mulheres presas no Brasil é composto predominantemente por jovens de até 29 anos de idade, de cor/etnia pretas e pardas, de baixo grau de escolaridade, com baixo nível socioeconômico, mães-solteiras e de maioria com até dois filhos. A partir do aprisionamento, essas mulheres criminosas são consideradas pela sociedade duplamente transgressoras: da lei e das prescrições sociais de gênero, que posicionam homens como violentos e não mulheres, ocorrendo, por vezes, a fragmentação desses vínculos familiares e a perda dos papéis sociais atribuídos ao feminino: o de mãe e de esposa.

 Considerando que a população absoluta de mulheres encarceradas no sistema penitenciário cresceu de forma vertiginosa e cada vez mais consistente, a escolha do objeto do estudo pretendido assim se justifica tendo em vista que o cárcere é um ambiente onde se verifica uma maior vulnerabilidade das mulheres presas: além de recair sobre elas a reprodução intramuros da submissão à ordem masculina, a situação da mulher que comete delitos torna-se sobremaneira vulnerável, devido ao estigma que sofrem aquelas que fogem ao estereótipo feminino imposto pela heteronormatividade. 

Considerando a diversidade de questões, bem como as complexidades de cada uma delas, é crucial discutir a solidão como marca característica do sistema prisional feminino. A partir da compreensão da vivência do cárcere pelas presidiárias, percebe-se a punição dupla imposta às mulheres presas: não obstante a aplicação das sanções legais, a mulher encarcerada sofre, ainda, a punição por ter descumprido seu papel social tradicional de conformação ao espaço privado ao invadir o espaço público no cometimento do crime e, como punição, ela é mais uma vez relegada ao espaço privado do cárcere e lançada à invisibilidade social e ao abandono. 

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Nesse sentido, deixo a seguinte indagação para reflexão: o sistema prisional vigente no país, revestido do discurso pela busca da ressocialização da mulher encarcerada, reforça a conformação aos papéis sociais dominantes de sujeição e de submissão da mulher em relação ao homem e de invisibilidade e abandono desses sujeitos?

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRUMER, Tamires Natalia Pedrosa. Solidão encarcerada:: Reflexões acerca da invisibilidade e do abandono das mulheres presas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6581, 8 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91753. Acesso em: 18 abr. 2024.

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